O teatro de Joana Craveiro continua a roubar espaço ao silêncio

Filhos do Retorno coloca em palco cinco actores que partilham e lidam com as histórias familiares das ex-colónias portuguesas. Joana Craveiro e o Teatro do Vestido estreiam no FITEI mais uma reflexão conjunto sobre a transmissão da memória de acontecimentos fundamentais da História recente.

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Filhos do Retorno (9 e 10 de Junho, Teatro Campo Alegre, Porto), constrói-se a partir da relação de Cláudia Andrade, Lavínia Moreira, Marina Albuquerque, Rafael Rodrigues e Daniel Moutinho com as suas memórias familiares.

Os cinco actores olham para uma fotografia e tentam reconstituí-la, por vezes com a ajuda de alguns elementos do público. Nem sempre a imagem original denuncia a paisagem africana ou indiana, mas todas partilham a mesma fixação de um tempo que, no momento do clique, se queria eternizar como sendo de felicidade. Mesmo que o não fosse. São imagens que cada um dos actores vasculhou nos baús familiares, nas histórias dos seus pais e avós, à procura de pistas para o que terá sido a vida dos seus ascendentes nas antigas colónias portuguesas. A ideia da reconstituição dirigida por Joana Craveiro – em mais um espectáculo em que esgravata num período da História de Portugal pouco contado e envergonhada e culpadamente varrido para debaixo do tapete – é talvez exemplar daquilo que trata Filhos do Retorno: a tentativa de alcançar uma memória, sabendo sempre que aquilo a que acede será, porventura, um fragmento de uma grande narrativa e em que nunca se sabe verdadeiramente quanto daquilo que vemos e ouvimos esconde e elimina para sempre tanto do que aconteceu.

Precisamente, por isso, a dramaturga que mergulhou nos relatos pessoais e afectivos das vidas em ditadura, do 25 de Abril e do PREC na magnífica série de palestras teatrais Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, ao querer continuar a explorar a transmissão da memória destes factos e acontecimentos fundamentais da História que ditaram o país e as pessoas que fomos e somos desde então, fez um casting muito específico para Filhos do Retorno. A peça que se estreia com duas datas (9 e 10 de Junho) no Teatro Campo Alegre, Porto, integrada na programação do FITEI (com digressão só em 2018), constrói-se a partir da relação de Cláudia Andrade, Lavínia Moreira, Marina Albuquerque, Rafael Rodrigues e Daniel Moutinho com as suas memórias familiares. Uma relação que Joana Craveiro queria que não se apresentasse petrificada nem imutável.

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“Reuni este grupo de actores dispostos a falar sobre isso e a colocar em causa a história das suas famílias”, diz a encenadora. “Para mim era muito claro que tinham de conseguir questionar-se e, sobretudo, não aceitar passivamente a ideia de um colonialismo exemplar. Podiam até nem estar no mesmo espectro político em que me posiciono, mas era critério a possibilidade de podermos fazer um espectáculo transformador a vários níveis.” Desde que o público é conduzido para o espaço circular – que logo antecipa uma certa ausência de conclusão – onde Filhos do Retorno decorre, tudo aquilo que se segue acontece numa zona de risco e de generosa e emotiva exposição de relatos que, embora pertençam a cada um destes cinco actores, pertencem na pele aos seus familiares mais próximos, com todos os interditos, os segredos, as mágoas e os buracos nas narrativas que isso implica.

Só que a partir do instante em que todos estes pedaços de vida são montados de acordo com uma dramaturgia concebida por Joana Craveiro, aproximando acontecimentos pessoais de outros históricos, colocando lentes de aumentar sobre factos que poderiam não existir com a importância que aqui lhes é dada, “há um espaço de respiração e uma objectividade sobre a sua própria vida que”, defende Joana, “faz com que esta matéria já não lhes pertença inteiramente.” Quando aceitam partilhar a sua história neste dispositivo circular – começando por resumir a razão de estarem ali sentados a uma secretária repleta de fotografias, livros e objectos que carregam uma ou várias histórias em si – , cada palavra passa a ser feita de uma carne teatral e está já para lá do mero reduto íntimo da família.

Assumindo esse objectivo transformador, de poder levar ao questionamento e eventual confronto violento com “as heranças e mitificações recebidas” por parte dos actores – embora Craveiro ressalve que essas mitificações, na verdade, não estavam presentes nos intérpretes –, há algo de transformação do olhar que a encenadora reclama também para si. “Depois de falar com quase cem pessoas sobre estes assuntos e ouvir as suas histórias, apesar de eu achar que o colonialismo é indefensável, não posso deixar de me comover com as histórias daquilo por que passaram, do que perderam, do que deixaram, de serem um pouco vítimas de um sistema e de um tempo”, relata. “Não sei muito bem onde me posiciono. E esforçar-me por perceber de onde vem cada pessoa e tentar mesmo ouvir aquilo que me quer contar transforma-me por completo, claro.”

