"Odiaria ser um totalitário do gosto"
Joaquim Manuel Magalhães publica neste mês de Novembro a mais recente reunião da sua poesia tal como a pretende preservar: Para Comigo. O poeta, o mais instigante ensaísta da poesia portuguesa, eminente tradutor de, entre outros, Kavafis, afirma querer concentrar-se apenas na escrita dos seus versos.
Seria difícil imaginar um poeta português de quem se aguardasse com tanta expectativa um novo livro de poemas como Joaquim Manuel Magalhães. Representa, na poesia portuguesa, algo diferente de um ponto de ruptura. A sua poesia constitui uma realidade muito menos unívoca. E, por isso, incomparavelmente mais aliciante. Nunca à sua escrita interessou o grito excessivo, fosse ele a declaração inflamada, ou a recusa “moderna” de uma prosódia próxima do falar, do discurso, da vida. Se usou e usa metros tradicionais, também subverte a unidade do verso, com processos que variamente boicotam o que é apenas a aparência plácida da tradição.
Contrariando um entranhado viés cultural, o do “francesismo” (de que já Eça se sentia culpado), aproximou-se da tradição anglo-saxónica. Poetas norte-americanos tão diferentes como e. e. cummings, Wallace Stevens ou Frank O’Hara, mas também ingleses, como Philip Larkin, Thom Gunn, Ian Hamilton, ou Michael Hofmann, poderão ter criado afinidades, mas nunca continuidades ou seguidismos, na poesia de Joaquim Manuel Magalhães. Intersectava-os uma recusa muito heterogénea da grandiloquência, a expressão sóbria e desafectada, um apego indesmentível ao fugitivo “real”. Esse mesmo que viria a ser, entre nós, motivo de tantos desentendimentos, logros e mal-entendidos, num certo mundinho por vezes crismado de “meio”. É ainda possível ler, em Para Comigo: “Apenas o real.” Talvez não por acaso, dois livros de Joaquim Manuel Magalhães se chamaram Consequência do Lugar, um título autónomo e uma reunião de parte da sua poesia.
Estreado com Poemas (edição policopiada num envelope de António Palolo, 1974), desde cedo na sua bibliografia levou a cabo aquela que é a mais radical operação de reescrita da poesia portuguesa. Muito antes de chegarmos ao mais recente momento desse dinâmico reescrever, Para Comigo (Relógio D’Água, 2018), encetou diversas alterações, dentro dos poemas que integravam cada título autónomo. Em cada novo livro de poesia que publicava, ia rasurando e reagrupando, excluindo conjuntos, ou reduzindo-os em número de composições — numa imparável ordem de reescrita. Quando pela primeira vez coligiu os poemas que “pretend[ia] preservar”, como então escreveu, em Alguns Livros Reunidos (Contexto, 1987), fazia-a já “com inúmeras alterações”. E, uma vez mais, havia deslocações modificadoras de poemas, os quais, em certas instâncias, transitavam de um para outro grupo de textos. Nessa primeira reunião, autonomizaram-se dois livros que longamente permaneceriam isolados: Os Dias, Pequenos Charcos (Presença, 1981), Segredos, Sebes, Aluviões (Presença, 1985). Mais tarde, quando voltou a reunir, em Consequência do Lugar (Relógio D’Água, 2001), “o conjunto de livros que”, dizia, “sinto serem a primeira parte de uma obra que se pôde ir continuando”, manter-se-iam igualmente autónomos: Uma Luz com Um Toldo Vermelho (Presença, 1990), A Poeira Levada pelo Vento (Presença, 1993) e Alta Noite em Alta Fraga (Relógio D’Água, 2001). Foi, no entanto, Um Toldo Vermelho que mais intensificou a acção reorganizativa e modificadora da poesia reunida de Joaquim Manuel Magalhães. Uma “Nota” que encerrava o livro decidia, liminarmente: “Este volume constitui a minha obra poética até 2001, a que acrescento um poema publicado em 2005. Exclui e substitui toda a anterior.” São palavras para serem tomadas à letra. Assim foi, e será, ao que tudo indica. Um Toldo Vermelho aglutinava num só volume livros anteriores submetidos a profundas e decisivas alterações. Um gesto que eliminava diversos nexos frásicos, carregando o tom elíptico, optando por uma textura muito menos narrativa do que declarativa. Mais do que relatar uma situação, a sua poesia passou a constatar o núcleo, o sumo de tudo. Ao longo de todo este processo, não se deve reter apenas o processo da escrita, mas o que parece ser uma vontade de declarar obliquamente. Talvez seja desaconselhável fixar demasiada importância num cotejo literal e obsessivo de variantes. Não apenas porque se trataria de um exercício de futilidade, mas por estarmos diante de realidades textuais que mutuamente se excluem. Se daqui resulta um paradoxo, poderá ser razoavelmente indiferente. No entanto, Um Toldo Vermelho e, sobretudo, o novo Para Comigo parecem compelir uma leitura autónoma do que se concentrou num só livro. Para Comigo constitui, hoje, o que Joaquim Manuel Magalhães pretende preservar e fixar da sua poesia.
