Serralves só rima com todas as verdades
A arte é assunto sério demais para se compadecer com os tons cinzas do obscurantismo de costumes e de procedimentos.
A arte é um assunto de todos, da comunidade. A liberdade de expressão é-o também, desde logo por se tratar de direito constitucionalmente garantido. A polémica em torno da exposição das fotografias de Mapplethorpe exige, das partes envolvidas, uma cabal explicação. Saúdo, por isso, a anunciada conferência de imprensa da Administração da Fundação de Serralves para esta quarta-feira, que já peca por tardia. Do mesmo modo que espero que João Ribas, por certo discordando do que poderá ser dito, quebre o silêncio.
É dever de qualquer instituição cultural, pública ou privada, afastar todo o anátema de censura ou de “curadoria de moralidade”. Sabemos que os teóricos da arte entendem que ela não tem quaisquer limites. Como jurista, entendo que ela só pode ser limitada, ou melhor, a liberdade de criação e expressão artísticas contidas em qualquer obra de arte, se e na medida em que tal seja essencial para a tutela de outros direitos fundamentais (art. 18.º, n.º 2 da Constituição). Aceito que, por respeito ao livre desenvolvimento dos menores, ou seja, ao asseguramento de que os mesmos não sejam confrontados com situações que, de algum modo, possam prejudicar o seu desenvolvimento psicológico tido por sadio pela comunidade científica, se restrinja o seu acesso a certos objectos artísticos. De outro modo, seria inconstitucional a existência de proibição de frequência de salas de cinema pornográfico.
Discutir se as concretas fotografias expostas em sala reservada a maiores de 18 anos têm ou não cariz pornográfico é, em si, controvertido. Não podemos esquecer que cada geração é fruto da época em que vive e que um jovem de 7 ou 8 anos, em 2018, nada tem que ver com aquilo que eu ou outros éramos na nossa infância. O mais relevante para mim não é a razoabilidade desta interdição. Em tese, compreendo-a. O que importa é saber como todo o processo ocorreu.
Em casos como estes, tão ou mais importante que o resultado final é o modo como os intervenientes se comportaram. Ainda não está claro, por existirem versões contraditórias, se João Ribas viu retiradas da exposição fotografias que tinha escolhido e se sabia ou não que existiria uma sala reservada a adultos.
Qualquer relação de trabalho implica confiança mútua e respeito pela esfera de competências do trabalhador e do empregador. Mais ainda na criação e difusão artísticas, para que não restem dúvidas que uma qualquer administração, ainda por cima de um museu de arte contemporânea, “montou” a exposição “nas costas” do director do museu que, no caso, era também o seu curador. Nada pode ser tão prejudicial à centralidade que Serralves quer desempenhar na região, no país e no mundo que a mera suspeita de golpes palacianos, de rasteiras soezes ou, pior ainda, de uma mentalidade tacanha e provinciana.
Mais ainda quando a História mostra que o Porto só ganha quando se torna cosmopolita, aberto ao mundo e à diferença, razoável na ponderação de interesses contrastantes e quando os processos são transparentes. De nada adianta Isabel Pires de Lima ter reagido em nome da administração, facto em si mesmo insólito, pois pensava que não era esta ilustre professora universitária quem presidia à Fundação.
Para além disto, o PÚBLICO desta terça-feira dá-nos nota que Suzanne Cotter não tinha decidido programar Joana Vasconcelos, mas que parece que a mesma terá uma individual em Serralves, repetição de Bilbau. Afinal, onde está a definição da esfera de competências do director do museu, dos curadores e da administração? Ou é tudo assim uma espécie de amálgama em que se fala com Cotter – na altura – e não parecendo esta muito entusiasta, vai-se “meter uma cunha à administração”?
Mais um assunto inultrapassável para a conferência de imprensa desta quarta, que não se pode limitar a “conversa mole”, mas a uma assunção clara do que sucedeu, com elementos documentais que certamente existirão. Ou devem existir – não quero crer que uma Fundação que se assume como farol da modernidade é, afinal, uma coutada de uns tantos que, quais iluminados, decidem o que é ou não arte, o que pode ou não ser mostrado, em que condições e, quais clérigos mecenas do Renascimento, depois dão uns trocados a artistas e curadores. Se assim for, o desprezo pelo trabalho de quem produz e pensa as exposições aconselha a um verdadeiro boicote a esta administração.
Como o contraditório é um valor essencial em qualquer Estado de Direito, terá a administração a oportunidade para provar que interpretações admissíveis face a um quase absoluto silêncio não passam, afinal, de falta de informação. E de João Ribas exige-se o mesmo. Não basta uma declaração lacónica. A bem da arte, da cultura, da saúde da liberdade de expressão e da lisura de comportamentos e do respeito mútuo entre administração, por um lado, artistas e curadores, por outro, o dia de amanhã é importante para Serralves e para aquilatarmos do estado de saúde das relações entre aqueles que criam, projectam e os que dirigem as instituições que nos fazem transcender a espuma dos dias.
O que Serralves significa no contexto da região, do país e, supostamente, do mundo, em muito depende de que tudo fique “em pratos limpos”. A arte é assunto sério demais para se compadecer com os tons cinzas do obscurantismo de costumes e de procedimentos.