O “elixir milagroso” chinês que ameaça burros por todo o mundo
Chama-se ejiao e é apresentado como um “elixir milagroso” obtido a partir da pele de burros. Problema: a China não tem burros suficientes para o produzir. E o comércio legal e ilegal destes “animais sociais e inteligentes” está a ameaçar o seu bem-estar e as comunidades que dependem deles, avisa um especialista português.
O médico veterinário português apercebeu-se da “gravidade do problema” durante uma acção de formação no Peru. A trabalhar junto de uma comunidade que depende do trabalho dos burros para subsistir, João Brandão Rodrigues, 36 anos, especialista na saúde oral destes animais, ouviu relatos de famílias que os vendiam para exportação ou directamente a matadouros. Outros falavam-lhe de burros que desapareciam, misteriosamente, durante a noite. Ou que apareciam mortos, esfolados.
“É quase sempre assim: quando te apercebes, o problema já está institucionalizado”, lamenta. Este, defende, “ameaça as populações de burros em todo o mundo” — culpa das “promessas vazias” de um “elixir milagroso” milenar, o ejiao, uma espécie de gelatina/colagénio obtida a partir da fervura da pele de asnos.
Com o enriquecimento da classe média chinesa, a elevada procura do dispendioso produto — que supostamente trata anemia, tonturas, insónias, acne, falta de energia, melhora a qualidade do sono, aumenta a libido e pode ser usado em cosméticos e na cozinha — deixou, nos últimos quatro anos,
de conseguir ser satisfeita somente com a pele dos burros criados na China. Os comerciantes “responderam com um frenesim estilo febre de ouro” e “têm andado à procura de burros por toda a parte”. Associações estimam que, todos os anos, sejam importadas 2,2 milhões de peles oriundas de África, América do Sul e algumas partes da Ásia.
O alerta não é de agora — já em 2016 o PÚBLICO noticiava que as importações chinesas de burros estavam a gerar mal-estar em África. Os primeiros apelos chegaram através da Donkey Sanctuary, organização sem fins lucrativos sediada no Reino Unido, com a qual João Rodrigues colabora. E já este ano estas mesmas preocupações foram reiteradas por um relatório da Humane Society International.
Em Fevereiro último, numa publicação no Weibo, a versão chinesa do Twitter, citada pela Donkey Sanctuary, a Comissão Nacional de Saúde e Planeamento Familiar chinesa terá admitido que “não valia a pena comprar" ejiao. A associação já conseguiu impedir que o produto castanho, brilhante, seja vendido no eBay, mas uma procura rápida no Google mostra que ainda é possível adquiri-lo através da Amazon. Uma caixa de 250 gramas produzida em Shandong — província no Nordeste onde está alojada a Dong'e Ejiao, a principal fábrica do “elixir”, onde trabalham mais de dez mil funcionários — custa cerca de 170 euros.
João Rodrigues conta que há “mega-quintas” na China dedicadas somente à criação de burros (o período de gestação das fêmeas dura um ano e normalmente só nasce uma cria). Como o objectivo é apenas retirar a pele, “tanto faz que o animal seja magro, ou gordo, bem ou maltratado”. Para conter os custos, há poucas preocupações com o seu bem-estar. Na África do Sul, por exemplo, há casos de “burros que são deixados a morrer à fome antes do abate”. “Estamos a falar de animais sociais, muito inteligentes e sensíveis a situações de stress.”
Para corresponder à procura desejada, diz o especialista, a China precisaria de dez milhões de burros por ano. Em todo o mundo, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura estima que existam 44 milhões (maioritariamente espalhados pelo México, a Etiópia, o Paquistão, o Quirguistão e a própria China). De 11 milhões de burros em 1990, a China tinha, em 2016, cinco milhões, atesta o relatório Under the Skin, apresentado pela Donkey Sanctuary em 2017. No Quénia, desde 2009 que a população ficou reduzida a metade (900 mil). No Botswana houve um decréscimo de 60%, no Quirguistão 20% e no Brasil 5%. Alguns dos animais são transportados por mais de mil quilómetros, muitas vezes sem acesso a alimento, água ou oportunidades de descanso.
“O que antes era um privilégio dos imperadores, tornou-se um produto de luxo do século XXI, promovido, vendido e distribuído numa escala global”, conclui o relatório. A China deverá produzir cinco mil toneladas de ejiao, por ano: números que exigem quatro milhões de peles. A produção naquele país só consegue alcançar 1,8 milhões. Por causa disto, países como o Burkina Faso e o Níger já proibiram o abate e a exportação de burros destinados a este comércio.
“Praticamente todos os países com populações asininas expressivas registaram um aumento no abate dos asnos para este mercado”, diz o relatório. “Parece haver dois processos de abate: o abate em matadouros oficiais ou acreditados pelo governo e o abate clandestino, em pequena escala, que muitas vezes envolve burros roubados.” O documento destaca o exemplo de uma aldeia na Tanzânia, onde os 24 burros de uma comunidade foram esfolados.
Como consequência, o preço de um burro nos países em desenvolvimento, onde vivem 95% destes animais, aumentou exponencialmente. Para estas populações rurais, com baixos rendimentos e com pouco ou nenhum acesso a tecnologia moderna motorizada, “os burros de trabalho são a fonte mais importante de energia”. Todos os dias, os animais carregam água, lenha, materiais de construção, pessoas e comida entre distâncias que, a pé, não seriam percorridas.
Um burro saudável, devidamente alimentado e arreado, pode trabalhar 50 mil horas durante toda a sua vida, explica João Rodrigues. “Representa, muitas vezes, o único meio de rendimento que sustenta uma família.”
O trabalho do burro também diminui os esforços da comunidade (maioritariamente feitos por mulheres e crianças), “aumentando a quantidade de tempo que pode ser disponibilizada para outras actividades, como a educação”, lê-se num dos papers escrito pelo especialista português, num capítulo precisamente intitulado de Burros e Igualdade de Género. “Ter ou não ter um burro pode decidir se uma criança vai ou não à escola.”