Tocado pelo serialismo de Anton Webern, transportou para a sua poesia actual a preocupação com a individualidade sonora de cada palavra que comparece nos seus poemas, de forma a evitar a repetição vocabular e a promover a exclusão sistemática de sonoridades que lhe desagradam na nossa língua. Todas estas preocupações, contudo, não devem fazer pensar numa poesia formalista, como a de Joaquim Manuel Magalhães de forma nenhuma é.
O processo de reescrita da sua poesia prévia parece-lhe comparável ao que fez Carlos de Oliveira com as notificações que foi fazendo aos livros dele?
Carlos de Oliveira é um dos poetas portugueses do séc. XX que eu mais admiro. Tive a sorte de o Eugénio de Andrade ter feito com que nos encontrássemos. Só estive essa vez com ele, mas ficou-me uma memória inapagável de amabilidade e generosidade. Era também um homem com uma presença encantadora. Admirei muito as mudanças que ele introduziu ao quase completo conjunto da sua obra, reunido a seguir em Trabalho Poético. Lembro-me de ter sentido um grande prazer em escrever sobre esse facto. É óbvio que tal atitude me marcou. O Herberto Helder deve ter sido o poeta português desse século que mais alterou a sua obra, mas desse trabalho nele nunca retirei admiração. (Aliás, se estivermos atentos, também encontramos uma grande pluralidade de alterações no Eugénio e no Cesariny, por exemplo. Contudo, também admiro poetas que nunca nada mudaram, nem uma vírgula, como Jorge de Sena, por exemplo. Odiaria ser um totalitário do gosto. Prefiro a consciência de cada um poder fazer o que mais lhe agrada, a ser guarda-fiscal de nenhuma atitude.)
Contudo, eu tive que ir mais longe para conseguir recuperar um pouco da minha obra que passara a detestar, por razões não meramente declarativas, mas morfológicas e fonéticas. Pensei muito e quem me ajudou a perceber melhor o caminho por onde me re-encontrar foi uma profunda atenção à obra de Anton Webern, tanto musical como teórica. É a Anton Webern que devo, de facto, tudo o que me fez re-escrever e ficar feliz com isso.
A sonoridade que busca tem alguma relação com a sua adopção do Acordo? Parece-lhe que ele o auxilia nessa procura fonética?
O Acordo Ortográfico não me poderia auxiliar em nada. É uma mera convenção (ainda gostava de passar por outro antes de morrer). Ajuda a mente a ter de aprender regras ortográficas novas e esse processo contribui para o cérebro não se anquilosar em passados. Todas as rotinas de mim mesmo me inquietam, assim tive de fazer um tanto de ginástica neuronal, uma vez que detesto fazer ginástica física. Nunca percebi bem estas inquietações de alguns, a começar cá por casa. A primeira lição da caducidade das ortografias tive-a em muito pequeno. A minha avó recebeu um recado de uma funcionária, onde lhe dava conta da necessidade de chegar mais tarde por ter de ir à “miça”. A minha avó tentou corrigi-la e eu ouvi esta resposta educada: “A senhora percebeu, não foi? Então não se preocupe.” (Gostei sempre do encantamento do erro, nos outros e em mim.)
