O Iminente, a “montra que é um elevador” das subculturas urbanas, agora tem toda a vista de Monsanto
Depois das edições iniciais em Oeiras, o evento fundado e comissariado por Vhils chega ao Panorâmico de Monsanto para ficar – três anos. De uma homenagem a Marielle Franco ao som das culturas urbanas nacionais, da Síria ou dos EUA, o Iminente quer continuar a ser urgente e um festival diferente.
Quando o Festival Iminente nasceu, tinha um grande nome a dar-lhe gás – Vhils, o mais internacional dos autores de arte urbana portugueses, a dar a conhecer novos talentos na música e nas artes. Tudo num só espaço, durante três dias, com traço irreverente e de intervenção social. À terceira edição, que começa esta sexta-feira, continua com a força de Vhils e cresce na mudança para Lisboa com o impulso do seu novo espaço: o Panorâmico de Monsanto, onde o graffiti que já lá estava passa a fazer parte do programa do festival, que, por seu turno, acrescenta novas camadas ao especialíssimo edifício com novas obras de Miguel Januário (±maismenos±), Wasted Rita e do próprio Vhils e leva aos palcos um membro dos De La Soul, Conan Osíris ou Gisela João.
Na quarta-feira, durante uma visita guiada, o recinto foi a grande estrela do iminente festival. Começaria daí a dois dias, nesta sexta-feira já com bilhetes esgotados para as duas primeiras tardes e noites de concertos (já só há entradas para domingo) com toda a Lisboa e arredores em fundo pontuada por obras de street art, arte urbana, intervenção pública ou o que se lhe queira chamar. A visita era uma descoberta.
Ao Panorâmico de Monsanto, cume meio ruína de onde a vista é a 360º edificado em 1968 e que está abandonado desde 2001 e tornado miradouro desde 2017, chamou-se muita coisa durante a visita com os jornalistas: “Este é um espaço mágico pela sua natureza e pela sua história. Tem uma história tão mágica quanto sombria”, disse Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa; “foi sempre um enguiço”, comentava o vereador José Sá Fernandes sobre a história atribulada do edifício; é “espaço que tem muito que aprender, tem muito que explorar”, comentava Alexandre Farto, com nome de guerra artística Vhils.
A sua sugestão de ali realizar o Iminente foi acolhida não sem ter andado a visitar com Fernando Medina outros espaços vazios de Lisboa, nomeadamente galerias do metro não utilizadas na Baixa, Cais do Sodré e Chelas. Tem uma “relação especial” com o Panorâmico de Monsanto e pede que os festivaleiros urbanos “respeitem o parque” e lá cheguem ou de bicicleta (haverá um parque para elas) ou nos shuttles especiais da Carris, gratuitos, a partir da Ajuda ou Sete Rios. Mas quer sobretudo “reunir todas as subculturas urbanas, mostrar o que está iminente, o que está a borbulhar”.
Aos 55 nomes de músicos e artistas que convocou juntam-se então os graffiters anónimos que há muito marcaram o Panorâmico, e as intervenções dos convidados “são esculturas ou peças” que quase não alteram o edifício. “A ideia foi deixar o espaço o mais cru e honesto possível, respeitando as obras e os graffiti que já cá estavam e faziam parte do edifício. Fazem parte também do programa de artistas”, explicou Vhils aos jornalistas, no papel de ideólogo do festival que conta ainda com a curadoria da plataforma Underdogs e das editoras de música Enchufada, Príncipe e Versus. “Tentámos fazer uma curadoria em que os artistas são não só contemporâneos mas também os que já estavam no edifício.”
Criaram-se percursos, como o que começa num palco na base e no exterior do edifício. Ladeado por um outdoor intervencionado pela portuguesa Wasted Rita com a sua acidez ao serviço da busca da felicidade e completude, nele actuarão o angolano Bonga, Dengue Dengue Dengue ou o sírio Omar Souleyman (sexta-feira), Valete, DJ Maseo dos De La Soul ou Havoc, dos Mobb Deep (sábado) e Marta Ren & The Roovelets, Sara Tavares e Gisela João.
