O juiz Moro no xadrez de Bolsonaro
A nomeação do juiz Sérgio Moro para superministro da Justiça e da Segurança Pública foi qualificada como uma manobra política magistral para credibilidade política do novo Presidente. Bolsonaro “pode ser tosco mas não é burro”, diz um analista.
O xadrez brasileiro continua a mudar e, com ele, mudam os diagnósticos. Depois de ter feito campanha contra Jair Bolsonaro, avisou Caetano Veloso na noite da derrota: “Ele [Bolsonaro] trouxe complexidade.” De facto, desde as eleições, o novo Presidente vem movendo as suas pedras e mudando as regras do jogo. A nomeação do juiz Sérgio Moro, na quinta-feira, foi qualificada de “magistral”. O Congresso não terá gostado, escreve a Folha de S. Paulo. Mas Bolsonaro “marcou pontos junto do seu eleitorado” e obteve um importante ganho de crédito político.
Ao acumular a Justiça e a Segurança Interna, além de outros departamentos, Moro passa a ser um superministro e recebe “carta branca” no combate à corrupção e à insegurança. Moro quer fazer aprovar no Congresso um pacote de 70 medidas anticorrupção, um projecto elaborado pela Fundação Getúlio Vargas e pela Transparência Internacional.
Nesta operação, é o juiz quem mais riscos corre. “Vai sofrer um desgaste com a opinião pública mais liberal, que pode enxergar que as acções do juiz, antes de fazer parte do Governo, não foram completamente isentas”, declarou à BBC o politólogo Carlos Pereira. É uma suspeita corrente na imprensa internacional.
Nos três dias anteriores, os analistas tendiam a sublinhar as hesitações e a desordem na formação do Governo, o que lhe auguraria um futuro “no mínimo precário e no máximo caótico”. Observam agora que Bolsonaro está a cumprir uma outra promessa pouco ortodoxa: um “ministério sem interferência partidária” e sem negociação com os líderes parlamentares. “Podia cercar-se de auxiliares medíocres. Preferiu encostar suas limitações em personalidades fortes. Três se destacam: o general Augusto Heleno, o economista Paulo Guedes e, sobretudo, o juiz Sérgio Moro”, sublinha o jornalista Josias de Souza.
Estas nomeações suscitaram alguma perplexidade: Bolsonaro já escolheu três ministros que não pode demitir, o que é contrário às regras. Moro é uma peça fundamental na credibilidade do Governo e do seu empenho no combate à corrupção. Um conflito com Bolsonaro poderia, inclusive, abrir uma crise institucional. O general Heleno representa o Exército, “toma conta dos militares” e transmite os seus “recados”. Guedes, “czar da Economia”, é “o avalista” do Governo junto dos bancos e investidores. A sua queda poderia provocar uma crise financeira. Mas isto tem uma lógica: “Cada indicação destas é uma trincheira cavada para impedir ataques a partir do ano que vem”, resume o analista Leonardo Sakamoto.
Que resta para o Presidente? Responde Sakamoto: “Bolsonaro fica livre para avançar noutras frentes. (...) Sua máquina de guerra nas redes sociais e nas aplicações de mensagens instantâneas vai continuar ligada e será devidamente usada para pressionar a imprensa, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.” O seu bunker, no Palácio do Planalto, será uma espécie de “Ministério da Verdade”, como no romance 1984, de George Orwell. Bolsonaro “pode ser tosco mas não é burro”.
Os jornalistas procuram racionalizar o seu método. Se, ao nomear ministros que não pode demitir, o Presidente corre o risco de ficar refém, há uma versão de recurso. Se Guedes ou Moro falharem, o fracasso será deles, os “mais competentes”, e não do Presidente. Explica na revista Piauí José Roberto de Toledo: “Ministro é como fusível, existe para poder ser trocado e evitar que o Presidente se queime.”
Do lado da oposição
O PT está numa encruzilhada, entre a necessidade de abertura e a persistência numa estratégia de fecho. Fala para os convertidos, não fala para os outros. Há quem tenha a expectativa de que Fernando Haddad possa ser um agente de renovação. É difícil. A direcção do PT, encabeçada por Gleisi Hoffmann, é medíocre mas persistente. O grupo dirigente continuará a mandar no partido e nos parlamentares. Haddad será talvez uma espécie de embaixador junto das outras forças políticas e culturais.
A nomeação de Moro pode ter um efeito desastroso: manter o partido amarrado à narrativa de Lula e da Lava-Jato. A acontecer, dificultará o seu trabalho de oposição. Para o PT, seria vital fazer ultrapassar o tema da corrupção e substituí-lo pelo da defesa da democracia contra as derivas autoritárias. Para isso, seria útil fazer um acto de contrição.
A questão é que o risco de “erosão da democracia” permanece. O discurso de Bolsonaro deve ser levado a sério. As ameaças às instituições ou a apologia da violência não devem ser desvalorizadas. No Congresso, a bancada do BBB (boi, bala e Bíblia) está decidida a fazer passar ainda nesta legislatura medidas como a liberalização das armas ou o abaixamento da maioridade penal. Bolsonaro mantém a sua ameaça à imprensa. Algumas destas iniciativas darão lugar a batalhas constitucionais.
É significativa a reacção do jornalista Juan Arias, do El País Brasil. Depois de ter participado na campanha anti-Bolsonaro, saúda a nomeação do juiz: “Talvez o mais positivo da presença de Moro no Governo de Bolsonaro, dado o seu indiscutível passado democrático, seja a possibilidade de constituir, dentro do Governo, uma garantia e um muro contra qualquer de desvio autoritário do novo Presidente.”
Pode Bolsonaro fazer tudo o que lhe apetece? Não pode, porque é menos forte do que mostra e porque encontrará obstáculos institucionais. Na quarta-feira, houve um primeiro aviso do Supremo Tribunal Federal (STF). Numa reunião urgente, os ministros [os membros do STF] mantiveram a proibição da apreensão de documentos, da retirada de cartazes ou da interrupção de debates nas universidades. Tinham sido ordenadas por tribunais eleitorais locais. A suspensão liminar desses actos fora ordenada no sábado pela ministra Cármen Lúcia. Por unanimidade, o pleno do tribunal confirmou essa decisão, em nome da liberdade de expressão de estudantes e professores.
“As práticas descritas na peça inicial da presente arguição contrariam a Constituição, contrariam o Brasil como Estado Democrático de Direito. (...) A única força legítima [para] invadir a universidade [são] ideias livres e plurais”, disse Lúcia na declaração de voto. Por proposta do ministro Gilmar Mendes, a decisão foi estendida a outras iniciativas de “patrulhamento ideológico”, como o caso da deputada bolsonarista Ana Caroline Campagnolo, que tinha apelado a que os estudantes denunciassem professores que se manifestassem contra a eleição de Bolsonaro.
A decisão do STF foi um claro aviso ao novo Presidente.