As ortografias terão de ter mais razoabilidade, mas no fundo são convenções com que se pode brincar. A fonética e tudo o daí para mais dentro já não se compadece com acordos. Dependem do evoluir da própria língua, tanto por via erudita como popular. Mas estas coisas aprendem-se ao aprender português. Razões metafísicas para se indispor com isto não passam da liberdade para alucinar.
Julgo que haverá palavras que eu ortografo com acentos, por exemplo, sempre que tenho dúvidas de que uma homofonia qualquer me vá poder fazer perder o sentido do que escrevo. Aí não sigo o acordo. Mas também no tempo do anterior já o não seguia em várias ocasiões.
Portanto, nada da ortografia me poderia ajudar nas minhas tentativas fonéticas ou morfológicas. Só existe uma alteração ortográfica, que pretendo que seja uma homenagem a Pessoa: o modo como ele grafou “desasocego”. (Embora esta situação, que na edição crítica das suas obras me entusiasmou e por quem estimei o perspicaz investigador, se tivesse tornado uma história um pouco suja quando ele aceitou escrever do modo que toda a gente o fazia, na sua edição vulgar.) Por mim, fiquei muito feliz por poder manifestar o meu apreço pelo Pessoa e pelo seu Soares de um modo que não fosse uma citação de outro qualquer facto verbal de todos eles.
Quando muda palavras de lugar no verso, as desloca, suprime outras, ou acrescenta, responde sempre a um “apelo” semelhante, a uma vontade igual, uma qualquer razão, ou razões? Que tipo de razões ou intuições aí haverá?
Como explico no título que dei aos dois conjuntos de poemas, a partir da nova edição desenhada pela Vera Velez, não há intenção para fora de mim absolutamente nenhuma. Fiquei contente com a acalmia que em mim se instalou. Agora nunca mais olharei para este volume na Relógio D’Água. O Francisco Vale e o Carlos, seu filho, serão as pessoas práticas para tomarem conta do seu destino. Eu nada mais tenho a introduzir ou a retirar. Os livros passados desapareceram para mim. Sei que eles existiram, mas não quero saber deles. Agora volto a ter mente para trabalhar no muito que tenho pronto para isso. Pela legislação atual, se ainda se lembrarem de mim, podem publicar o que quiserem de aqui a setenta anos depois da minha morte (que vontade de rir).
Podia dizer o que foi o Galopam [retomado em Para Comigo] desenhado por Vera Velez? Não teve edição comercial?
Em 2014, pedi à Vera Velez — ela tem feito livros magníficos — se quereria fazer uma 2.ª edição de Um Toldo Vermelho e uma edição de um livro novo chamado Galopam. Ela fez-me dois livros lindíssimos e de um despojamento de gosto extremo. Assim o senti, quando os fui buscar.
A tiragem de ambos os livros foi apenas de 100 exemplares cada um. Com esses livros escondi-me da maioria do público leitor. Nunca foram postos à venda e só os dei a amigos. Nunca ninguém revelou nada, pelo que estou muito agradecido. Agora que o tempo foi passando, comecei a sentir-me mais seguro no desprendimento das mundanidades poéticas, para que não tenho jeito, mais desprendido do mundo das vozes que peroram e até das imensas gargalhadas que dava quando encontrava na rede comentários. Diziam mal e eu ficava muito satisfeito. Ao menos, tudo isso me afastou de tornar-me um poeta vendável em demasia ou um mestre-escola a conduzir discípulos, sempre detestei e afastei alguém que eu sentisse que era isso. Só consigo gostar dos poetas que nunca se tornam isso verdadeiramente em vida. Decidi então juntar os dois livros, neste PARA COMIGO. Foi este o caminho. Certo ou imperdoável, é-me indiferente.
E em relação à acalmia? Pode falar dela? Consegue explicar o que é?
