Cristóbal Cobo: “As pessoas são mais do que um conjunto de dados”
Investigador em tecnologia e aprendizagem na Fundação Ceibal, no Uruguai, veio a Lisboa deixar claro que “a literacia digital não é o domínio das teclas, é o domínio das ideias”. E não tem dúvidas: “O que se rompeu com as fake news foi a confiança”
Na conferência do Plano Nacional de Leitura 2027, que se realizou na semana passada na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, Cristóbal Cobo, especialista em Internet e novas linguagens, lembrou que, “na era digital, também é preciso saber ler nas entrelinhas”.
O professor chileno, de 42 anos, trouxe a debate algumas ideias a reter para uma plena (e segura) literacia digital: eliminar informação irrelevante, aprender a classificar e ter uma leitura crítica. Ou seja, “saber quem criou a informação a que acedemos, quem a paga, quem querem alcançar, quem não está incluído”.
Mais: há que aprender a administrar a privacidade, a distinguir o real do irreal e também o humano de uma máquina: “Temos de perceber quando é que do lado de lá do telefone está uma máquina, e não uma pessoa, a falar connosco.”
Por último: cada um de nós deverá saber administrar o tempo e aprender a desconectar-se. “Parar para pensar ou conversar [presencialmente] com alguém. Sem tweets, likes ou notificações.”
Cristóbal Cobo formou-se e doutorou-se na Universidade Autónoma de Barcelona (Espanha), trabalhou cinco anos no México (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e mais cinco em Inglaterra (Universidade de Oxford). Está desde 2014 no Uruguai, no Centro de Investigação em Tecnologia e Educação, e é director do Centro de Estudos da Fundação Ceibal.
Falou com o PÚBLICO em Lisboa depois de apresentar a sua comunicação a um auditório cheio de professores, educadores, mediadores de leitura e bibliotecários, sob o título: “Aprender a ler nas entrelinhas na era digital”.
Porquê este caminho de investigação: tecnologia e aprendizagem?
Eu não escolhi. O que aconteceu foi ser contemporâneo da Internet. Olhei para ela como uma plataforma que abria muitas oportunidades, mas que veio a provocar grandes dores de cabeça. Depois da euforia das “possibilidades”, demo-nos conta de que existe um lado B, que é muito importante ter em consideração. E passei a concentrar parte da minha energia em repensar a sua utilização de uma forma mais crítica.
Estás assustado com esse “lado B”?
Não estou assustado, mas qualquer tecnologia amplifica as capacidades, e o que aconteceu foi que nos primeiros anos os discursos se centraram nas possibilidades positivas: uma sociedade mais inclusiva, novos modelos da educação, um espaço para dar voz a quem não tinha voz, uma cidadania mais participativa. Mas, com a expansão das redes sociais e a concentração da Internet num grupo restrito de actores, hoje há questões de assimetria de informação. Não estou assustado, mas é preciso fazer uma análise crítica. Algo se quebrou. Com o caso da Cambridge Analytica [que usou indevidamente dados de milhares de utilizadores do Facebook], apercebemo-nos de que foram irresponsáveis na produção e gestão de dados. E veja-se a situação de vulnerabilidade em que os estados se encontram frente a estas grandes empresas. Para quem trabalha em educação, é preciso levantar esta bandeira de criar alertas. As pessoas são mais do que um conjunto de dados.
Na sua comunicação, falou de “metacognição, pensar sobre o pensamento”. No caso, o pensamento digital. Pensamos de outra maneira agora?
Acho que sim. Não acredito que estejamos mais inteligentes que antes, nem que aprendamos mais rápido, mas acho que pensamos de maneira um pouco diferente. O que os ingleses chamam “rewired”. Há muitas investigações nesse sentido. A nossa capacidade de concentração dilui-se, a nossa capacidade de multitasking não aumenta, mas temos a sensação de conseguir fazer muitas coisas ao mesmo tempo — todas mal [risos].
Quando se trata de meio virtual, falamos muito de informação, mas pouco de conhecimento. Não?
Penso que sim. O conhecimento tem sobretudo que ver com contextos. Agora [nesta conversa], estamos apenas a trocar informação, trazendo as nossas memórias, os nossos receios e os nossos interesses. O contexto ajuda a que haja uma possibilidade de transferência de conhecimento. Quando vamos a uma universidade ou uma escola, não vamos apenas dar a informação que está nos livros. Há uma negociação do saber, que tem muito mais que ver com conhecimento. Esta transferência de dados e informação não pode ficar circunscrita à Internet, porque se perdem muitas possibilidades de negociar e discutir saber.