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Traumas e bibliotecas colectivas

O processo de descolonização que se seguiu ao 25 de Abril e ao termo das guerras ultramarinas já havia sido abordado pelo Teatro do Vestido em Retornos, Exílios e Alguns que Ficaram, em 2014. Mas o que Joana Craveiro agora pretendia abordar era aquilo que designa como “geração da pós-memória”. Não quem viveu e passou pela brusca mudança de cenário, pondo um fim abrupto à edificação de uma vida num outro continente, mas sim a forma como todas essas vivências, mais ou menos traumáticas, circularam entre as famílias portuguesas, passadas de geração em geração com doses variáveis de mágoa, ressentimento, aceitação ou culpa.

Para isso, Joana não só escolheu criteriosamente os actores como procurou entrevistar cada um deles na companhia dos familiares, tentando perscrutar as diferenças geracionais através da própria entrevista. “Era muito claro para mim que este espectáculo era sobre os filhos e não sobre os pais”, sublinha. Daí que conte, antes de mais, a forma como estas cinco pessoas recordam os acontecimentos, moldados tanto pela sua interpretação como igualmente pela forma como, ao longo dos anos, certos factos ou histórias de família se foram sedimentando ou adaptando.

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A estes factos e a estas narrativas, inscritos no corpo e no percurso de cada um dos cinco, Joana Craveiro juntou toda uma série de livros e filmes, exibidos no início da peça e colocados à vista, nos limites do círculo, como que lembrando que tudo o que vemos acontecer naquele espaço está constantemente enquadrado, informado e espicaçado por textos como O Retorno (Dulce Maria Cardoso), Caderno de Memórias Coloniais (Isabela Figueiredo) ou Racismo em Português (Joana Gorjão Henriques). “Antes de começarmos o processo de ensaios encontrávamo-nos todas as semanas para fazer uma espécie de laboratório em que víamos filmes, discutíamos livros, tínhamos biblioteca colectiva e os livros iam rodando”, descreve. “Os livros estão aqui [em cena] porque para mim são também personagens de todas estas histórias e destes museus que tenho vindo a fazer.”

Sem que tal tivesse de verter necessariamente para o texto final, nalguns momentos a discussão em torno destes objectos tornou-se suficientemente acesa para que as diferentes perspectivas sobre os conflitos chocassem e chispassem entre si. Assim aconteceu com a série A Guerra, de Joaquim Furtado, exemplo de como a profusão de documentação e factualidade pode, por vezes, colidir com a mais afectiva transmissão das memórias. Para Joana, seria fundamental a presença do filme Concerning Violence, documentário de Göran Olsson baseado no livro de Frantz Fanon Os Condenados da Terra. “Foi importante ver como o filme está construído na relação com o texto do Fanon, que é um manual da descolonização”, reflecte. “Ele diz que a descolonização é um fenómeno violento, mas explica que é assim porque é essa a linguagem que o colonizado aprende e por isso responde na mesma medida.”

Esse objecto é especialmente importante porque Filhos do Retorno parte também dessa ideia que Joana Craveiro assume querer contrariar e desmontar de que há colonialismos menos maus e que o colonialismo português terá sido, segundo alguns, exemplar. “Nenhum colonialismo o é”, retorque. “Como é que pode ser bom se é assente em relações de exploração, de desigualdade social, económico, política e racial?” Sem pretensões de doutrinar o seu público, a dramaturga e encenadora queria esgravatar nesses sentimentos dos descendentes dos ex-colonos, perceber como esse sentimento lhes tinha ou não chegado, tendo em atenção que para cada um deles o encontro com a terra onde os pais cresceram – e que, nalguns casos, praticamente apagaram da memória, guardando sensações difusas de uma infância feliz, mas cujo apagamento sugere uma saída traumática sob vários aspectos – resulta fundamental para a sua construção identitária.

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Mais uma vez, como tem acontecido nos seus espectáculos anteriores, o 25 de Abril de 1974 volta a ser contado, procurando sempre outros olhos e outras palavras. Se as entrevistas que realizou para além destas cinco famílias levaram Joana Craveiro até, por exemplo, ao single de E depois do adeus, de Paulo de Carvalho, que João Paulo Diniz teve de pedir de empréstimo ao colega radialista Carlos Fernandes para poder transmitir a primeira senha do Movimento das forças Armadas que colocava a revolução em marcha, permitiram-lhe chegar também à crença de muitos de que Mário Soares traiu o país e entregou as colónias de mão beijada. E através do testemunho de Maria José Baião, locutora da Rádio Clube de Moçambique, percorre-se ainda o início da independência do país africano, com a última voz oficialmente portuguesa que se fez escutar antes de Lourenço Marques acordar depois de 7 de Setembro de 1974 (dia do acordo de Musaka) como Maputo, e pelas palavras de Paula Bárcia chega-se à forma precária e improvisada com a que a História de Moçambique começou a ser ensinada nas escolas.

O mais importante nestas histórias desenterradas de Guiné, Cabo Verde, Moçambique, Angola e Índia é o quanto, trazendo-as à tona, tanto continua escondido lá em baixo. Às vezes, por medo de ofender ou manchar a honra daqueles que viveram aqueles dias. “Os segredos são o cerne de muitas famílias”, acredita Joana Craveiro. Estão sempre no epicentro de qualquer coisa que fica por dizer. O teatro de Joana tem sido esse: o de roubar espaço ao silêncio.

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