Uso acalmia para designar um enfado de que nunca me livrava com os meus livros de versos. Sempre que me chegavam às mãos não conseguia gostar deles. Quando comecei a poder juntar livros publicados, tentava resolver a situação com emendas parcelares. De novo não me sentia bem. Nunca gostei da minha poesia, mas no fundo tinha-lhe um inquietante amor, precisava daquilo para o meu dia-a-dia e para o meu equilíbrio íntimo. Não me pergunte porque precisava. Mas eu sentia que só por aí me libertaria do tédio que foi, para mim, ser professor durante tantos anos.
Subitamente percebi. Publiquei a 1.ª edição de Um Toldo Vermelho. Mas senti que o livro estava mal organizado. Precipitara-me sobretudo nas sugestões que dera para a separação das estrofes. Revi tudo com os livros da Vera [Velez], os quais me mostraram imenso graficamente. Aprendi com ela acerca do espaço dos versos num livro. Sobretudo fui capaz de perceber que podia aplicar a ambos os livros os meus intuitos. Agora juntei-os e, repito a palavra, “acalmei” de todo aquele fervilhar. Nunca mais, sinto-o com segurança, mexerei em Para Comigo. Melhor dizê-lo mais enfaticamente que nunca mais o lerei. Só se alguém me apontar alguma gralha ou outra, o que eu reencaminharei para o Francisco e o Carlos se quiserem voltar a publicá-lo em qualquer altura.
Estou tão grato a tanta gente que me ensinou. À Judith Beatriz de Sousa que me deslumbrou com a literatura no liceu de Vila Real, onde tive a felicidade de ela estar antes de vir a fixar-se no Camões de Lisboa. Nunca esquecerei Maria Helena da Rocha Pereira ou Vítor de Aguiar e Silva, na horrível Coimbra, gigantes e ambos atentos ao miúdo que lhes devia largar tanto disparate. Depois aprendi a própria forma como eu gostaria de ensinar com Vitorino Nemésio. Tudo tão bom e de imensa sorte.
E posso perguntar alguma coisa sobre esse “muito que tem pronto”?
Pode. Escrevi nestes anos imensa coisa. Não consigo escrever, mesmo pequenas notas, sem as minhas canetas de tinta permanente, os objetos que mais adoro e de que preciso em uníssono com os bicos muito grossos e os papéis por onde a tinta corre com prazer acrescentado. Dependo completamente delas para escrever seja o que for, nem as listas do que trazer do supermercado consigo fazer sem elas.
Tudo aquilo que escrevi foi passado a fotocópias e desordenei por completo a própria ordem arbitrária. Depois guardei. Era uma montanha de fotocópias, mais de cinco mil, bastante mais.
Saí do país com aquilo. Fui para a Grécia, Atenas. Durante três anos, mais de um mês cada ano, arranjaram um hotel com duas mesas no quarto de que eu não saía, a ver o que fazer com aquilo. Claro que saía, mas sempre no continente. Quem andava pelas ilhas era o Pratsinis e a mulher e o João. Sempre me dei mal com o mar e não era por se chamar Egeu ou Jónico que me punha a querer andar por ele.
Esse trabalho resultou em imensos grupos de um poema só, talvez demasiado longos, ainda não sei. Grupo atrás de grupo vou eu começar a escrever agora, sem me lembrar de outra coisa senão a pequena vibração que lhes senti. Vamos a ver o que acontecerá. Se um livro, se dois. Isso ainda não sei. Até pode ser que resultem três. Por isso usei a palavra muito, é a que eu ouço de mim para mim.
O seu poema Homossexualidade, concebe-o como libelo, síntese, nota, “documento histórico”, no sentido em que possa fazer especialmente referência (oblíqua ou não) a uma época específica? Ou foram (são?) todas as épocas assim? Ou há outro sentido, tensão organizadora, motivação?
Quando escreviHomossexualidade foi um pouco por sentir que Portugal estava a afastar-se de vários países que eu respeitava. A maior mágoa, devo confessá-lo, foi o atraso relativamente a Espanha. Não acredito na função social da poesia, mas escrevê-lo foi tornar tudo mais óbvio para quem me tivesse lido. Desde a minha primeira publicação que nunca abdiquei de que a base do que escrevia tinha a ver com a minha identidade sexual. Fala um pouco da crítica portuguesa que nunca ninguém tivesse referido esse elemento essencial. Foi um espanhol (Miguel Casado) e um francês (Fernando Curopos) quem, naturalmente, falou pela vez primeira nessa obviedade e, para mim, banalidade.
