Abram os olhos: sobra a Europa
Se o projeto europeu colapsar e a Europa se fragmentar, nenhum outro grande país ou bloco regional fará frente ao avanço do fascismo globalizado.
Talvez a única coisa útil de ver nacional-populistas a ganharem eleições e referendos, pelo menos desde — para quem presta atenção — Orbán na Hungria em 2010, é poder saltar por cima da cansativa coreografia argumentativa que por estas alturas toma conta da imprensa e do comentariado internacional. A maior parte, aliás, feita de tretas. As histórias sobre “a esquerda não só tem culpa da porcaria que a esquerda faz, como também tem culpa da porcaria que a direita faz”. As histórias sobre a direita ganhar por saber o que o povo pobre quer (meus caros, 97 por cento das cidades pobres do Brasil votaram em Haddad, 98 das ricas em Bolsonaro). A auto-flagelação da elite, meu deus, que falta de pachorra para a auto-flagelação da elite, como se Boris Johnson, Trump e um deputado há trinta anos chamado Bolsonaro fossem homens do povo (e como se “o povo” pensasse todo da mesma maneira). Mas também as histórias sobre como a União Europeia é que gera o fascismo (e dos EUA e do Brasil e das Filipinas, também é a UE que têm a culpa?). Ou sobre como com moeda própria e banco central controlado pelo poder político estas coisas não acontecem — só que aconteceu a Dilma em 2015. Só que não, a culpa é de Lula, e sim, Lula tem muitas culpas, mas não governava nos EUA, onde não há notícias de um único escândalo de corrupção com Obama. Não, espera, a culpa é dos imigrantes (quantos imigrantes há na Hungria?), não, é dos refugiados e dos muçulmanos (quantos refugiados querem ir para a Polónia? quantos muçulmanos?), etc. etc. e muitos etc.
Haverá tempo para lidar com isso tudo. Agora olhemos antes para aquilo que temos à nossa frente. Uma vaga de extrema-direita autoritária, nacional-populista e fascizante, internacionalmente coesa e com um grau assinalável de coordenação, que está a tomar conta da política mundial, com ou sem ajuda de atores estatais estrangeiros. A razão de fundo dessa vaga está na sua mensagem — o resto é contigente e local. A sua mensagem diz: num mundo confuso, estamos melhor com homens fortes a mandar, egoísmo na nossa tribo, resolver os problemas com força ou com violência, e cada um por sim sem instâncias supra-nacionais, porque se cada um diz que o seu país está acima de todos, o que fazer quando esses países entrarem em conflito. Se achamos que estas ideias são absurdas e erradas para os tempos que correm, cabe defender bem as ideias contrárias a estas, persistentemente e a longo prazo se necessário for. Mas quanto antes.
Porque, entretanto, olhemos para os maiores países e blocos regionais do mundo: os nacionalistas de extrema-direita governam os EUA, a Rússia, a Turquia, o Brasil. A China é uma ditadura nacionalista e revisionista, no Japão ganha sempre o mesmo partido e o primeiro-ministro nacionalista e revisionista é. Na Índia governa um presidente que não é só nacionalista, é sectário e tribalista, o Paquistão já era assim e veremos o que o novo primeiro-ministro é capaz de fazer.
O que sobra? Em termos de países ou blocos com significado global, sobra a Europa. Em particular, a Europa Ocidental, e o projeto em que esta se empenha há cinquenta anos, a União Europeia. Sim, com as prevenções habituais: a UE tem muitas imperfeições, tem um funcionamento frustrantemente opaco, e acima de tudo ainda é mais um clube de democracias do que uma democracia completa, embora isso possa mudar desde que passe a ser uma exigência cidadã. Mas convém perceber que a União Europeia, hoje, é o que sobra daquilo que conseguimos construir depois da IIª Guerra Mundial, o bloco regional mais integrado do mundo, e aquele em que — com dificuldades, é certo — os valores dos direitos humanos que pautaram a reconstrução do pós-guerra mais fazem parte da razão de ser da própria instituição. Só em 2009 os valores do estado de direito, dos direitos humanos e da democracia entraram na base jurídica fundamental da União, com o Tratado de Lisboa. Mas estão lá, logo no artigo 2, e é com base neles que tem sido possível fazer frente aos Orbán e aos Kaczynski deste continente, que só não são ainda Putin ou Erdogan porque pertencem à UE.
É necessário admitir que a UE, hoje, parece melhor apenas porque todos os outros parecem muito piores. É verdade. Mas mesmo que não seja por mais razões do que essas, cada vez é mais verdade também que a UE — com os seus defeitos e virtudes — é cada vez mais aquilo que uma vez lhe chamou Lula — também com os seus defeitos e virtudes — um património da humanidade.
É por isso extraordinário ver a incompreensão que ainda grassa entre os políticos e o comentariado — em particular na esquerda que se deixou encantar pelo "Brexit" e pelo nacionalismo — em relação à importância que a União Europeia tem ao chegarmos à terceira década do segundo milénio. Se o frémito com que alguns esperavam ver o colapso do euro e o fim da UE já era incompreensível antes desta vaga nacional-populista, que dizer da continuada eurofobia, nomeadamente à esquerda, num momento em que o fim do projeto europeu só poderia ser o melhor presente que pudéssemos dar aos fascistas de todo o mundo?
É que se há muita gente que ainda não percebeu a importância da União Europeia hoje, os fascistas já perceberam. Ou acham que Steve Bannon se mudou para Bruxelas por acaso? Ou acham que a Putin é indiferente o que ocorrerá nas eleições europeias do próximo ano? Ou acham que Trump ficará triste se delas sair um projeto europeu mais fraco? A quem cabe, então, defender esse projeto europeu — a cada um, evidentemente, na sua versão mais social, ou mais ambiental, ou naquela que acharem melhor? Será aos marcianos? Será aos que morreram e já não podem? Será aos que ainda não nasceram? Ou será àqueles que sendo cidadãos da União de alguma coisa beneficiaram com as três gerações de paz e prosperidade que ela garantiu, muito sofreram com os seus erros de gestão durante uma crise terrível, e muito têm a ganhar com a sobrevivência e democratização de um projeto ainda assim único.
Sobra a Europa. Se o projeto europeu colapsar e a Europa se fragmentar, nenhum outro grande país ou bloco regional fará frente ao avanço do fascismo globalizado. Se salvarmos o projeto europeu — e para o salvar temos de o melhorar e democratizar — é da Europa que teremos capacidade de resistir e de, com esforço, virar o jogo e preparar a contra-ofensiva. Mesmo que não haja na Europa forças nem clarividência para esse combate, ficará ao menos a União Europeia como demonstração de que pode haver lugar para uma política cujo objetivo é superar o nacionalismo e o tribalismo. E isso será, mais do que nunca desde a Guerra, precioso. Vamos enfim abrir os olhos?