É a primeira vez que o festival português convidou artistas estrangeiros, mas todos “se relacionam muito com artistas de expressão portuguesa”, descodifica Alexandre Farto, prometendo as habituais surpresas durante o festival – haverá ainda uma performance de Ricardo Jacinto e de crews de breakdance na escada que espiraliza a subida ao miradouro (o piso cimeiro estará encerrado), zonas de acesso limitado e tatuagens gratuitas com vista para a loja da Underdogs. Tudo no interior e no serpentear de um edifício com a beleza das ruínas e do betão, com vista para o calor do fim-de-semana e todo o Tejo que a vista abarca, e com a memória daquela edição em que era possível tirar falsas selfies com o Presidente da República, ou daquela outra em que havia uma emissão de rádio de frequência secreta.
Nascido em 2016 em Oeiras com bilhetes a dois euros esgotados em poucas horas e com segunda edição com ingressos já a cinco euros com vendas igualmente rápidas, a mudança para Lisboa fez subir o preço (dez euros) e o orçamento – a câmara apoia com 250 mil euros, segundo disse ao PÚBLICO a vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto. Até 2020, o Iminente vai ficar em Monsanto com a habitual ironia das frases promocionais que avisam: “O melhor é ficares em casa”. Desta feita acompanhada pelo alerta tanto ecológico quanto logístico “se vieres, não tragas carro”.
Tal como o miradouro, o palco secundário, o Cave, tem vista a 360º. “A ideia é criar proximidade com os artistas”, explica Alexandre Farto aos autarcas na penumbra. Eles estarão em palco, entre concertos e DJ sets, mas também com obras como as que perfuram as janelas com o seu habitual pontilhado e perfazem uma parede de luz num novo trabalho de Vhils, ou com a figura que sugere numa parede ±Verdade, do projecto de Miguel Januário. Ou ainda com o XJS DJ Car (2002) de João Louro, o Jaguar que também é mesa de mistura. Ali vão tocar Nástio Mosquito, Shaka Lion, Octa Push, Norberto Lobo, DJ Nigga Fox, Nídia ou os Beautify Junkyards.
Marielle presente
Numas escadas, um discreto graffito azul-céu declama “I love you Sugar Kane”, inscrevendo na memória do Panorâmico os Sonic Youth. Outro, da mesma cor e noutra zona, lembra: “Marielle, presente! 2018”. Tudo indica que já lá moravam, dicotomias de lazer e política. O comentário sobre o mundo lá fora é indissociável do Iminente, que ao longo destes três anos recebeu entre 3 mil e 5 mil pessoas por dia (este ano há 4500 bilhetes para cada dia). Era um mundo português, mas tocado pelos problemas globais da crise ou da (in)justiça social. Este ano o espectro abre e, explica Alexandre Farto ao PÚBLICO, mantém-se a presença de “artistas interventivos que têm um caminho muito firme”. O próprio Vhils, em parceria com a Amnistia Internacional, revela esta sexta-feira o seu novo mural em memória da activista brasileira Marielle Franco, assassinada este ano.
“É uma homenagem, uma causa.” Alexandre Farto quer pôr o “foco na sua vida, no seu trabalho e na situação que aconteceu. Trabalhei no Rio em 2010-12 e por vezes em zonas periféricas com muitas situações de tensão. Sempre admirei muito o trabalho dela e era importante para mim fazer este apelo em colaboração com a Amnistia. Conseguir chamar a atenção para todas as suas causas”, diz ao PÚBLICO. Ficará a fazer parte do edifício onde já resistem murais e frescos classificados de Luís Dourdil ou Manuela Madureira.
Entretanto, ultimava-se a rampa para o skate que sempre foi Iminente, e Miguel Januário chegava para montar no edifício os espelhos que desenharão a palavra “±real±” — e que manifestarão também Revolta, um vídeo de uma hora de spoken word com Kalaf Epalanga e Selma Uamusse. Haverá ainda uma reunião dos elementos do evento Visual Street Performance, que em 2005 agregava Vhils, Ram ou Mar, ou a personagem Mr. A, de André Saraiva, em versão escultura em mármore de cinco toneladas.
O Iminente programou ainda “conversas com curadoria do António Brito Guterres para discutir a cidade, o uso da cidade, a distribuição da riqueza e as clivagens que existem hoje. Os desafios da mobilidade”, vai enumerando Vhils ao PÚBLICO, ao mesmo tempo que sublinha que uma forma de intervenção social do Iminente é mesmo ser “uma montra que consiga ser um elevador” para alguns destes músicos e artistas “que muito poucas oportunidades tiveram” para se mostrar em festivais e em espaços de validação cultural pela sua proveniência, área de actuação ou forma de expressão.