Em Junho de 2010, Portugal mudou, nesse aspeto. Pude logo nesse mesmo mês casar-me com a pessoa com quem vivia desde os meus 18 anos, em 1964.
Este assunto, todavia, merece-me umas certas considerações.
Em primeiro lugar, não foram os homossexuais por si só que conseguiram essa modificação. Foi o facto de a realidade da luta que começara, no mundo Ocidental, com os Stonewall Riots e se expandira pouco a pouco por todo esse mundo que começou a mostrar um caminho de afirmação a muitos homossexuais, se não a todos os homossexuais. Essa afirmação foi tendo múltiplos ecos expansivos. Mas só começou verdadeiramente a atuar no mundo social quando as/os heterossexuais compreenderam essa mesma luta. Foi o convencimento das/dos heterossexuais que conseguiu imenso ajudar a alterar as leis. Eles estavam maioritariamente nos locais que podiam proceder a essas alterações e fizeram-nas acompanhados por vários homossexuais a quem pediram ajuda para proceder a essa alteração. Se as/os homossexuais se voltarem para uma não relação prática e efetiva com o mundo maioritário das/dos heterossexuais que os escutam, terão muito a perder.
Bom, isto é um pouco como o que se passou com o 25 de Abril. Dificilmente a oposição civil ao Estado Novo teria alguma vez sido capaz de um derrube desse regime, é um facto que nunca o conseguiu. Foram os militares, talvez só pudessem ser eles, que tudo derrubaram. Curiosamente nunca quiseram assumir um poder só para si. Pediram auxílio aos núcleos políticos que se agitavam no tecido português da altura. Esses políticos ajudaram os militares e o facto é que o novo regime nunca caiu em nenhuma tirania. Os homens contra a situação puderam avançar por os militares lhes terem aberto o caminho e pedido a sua ajuda.
O mesmo com as alterações legislativas de 2010. Os homossexuais sempre combateram por esse espaço de equidade, mas nada puderam introduzir eles próprios nas leis constitucionais. Foi a crescente atenção dos heterossexuais politicamente representativos que, sem dúvida aconselhando-se com homossexuais, que permitiu essa mudança. Num certo sentido foram os heterossexuais quem permitiu a abertura aos homossexuais e ajudou na alteração legal. Foi um trabalho duro por parte das/dos homossexuais, mas foram heterossexuais quem pôde legislativamente avançar.
Hoje, quando ouço ou leio referências a uma pseudo-heteronormatividade fico muito crispado. Primeiro, porque foram as/os heterossexuais a prescindir dos direitos que tinham para aceitar e incluir a pluralidade das orientações sexuais. Segundo, por terem tornado inteiramente iguais às deles todas as prerrogativas legais. Terceiro, porque entre as/os heterossexuais sempre houve distinções comportamentais muito claras, tal e qual quanto as havia entre as/os homossexuais (por isso invocar libidos pessoais tornando-as dogmáticas é não saber pensar: a libido é inelegislável e do foro sempre enigmático e belo de cada indivíduo). Todos os que falaram antes nessa heteronormatividade foram pensadores e ativistas que estavam a tentar pôr a claro as suas reivindicações. Depois de todas essas alterações em tantos países é um tanto absurdo repisar nelas nesses países. Se pensarmos em termos da globalidade das nações sem dúvida que teremos de ter sempre essa ideia presente, mas não entre os que já não têm normatividade contra que reagir. Não me esqueço, porém, que o movimento LGBTI será sempre de continuar ativo e nós a não nos afastarmos dele.
O problema das normatividades encontra-se sempre preso não às maiorias sexuais, mas a quase todas as religiões que sufocam o mundo. São as religiões que introduzem essas normatividades e as fazem atuar. Não vale a pena perder mais tempo com esta óbvia questão.
