Soberania e nação na América? Mas isso são ideias europeias…
A teoria clássica da soberania do Estado é, nos seus traços fundamentais, muito francesa e indiscutivelmente europeia.
1. O discurso de Donald Trump na 73.ª Assembleia Geral das Nações Unidas teve, como era previsível, significativas repercussões internacionais. “Nunca vamos entregar a soberania da América a uma burocracia global não eleita, que não presta contas. A América é governada por americanos. Rejeitamos a ideologia do globalismo e abraçamos a doutrina do patriotismo”, afirmou Donald Trump. Acrescentou ainda: “Reconhecemos o direito de todas as nações nesta sala de definirem sua própria política de imigração, de acordo com seus interesses nacionais. Assim como pedimos aos outros países que respeitem o nosso próprio direito de fazer o mesmo” […]. “Essa é uma das razões pelas quais os EUA não participarão no novo pacto global sobre migrações. As migrações não devem ser governadas por um órgão internacional, que não presta contas aos nossos cidadãos.” (Ver “Na ONU, Trump defende soberania norte-americana em detrimento de acordos e fóruns globais” in ONUBR, 25/09/2018). Em defesa da soberania e do interesse nacional Donald Trump invocou ainda a “doutrina Monroe”, enunciada por James Monroe, presidente dos EUA no século XIX, numa mensagem ao Congresso em 1823 (o que ressoa bem no público norte-americano): “Julgarmos propícia esta ocasião para afirmar, como um princípio que afecta os direitos e interesses dos EUA, que os continentes americanos, em virtude da condição livre e independente que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados, no futuro, como susceptíveis de colonização por nenhuma potência europeia […]”. Mas estará Donald Trump, na sua lógica egoísta de soberania e patriotismo, tão isolado mundialmente e imbuído de uma visão do mundo passadista, como parece aos olhos dos europeus da União Europeia?
2. Uma das poucas coisas em que os EUA, a Rússia e a China actualmente estarão de acordo é na defesa da sua própria soberania e na necessidade de incrementar valores patrióticos nos seus países. Na Rússia, Vladimir Putin tem feito diversas declarações inequívocas nesse sentido. (“Ver Putin: ‘Russia will be a sovereign state or cease to exist’” (RT News, 5/12/2014). Recentemente, afirmou que se a Rússia tiver de escolher entre o investimento estrangeiro e a independência escolherá esta última, ou seja, a independência e uma soberania plena, sem hesitações. É uma rejeição clara do globalismo e da lógica liberal do comércio internacional actual. (Ver “Putin: Choosing between sovereignty and investments, Russia will choose independence” (Tass, 25/05/2018). Quanto à China, apesar da abertura dos mercados internacionais ser altamente conveniente, e necessária, às suas exportações, está na mesma linha política. É intransigente no princípio de defesa da soberania do Estado, do qual a não ingerência estrangeira é uma faceta fundamental. Assuntos como os direitos humanos, o Tibete ou a situação da minoria uigur do Xinjiang, são exclusivos da sua soberania interna. (Ver “The politics of non interference – A New World Order” (China Daily, 25/01/2016). Para além de tornar o princípio da soberania estadual — e não-ingerência externa que lhe está associado —, uma trave-mestra da sua diplomacia, a China pretende agora estendê-lo à soberania na Internet, a maior realização tecnológica do globalismo contemporâneo. (Ver “Xi Jinping renews ‘cyber sovereignty’ call at China’s top meeting of internet minds” (South China Morning Post, 3/12/2017).
3. Ironicamente, as ideias de soberania nacional e patriotismo, que muitos hoje vilipendiam na União Europeia e Ocidente, são ideias originalmente europeias e com longo enraizamento. A teoria clássica da soberania do Estado é, nos seus traços fundamentais, muito francesa e indiscutivelmente europeia. Inicialmente foi elaborada pelo jurista francês Jean Bodin no último quartel do século XVI, num trabalho intitulado Les Six Libres de la Republique / Os Seis Livros da República (1576). Na sua formulação, a soberania foi concebida como um poder absoluto e perpétuo, sem igual na ordem interna, que só se relacionava com poderes idênticos na ordem externa. Foi na Europa do século XVII, com os Tratados de Vestefália, na Alemanha (1648), pondo fim à Guerra dos Trinta Anos, que se deu a progressiva institucionalização da teoria da soberania do Estado. Isso ocorreu, em grande parte, sob impulso da França, em ascensão a grande potência europeia e mundial. Foi nesse contexto histórico que o Estado soberano, dotado de um poder entendido como absoluto e exclusivo sobre um território e população, se afirmou, primeiro em toda a Europa, e, posteriormente, pela influência europeia, no resto do mundo. A ideia é hoje rejeitada pelo presidente francês, Emmanuel Macron, que defende o multilateralismo numa lógica de soberania partilhada, em rota de colisão com as ideias soberanistas absolutas de Donald Trump. (Ver “A l’ONU, Emmanuel Macron appelle à ne pas suivre ‘la voie de l’unilatéralisme’”, Le Monde, 25/09/2018).
