Fotolivro
Na capital da Tchetchénia não há cicatrizes de guerra, mas feridas abertas
À semelhança de muitos russos, as fotógrafas Olga Kravets, Oksana Yushko e Maria Morina cresceram com uma guerra longínqua em segundo plano. A guerra da Tchetchénia, que decorreu entre 1994 e 1996 — e regressou entre 1999 e 2009 —, acontecia “à margem do pensamento e do próprio país”, pode ler-se no prefácio do fotolivro Grozny: Nine Cities. “Era [uma guerra] irreal e distante, mas, ao mesmo tempo, tínhamos consciência de que era o local onde se concentrava mais dor nas proximidades.” Na televisão russa repetiam constantemente que o inimigo era muçulmano, terrorista e que torturava, impiedosamente, os soldados russos. “Diziam-nos que o nosso exército sofria às mãos de um povo brutal, desprovido de humanidade.” Em 2009, chegou finalmente a notícia de que a Rússia tinha ganho a guerra. “Por essa altura, já tínhamos ouvido tantas histórias diferentes acerca da Tchetchénia que sentimos necessidade de vê-la com os nossos próprios olhos.”
Impelidas por esse desejo, Olga, Oksana e Maria visitaram repetidamente a capital tchetchena, Grozni, entre 2009 e 2017, na esperança de capturar visualmente os vários aspectos da cultura e identidade da Tchetchénia, em cenário pós-guerra. Debruçaram-se sobre nove faces da vida tchetchena, as que viriam a compor os nove capítulos do fotolivro que editaram em 2018: homens, mulheres, estranhos, famílias comuns, a ascensão de Ramzan Kadyrov, petróleo, religião, guerra e a vida passada da cidade. Fotografaram proficuamente e gravaram dezenas de testemunhos de pessoas que vivem presentemente na cidade e assistiram à guerra; registaram, também, o depoimento de refugiados de guerra que recordam a cidade como campo de batalha, homens e mulheres que foram sujeitos a tortura e forçados a fugir.
As feridas que se mantêm abertas no coração tchetcheno resultam de mais de uma década de violações dos direitos humanos: assassinatos, sequestros, tortura, desaparecimentos, migrações forçadas; a violência russa acabou por determinar que a Tchetchénia seria parte integrante da Rússia e não um estado independente, em 2009. “O centro de Grosni está irreconhecível para quem só o viu durante as duas guerras. Quase nenhum edifício foi poupado. Hoje em dia, há muitas coisas terríveis escondidas por detrás das novas e brilhantes fachadas de Grozni. Apesar de todas as feridas que escondem, as pessoas hoje dizem ‘Deixem-nos ficar com o poder, com o petróleo, mas deixem-nos viver em paz’”.
A avenida central de Grozni chama-se Vladimir Putin e os retratos do líder russo estão espalhados um pouco por toda a cidade. Os tchetchenos aceitaram esse compromisso em nome da paz. “Se houver menos possibilidades de um filho de repente desaparecer, óptimo. Se não tiveres necessidade de te esconder do fogo de snipers na tua rua, fantástico. Podes odiar o teu governo em segredo, mas o que mais podes fazer?” Este é, segundo as autoras, um pensamento partilhado por muitos tchetchenos. O ambiente político tchetcheno está longe de poder ser considerado uma democracia. Em Grozny: Nine Cities, alguns testemunhos tornam isso claro. O filho de Aima Makayeva, por exemplo, desapareceu na véspera das eleições presidenciais russas, em 2012. O desaparecimento de independentistas tchetchenos era trivial, durante a guerra. Actualmente, a perseguição de várias minorias mantém-se bem viva, nomeadamente a perseguição estatal de indivíduos homossexuais.
O fotolivro de Olga Kravets, Oksana Yushko e Maria Morina, editado pela Dewi Lewis, faz um retrato completo e profundo da sociedade tchetchena do século XXI. A viagem através das 348 páginas exige atenção ao detalhe e vontade de saber mais sobre a realidade de um território de características singulares, ainda profundamente marcado por feridas de guerra.
As fotografias estão em exposição no festival internacional Les Rencontres d’Arles, em França.