Por uma questão de verdade meramente biográfica, tenho alguns grandes amigos que são profundamente católicos e, por acaso, inteiramente heterossexuais. Foi onde encontrei sempre um espírito completamente livre em questões sexuais. Talvez por neles o facto religioso não necessitar nunca de se tornar um facto de moral oblíqua. Deve haver outros assim noutras religiões. Mas eles são indivíduos, as religiões são massificações alienantes.
Só para concluir. Hoje em dia persiste a doença mais difícil de curar: a fobia. Penso que muita gente padece dessa fobia, entre as/os heterossexuais e entre as/os homossexuais. Mas isso é uma outra questão. Há por exemplo uma fobia, para lá da junção dos sexos, que diz: só a esquerda aceita o ser homossexual (uma parvoíce absoluta). Alguns dessa mesma esquerda portaram-se ridiculamente, fobicamente, quando um membro de um partido de direita se afirmou como homossexual. Fiquei envergonhado com o que li e ouvi. Este é um caso de homofobia por parte de homossexuais, o que me desgosta porque parecem esquecer-se dos séculos que se viveram e se esquecem do respeito que devemos pelas opções de cada um.
Num poema seu, anterior, leio: “Detesto a poesia. Essa tarefa/ debruada de troca social.” Detesta? O que acha mesmo sobre a poesia? O que lhe apetece dizer sobre ela?
Repare. Embora a fonética da palavra “detesto” me mostre que está a referir poemas que me desagradam já, afirmo-lhe que continuo a pensar que detesto a poesia. Aquela que surge para ser poesia, a que se afirma antes de tudo o mais como cartão-de-visita, a que apressadamente procura de imediato um pedestal. Escrevem-se várias coisas que o tempo se encarregará de esquecer ou a que o tempo (dizendo melhor, o contínuo refazer dos gostos pelas várias épocas) lhes atribuirá um sentido. Querer ver para além disto, no imediato, sempre me pareceu má teoria (não sei se existe alguma boa sobre este assunto) e mau impulso. Sempre combati as imensas teorias com que me fui defrontando (tenho o testemunho de imensas pessoas de que nunca me ouviram defender nenhuma, pelo contrário sempre procurei desligar delas a sua atenção aos versos — é o acaso de se ser professor. Sempre me ri dos que se punham em bicos de pés para serem avistados com papéis agitados ao vento dos leitores. Isso mesmo em que me pareço tornar agora, não é?
Há aquele poema seu, em que lhe dizem, depois de 74, que podia “deixar em paz os poetas ingleses”. Agora de que nacionalidade seriam esses poetas? Já não seriam espanhóis?
Desculpe, mas eu não disse nada disso. Quando a seguir ao 25 de Abril me dirigi ao Diário de Lisboa onde sempre escrevi sobre a poesia inglesa que ia saindo, umas coisas pouco boas, mas que podiam talvez desviar para fora do francesismo dominante as atenções de quem podia ler. Cheguei lá e levava um texto sobre George Steiner (que não era um poeta). Publicaram-no, mas chegou um engajado qualquer ao pé de mim a dizer-me, com a alegria que ambos partilhávamos, que podia deixar de escrever sobre poetas ingleses. A insinuação era de que eu era livre agora para poder escrever sobre poetas portugueses o que, no seu pensamento, eu não faria por causa da censura prévia, sei lá. Nunca mais escrevi nada para esse jornal, sobretudo pelo choque de não perceberem que eu não estava a escrever nada contra o meu desejo. Eu quis escrever aquilo. Já antes eu havia falado sobre muitos poetas portugueses e continuaria a fazê-lo depois.
Em poesia portuguesa, o que é que o Joaquim Manuel Magalhães não “deixa em paz”? Ou seja, o que é que lê com prazer, interesse, vontade?