4. “Allons, enfants de la Patrie, Le jour de gloire est arrivé !”, é a bem conhecida primeira estrofe da Marselhesa, a canção patriótica da Revolução Francesa, escrita por Rouget de Lisle (1792) e posteriormente adoptada como hino nacional na França. Tal como a soberania, a nação e o patriotismo são ideias políticas muito francesas (e bem europeias). Têm um primeiro momento fundamental nas guerras, qualificadas como patrióticas, dos revolucionários franceses de 1789. É também ao francês Ernest Renan, na muito citada conferência da Universidade de Sorbonne (“O que é uma Nação?”, Paris, 1882), que se deve aquela que é, provavelmente, a formulação mais conhecida e influente de nação. Para Ernest Renan, nação era “uma grande solidariedade, constituída pelo sacrifício dos sacrifícios feitos e dos que ainda se está disposto a fazer”. Assim, embora supondo um passado, exprime-se “no presente, por um facto tangível: o consentimento e o desejo claramente expresso de prosseguir a vida em comum. A existência de uma nação é um plebiscito de todos os dias”. É também aos europeus, agora sobretudo aos alemães, que se deve outra variante da concepção de nação de tipo etno-cultural, ou etno-linguístico. Johann Gottlieb Fichte nos “Discursos à Nação alemã” (Universidade de Berlim, 1807), identifica-a com uma língua que reflecte o génio da nação e regula os seus costumes. Esta concepção impulsionou a formação de uma Alemanha unificada no século XIX (1871), alterando, radicalmente, o mapa político europeu, ao criar um grande e poderoso Estado no seu centro — e levou a uma hostilidade aberta com a França, que perdeu a Alsácia-Lorena nessa altura.
5. Em todo o século XIX e primeiras décadas do século XX os norte-americanos afastavam-se e rejeitavam esse mundo criado pelos europeus, de jogos de poder, de guerras, de diplomacia secreta — um mundo politicamente imoral. A criação da Sociedade das Nações (SdN, 1919), uma ideia do Presidente dos EUA da época, Woodrow Wilson — o embrião da actual Organização das Nações das Nações Unidas, do multilateralismo contemporâneo e de novas formas de partilha de soberania —, foi vista com grande cepticismo por muitos europeus na época. No debate político e intelectual foi descredibilizada como um utopismo de consequências nefastas: não impediu a engrenagem político-militar que levou à II Guerra Mundial. Hoje, os papéis de ambos os lados do Atlântico parecem invertidos. Os europeus da União Europeia — ou melhor, da parte ocidental da União Europeia, pois no Centro e Leste europeu a percepção é outra —, acusam os EUA de Donald Trump de fazer algo semelhante ao que os europeus do século anterior faziam. Tal como os norte-americanos dessa época, vêem-se, agora, imbuídos de elevados princípios morais, humanistas e liberais-internacionalistas (na versão actual consubstanciados nos direitos humanos, no multilateralismo e na ideia de um património comum da humanidade, por exemplo no ambiente). A soberania, o patriotismo e a ideia de uma America first indigna-os. Mas talvez os europeus se estejam a ver ao espelho e estejam a ter uma imagem do que foram no passado e talvez seja ainda, pelo menos uma parte, no presente. Quanto aos mais cínicos, dirão que a boa consciência europeia só veio quando os europeus perderam o poder e deixaram de ser “donos do mundo”, o que aconteceu após duas guerras no século XX, usualmente qualificadas como mundiais, mas essencialmente europeias. E que as ideias que agora defendem são à medida de potências menores, não de genuíno altruísmo. Provavelmente Donald Trump (EUA), Vladimir Putin (Rússia) e Xi Jinping (China) concordam nisso.