Agora, todos juntos
É uma mostra de grandes nomes, mas o melhor do Festival de Almada número 32 está nas pequenas narrativas, nas personagens secundárias e nas canções populares dos vários espectáculos. São essas formas aparentemente menores que fazem a ligação directa ao público.
Os festivais de teatro correm o risco de ficar cada vez mais parecidos uns com os outros, celebrando a grandiosidade das encenações e a monumentalidade das obras. Mas num festival como o de Almada, em que se vendem 500 passes para toda a mostra, e há quem se desloque quinze dias vindo de fora ou tirando férias do trabalho, o todo é maior do que a soma das partes.
Há meio milhar de críticos capazes, dispostos a dizer se os espectáculos são bons ou maus, comparando-os entre si e com os de anteriores edições, formando um olhar comum (que se materializa na eleição do espectáculo do ano, no último dia) distinto dos demais festivais.
As peças A Menina Júlia, de Strindberg, montada por Katie Mitchell, e O Regresso a Casa, de Pinter, encenada por Peter Stein, estão separadas por oitenta anos e estas duas encenações por algo mais. Mitchell reinventa a narrativa do texto original, optando por nos dar a ver o ponto de vista de Kristin, a criada e personagem secundária da peça, incluindo os sonhos dela, filmados ao vivo e reproduzidos numa tela acima do cenário realista. Tornada sujeito principal da acção, é Kristin quem entrega a navalha da barba que faz derramar o sangue, pelo menos o sangue simbólico, da patroa. A encenadora não só adopta a perspectiva da criada, como, durante o espectáculo, mostra de que é feita a trucagem cinematográfica, deixando à vista as câmaras, às vezes os próprios actores, e a manipulação dos efeitos sonoros.
Strindberg já mostrava a luta de classes, mas ainda assim do ponto de vista masculino. A visualização do mundo interior de uma mulher, uma mulher de classe baixa, vai de mão dada com a exposição do fabrico da cena. Tudo é feito com uma precisão e delicadeza admiráveis, tanto mais que tudo é explícito. Coisa mais materialista não há. Deve ser a isso que Stein se referia quando disse, numa das master-classes do festival, que Brecht causou danos irreparáveis à cena europeia. A sua Ruth, de O Regresso a Casa, é uma esfinge enigmática que assume o poder mais como uma Corleone do que como uma mulher, seja ela arquétipo de mãe e prostituta ou não.
Festival da Canção
Enredo, personagens, diálogo, estão praticamente ausentes de espectáculos memoráveis como E os tempos mudam…, do Berliner Ensemble, com canções de peças de Brecht; King Size, de Christoph Marthaler, uma espécie de concerto encenado que mistura lieder de Schubert com genéricos de séries e temas da Eurovisão; ou Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas, do Teatro do Vestido, que reproduz o 25 de Abril a partir de documentos, depoimentos e muitas canções.
Outros espectáculos assentavam em temas musicais. Sei de um lugar, de Iván Morales, sobre um casal nascido nos anos setenta na Península Ibérica (o espectáculo foi criado em catalão e apresentado em castelhano, mas podia ser sobre portugueses), tira o título de um tema musical dos Triana, de 1975, símbolo da união perdida do par amoroso. Your best guess, da Mala Voadora, termina com uma referência ao assobio improvisado de (Sittin' on) the dock of the bay, de Otis Redding, materialização da absurda imponderabilidade da vida.
O reconhecimento das canções cria um vínculo imediato entre os actores e os espectadores presentes. A experiência é concreta, emotiva e colectiva. As memórias em comum são reavivadas, as memórias pessoais são partilhadas, e ambas se tornam fonte de outras recordações que o público terá destes espectáculos. Cada refrão, cada acorde, enfim, cada alusão musical e poética a factos reais e fictícios da experiência pessoal é posta em cena e posta em evidência. O enredo é outro – feito pelo público. Todos sabem do que se está a falar.
É por isso que a comunhão da plateia do palco grande com as canções de Brecht, Eisler, Weill e Dessau não tem preço. As pequenas encenações para cada canção de E os tempos mudam… são mais do que suficientes para fazer reverberar as cordas internas de cada um. E embora possam escapar por entre os dedos as alusões e ironias de grande parte dos temas musicais de King Size, há universalidade e particularidade suficientes na interpretação e na encenação, para que todos saiam tocados. Muito mais familiar, o itinerário musical de Um Museu Vivo causa comoção real, mesmo quando apenas se escutam 20 segundos de um tema.
É sempre a mesma cantiga…
A história da Europa, a luta de classes, a crise grega valem bem um festival de canções. Os temas musicais fazem a síntese entre os grandes movimentos tectónicos da história do século XX e os momentos particulares e pessoais de cada um, a despeito de protagonismos mais ou menos disfarçados, criando uma cena mais viva.
As canções afectam os espectadores tal como afectam os actores em cena. O melhor é cantar todos juntos, como acontece em Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas, nas várias vezes que Joana Craveiro pede para a acompanharem nalguma das cantigas carregadas de balas do tempo da Revolução, e nas várias vezes em que nem é preciso pedir. Não, não é nostalgia, e não, não é propaganda. É a forma da canção que agrega as pessoas, e não o conteúdo verbal, mais ou menos explícito. De resto, quanto mais nas entrelinhas estiver o sentido que carrega as cantigas como armas, mais prova de união fazem essas cantigas ao ser cantadas alto e bom som, até que a voz (não os ouvidos) nos doa.