Sobre poesia portuguesa eu creio ler tudo, mesmo a situação atual de a melhor poesia estar em livros que não aparecem nas livrarias, por serem publicados em editores sem distribuição. (Também isso é irrelevante, porque também já não há livrarias.) Leio porque leio, é um hábito que me ficou desde que me lembro, desde a altura dos meus 14/15 anos a amar a poesia da Florbela e do Gomes Ferreira. Tive um pai extraordinário, que só queria para mim o que eu quisesse, abriu-me uma conta numa livraria que ele depois pagava. Nunca pensou que eu lhe fosse gastar tanto dinheiro em livros, ainda por cima sendo ele um homem que nunca gostara de ler, poderia ter gostado, mas não gostou. O meu pai é uma figura cimeira na minha vida, um pouco mais acima de outro cimo que é a poesia portuguesa (sem esquecer que sempre a li em contraponto com a poesia de várias outras línguas). Nessa altura já era capaz de ler em francês e em inglês e em espanhol. Nunca fiz uma leitura provinciana da nossa poesia, por isso me espanto com as cotoveladas que os poetas dão uns aos outros por causa do seu lugarzinho efémero. Mas hoje sei bem que sempre foi assim e encolho os ombros.
O que lhe sugere uma cidade, como Lisboa, sem livrarias? A situação no Porto não é excessivamente diferente, ressalvadas algumas excepções.
Mostra-me um demasiado vazio, sobretudo por nesses armazéns apenas se encontrarem estes livros inúteis que dizem ter um público. Um gosto público que se abastece de nada, nem sequer sabe se gostará de ler. Gosta de ler o que para ali está. Mas em Londres, Paris, Madrid também já não há livrarias ou boas casas para poder comprar discos. Encontrei uma em Berlim, mas também já deve ter desaparecido. Falam em globalização. Mas onde encontrar tanto o antigo como o novo a não ser nas Amazon europeias ou equiparáveis? (Digo europeias por as de fora da Europa obrigarem a desalfandegações incomportáveis e abomináveis.) Parece que os das alfândegas se estão a vingar das que perderam.
Passa-se isso com tantas lojas tão úteis, como por exemplo as boas que existiam ligadas às belas-artes. Toda a gente se lembra de outras ainda, por certo.
Parece-lhe que o “momento” da poesia portuguesa é especialmente interessante?
Não sei nada de momentos, apenas sei de sentimentos. Tenho muito bons sentimentos para com a nossa escrita poética em volta do início dos anos 70. Já sabe que não irei falar do poeta pelo qual tenho mais afeto, por uma questão de decoro.
Desde essa altura e avançando por ordem decrescente de idades, começava por referir obras de Alberto Pimenta, Fernando Assis Pacheco, António Franco Alexandre, Paulo da Costa Domingos, Rui Baião e Gil de Carvalho. Quase pela mesma altura, apareceu a obra do agora silencioso Fernando Luís Sampaio. Também José António Almeida. Mais adiante Rui Pires Cabral e José Miguel Silva, logo a seguir a eles Manuel de Freitas. Também Jorge Roque, mas ele é transgénero, escreve prosas e eu leio-as como poemas, não se deve zangar por eu dizer isto, espero bem. Não lhe parece que é para sentir uma emoção feliz?
Espero não me esquecer de alguém. Que me insinuaria?
Entre os mais novos, estou muito atento a três. Frederico Pedreira, Sebastião B. Cerqueira e Fábio Neves Marcelino.
Lembro-me, ou creio que me lembro, de dizer que traduzir era bom para não escrever, ou (o tom pareceu-me esse) porque não escrevia, porque traduzia. Se me lembro bem, e disse isto, ainda se aplica, para si? Continua a traduzir? Posso saber alguma coisa sobre isso, e sobre o que acha da tradução, tal como a faz?
Pergunta excelente para poder continuar a responder à anterior. Ler poesia estrangeira sabendo a língua original é um ato de tradução muito profundo. Quando me deu para traduzir, só traduzi porque gostava de o fazer com alguns autores. Porque num certo momento da minha vida gostava dessa atividade. Hoje não gosto, por isso não me vejo a traduzir mais seja o que for. Tal como não me vejo a escrever mais artigos sobre qualquer coisa. Perdi o gosto e foi uma boa conquista, pois pude caminhar mais para dentro de mim. Continuo, porém, esse ato de tradução que é ler em línguas estrangeiras, sobretudo os que vão sendo o mais recente, sem o que sufocaria.