A ideia de que hoje se apreende e aprende tudo muito rapidamente é falsa, não é?
Absolutamente. Não se pode aprender se não se confia. Imagine que alguém diz que agora vamos poder confiar mais depressa. Não faz sentido. A confiança constrói-se lentamente, em lume brando. Hoje, parece que tudo é um tema de velocidade, diversidade, oportunidade, há mais janelas abertas. Nós os dois podemos continuar a contactar um com o outro sem muita dificuldade, pela Internet, mas não ganharemos confiança mais rapidamente.
A confiança dos utilizadores na Internet tem vindo a ser quebrada sucessivamente.
Sim. O que se rompeu com as fake news foi a confiança, quando os presidentes utilizam sistemas informáticos para incidir nas eleições, quebra-se a confiança. A democracia é um desejo, mas tem haver respeito pela diferença. Por isso é tão profundo o impacto que isto teve, não porque haja mais contas falsas no Facebook, mas porque estamos a viver uma crise de confiança.
Andamos todos desconfiados uns dos outros?
Estamos desconfiados e não sabemos a quem pedir ajuda. Porque os Estados são um pouco analfabetos em muitos temas. Na Internet há muito dinheiro para novos desenvolvimentos, para se investir em novos códigos, em inteligência artificial. E os estados não têm essa capacidade. Há um "delay", uma diferença na velocidade de adaptação. A tecnologia vai numa direcção e o Estado e a legislação vão noutra direcção. A educação, noutra ainda, e os pais não sabem a quem pedir ajuda. Há alguma desorientação.
A pergunta maior que se pode fazer, mas para a qual não tenho resposta, é: como ajudamos os professores e os educadores a utilizar estas coisas sem terem de ser especialistas em tecnologias? Criou-se a ideia errada de que as crianças são muito boas com as tecnologias e os adultos muito maus. Essa discussão já tem alguns anos. Como fazer com que os que educam tenham um conjunto de ferramentas para estes debates. Porque não há só uma solução. E é preciso acabar com esta ideia de que os velhos… não podem usar tecnologia. Isto tem de estar na formação dos educadores. A literacia (ou alfabetização) digital não é o domínio das teclas, mas o domínio das ideias. É aprender a pensar de forma diferente. Saber escolher, discriminar, organizar.
“Aprender a desconectar-se” foi uma das ideias que transmitiu ao auditório. Consegue “desligar-se”?
Custa-me muito [risos]. Instalei uma ferramenta que me diz quando tempo estive online, para “parar” o tempo. Penso que dou mais atenção do que devia ao que se passa online. Há que aprender a administrar o tempo frente aos ecrãs e a energia que aí se gasta. Poderia desculpar-me com o facto de me dedicar a estes temas e, por conseguinte, ter de estar sempre ligado. Há sempre uma desculpa... Mas não. Temos de arranjar forma de nos auto-regularmos.
Ainda lê livros em papel?
Alguns livros, sim. Outros, não. Faço leituras num suporte e noutro, mas a minha concentração é menor no digital do que no papel.
Qual é a rede social que mais usa?
Twitter. Como académico, é-me muito útil. Leio algo e partilho logo. E é o meu motor de busca pessoal, quando quero recuperar o que li há uns meses.
Fala com os alunos através do Twitter?
Falo e, como trabalho com muitos países, é uma boa forma de comunicação.
Também trabalha com crianças? Custa-lhes muito desconectarem-se?
Trabalho. E, sim, custa-lhes muito. Mas aos pais também. Dizem aos miúdos: “Não usas o telemóvel durante as refeições.” Mas eles estão com o telefone na mão. É fácil adoptar ferramentas, difícil é mudar comportamentos.
A perda de comunicação directa é dramática?
Penso que sim. Vamos a um restaurante e as pessoas parecem que têm de ter uma prótese fora da sua cabeça. Há um psiquiatra que ajuda os jovens viciados em videojogos. (Agora, a Organização Mundial da Saúde já considera doença esta dependência.) Ele ajuda miúdos que têm sobreexposição à Internet e aos jogos e que, por esse motivo, deixam de comer, de ter vida social, de tomar banho. Ajuda-os a recuperar a vida normal. Esse psiquiatra disse uma coisa interessante: “É mais difícil sair da sobreexposição digital do que da cocaína. Porque, quando se sai da cocaína, já está, acaba-se, terminou. Mas o digital é diferente, continuas a conviver com ele. Vais trabalhar e tens de enviar um email, por exemplo. Isto tem de estar presente na cabeça das pessoas e sobretudo das famílias. As famílias têm de falar sobre isto.
Mas os adultos dos 40 aos 60 anos e até mais ficaram muito fascinados com as redes sociais e são muito “agarrados”, perturbando o ambiente familiar e dando eles próprios o mau exemplo.
É verdade. E muitas vezes os pais dos mais pequeninos põem-lhes um telemóvel nas mãos para que fiquem sossegados e não incomodem. Não podemos exigir coisas que não praticamos. Temos de fazer como com as questões ambientais, começar a discutir pouco a pouco estes temas tão importantes. Ou como no caso dos automóveis: demorámos 60 anos a pôr cinto de segurança, depois de muitos acidentes. O que temos de fazer agora é pôr o cinto de segurança na tecnologia antes de nos lançarmos ao caminho. Que não significa não a usar, mas com cautela.
Mesmo com essa atenção e esses alertas de que falou, é fácil sermos manipulados.
Sim. Mesmo nós, os que temos mais ferramentas para compreender.
Podemos dizer que “confiança” e “vigilância” são duas palavras-chave no uso digital?
Sim. E também “pausa”. Porque tudo é muito rápido. Os tweets duram [em média] 18 minutos e desaparecem. É preciso interiorizar a atitude “espera um pouco”. O New York Times, muitas vezes, quando há uma notícia de actualidade, demora mais tempo a divulgá-la que outros jornais. Estou convencido de que preferem demorar um pouco mais, para confirmar a informação com as fontes e dar um ângulo diferente de todos os outros. Lá está a questão da confiança.
Estes meios absorvem cada vez mais a nossa atenção.
A atenção é um recurso limitado. Depois de estarmos aqui, a nossa cabeça irá para outro lado. Estas máquinas são muito eficientes para administrar a atenção. Eles estudam a tua atenção e como captá-la. Os humanos são como os chimpanzés, gostam de bananas. Quais são as bananas de que gostamos? Dos amigos, do ego, do reconhecimento dos pares. Esta máquina, quando te põem um like, um elogio, uma mensagem, estimula “essas bananas”. Activa a dopamina que está na tua cabeça. E é muito difícil enquanto pessoa lidar com isso. Há muita psicologia. Há que construir mecanismos para que isso não te distraia do essencial.
Aquele laptop que mostrei sem acesso às redes sociais [um computador pequeno só para escrever, sem ligação à Internet] é um sintoma de que se perdeu a possibilidade de gerir a atenção nestas coisas.
Não acha triste ter de ser a ferramenta a impedir-nos de ir à Internet por não termos capacidade de autocontrolo?
Sim, claro. Mas foi uma mudança muito rápida. Mesmo no ensino e educação, há poucas referências sobre os efeitos. Estamos muito no início.
Nota-se, por exemplo, na escrita. Se é feita à mão, com caneta, ou no computador. A primeira tende a ser mais pensada e definitiva do que a segunda.
À volta disso, deixe-me contar-lhe uma história. Vou publicar um livro sobre estes temas e foi quase completamente ditado, com reconhecimento de voz. Funciona perfeitamente. Escrevia cinco páginas e punha o computador a ler para mim o que eu tinha ditado. Então, antes de rever o texto, “revia” oralmente e apercebia-me de que algumas partes não soavam bem. É uma linguagem e um tempo também diferente.
Últimas ideias que queira transmitir...
Nada de preto e branco. De apocalípticos e integrados. Os que odeiam a tecnologia e os que amam a tecnologia. Os tecnofílicos e os Black Mirror [série britânica sobre o lado obscuro da tecnologia]. Isto é como a Guerra Fria, este modelo já está vivo. Temos de transitar entre ambos, o pêndulo entre os dois opostos. Ou seja, saber utilizar a tecnologia, conhecer os benefícios, mas também entender que uma vivência 100% digital traz problemas. É complexo, são novos códigos.
Mas continua a acreditar nas pessoas?
Absolutamente. Senão, não estaria aqui.