Nesse campo, contudo, parece-me que só houve uma tradução que me tivesse dado e continue a dar um grande gosto. Foram os poemas todos que Kavafis nos quis deixar. É a única tradução completa e talvez a que tenha menos erros. Mas não sou eu quem se deve pronunciar. Só um crítico que saiba mesmo grego moderno. Os que não sabem ou devem ficar calados ou não trepidar não sei por que mecanismos pessoais. Foi para mim uma tradução fulcral, não só pelo desde sempre tão amado poeta, como pela companhia da figura imensamente culta que partilhou comigo a tradução, o Nikos. Estou sempre a aprender coisas sem fim com ele, mesmo fora do campo estrito de Kavafis. Às vezes passamos um dia a falar e ao fim do dia traduzimos uma estrofe. Havia um intuito de traduzir os poemas inacabados que ficaram depois da sua obra, mas já nem isso me apetece, não iria acrescentar grande coisa, apenas satisfazer curiosidades. Não quero, repito, perder mais tempo com outras coisas que não sejam os meus versos.
Devo depreender que não quer dizer mais sobre o ter deixado de querer traduzir e escrever artigos?
Ter deixado de traduzir ou de escrever artigos foi um ato de limpeza que resultou de um modo retumbante comigo. Traduzir é perder tempo, dá muito trabalho, a maior parte das vezes as coisas ficam tortas em português e percebemos logo que não resultam bem e não pode ser de outra forma. Os artigos têm um peso que nos entristece, percebemos no sangue quanto tudo é passageiro e ficamos sem fôlego para o que gostamos mesmo de viver ou escrever. Agora percebo isso. Ajudou-me a respirar melhor, como a poesia sempre faz. E a ter todo o tempo que me resta (e que será sempre pouco) apenas para me entregar a ela.
Nunca gosto de falar de poesia de um modo tão abstrato, sinto-me ridículo. Por isso digo que o que aconteceu com as traduções de poemas e com os artigos tem a ver com uma alteração radical dentro de mim. A casa da praia e o que havia em Lisboa foi tudo vendido depois de termos passado a viver aqui. Senti-me tão bem neste largo espaço que já nem compreendia como viver fora dele. É cerca de uma aldeia da freguesia do Carvalhal, que pertence ao Bombarral, fica a três quartos de horas de camioneta direta até Lisboa. Mas é mais do que suficientemente longe, está longe de ser o que chamamos um arrabalde. O Carvalhal é muito bonito, mas eu vou sobretudo ao Bombarral. É uma vila meia morta, com ruínas, uma grande mata e onde as pessoas são muito simpáticas. Gosto daquela tranquilidade meio ativa, do café a que vou, entre outras coisas mais. Fazer esta escolha foi muito benéfico. Deixar as outras casas, como deixei as traduções e os artigos, fortaleceu-me as “emotions recollected in tranquility” (do Wordsworth de quem gosto muito e que foi o primeiro poeta que tratei nas minhas primeiras aulas) com muito mais vigor e com uma passagem do tempo muito boa. No fundo está tudo como bom estrume donde os versos brotem. Senti sempre Lisboa como uma pequena cidade absurda, vou lá para um ou outro pequeno afazer e logo volto. Que ninguém pense em bucolismo, sou o invés desse tema. Pense-se antes num “hortus conclusus” (no seu sentido latino original, sem qualquer ligação ao modo como o cristianismo o folclorizou) até onde me chega (graças à internet) o recente de tudo quase dois dias depois de ter sido posto à venda. Talvez se trate, também, de extravagância, uma coisa de que gosto imenso.
Nota: Esta entrevista foi feita por escrito. As perguntas e demais textos seguem o Acordo Ortográfico de 1945. JMM segue o Novo Acordo Ortográfico. “Aderi ao acordo ortográfico imediatamente, um acordo é algo irrelevante para a língua, só os místicos fumarentos supõem que é importante, mas não passa de uma renovação de feitiços.” (JMM)