Sussurraram-lhe “goza a vida” e ele aceitou
Rui Daniel dava aulas de piano. Agora dá voltas ao mundo. Encontramo-lo a percorrer o continente africano rumo ao Bangladesh — com uma causa.
"A Internet aqui é espectacular. África é sempre uma surpresa." Estamos online, via Messenger, com Rui Daniel. Nós cá, ele lá, em África, no Zimbabué (de partida para a Zâmbia), numa pousada nas cataratas de Victória, camisola da selecção portuguesa vestida, tez queimada de uma viagem que o deixa de sorriso rasgado e com vontade de pegar nos países todos e enfiá-los numa mochila para depois, como numa tômbola gigante, meter lá a mão e ir tirando sofregamente as histórias uma a uma — ou todas ao mesmo tempo.
Rui tem 40 anos. Nasceu no Luxemburgo, onde viveu 15 anos, mas diz que é de Nelas, Viseu. “Dou aulas de piano”, apresenta-se. E viaja — e até já tocou piano nos sítios mais improváveis, mas isso é outra história. Já visitou mais — muito mais — de cem países e neste preciso momento está a atravessar todo o continente africano rumo ao Cairo (“vou atravessar a Palestina e tentar entrar na Síria”) e com os olhos postos no Bangladesh, onde tem um assunto pendente. O grande objectivo será chegar ao seu país preferido (“apaixonei-me pelas pessoas, senti que eram mais puras; emocionei-me com as crianças, que faziam filas para tirar fotografias comigo”) e pelo caminho angariar fundos para as crianças da Fundação Maria Cristina, ex-comissária de bordo, filantropa, a primeira mulher portuguesa a escalar o Monte Evereste e tripla titular do Guinness World Record graças a impressionantes registos como ultra-maratonista.
A Fundação trabalha na educação e emancipação de crianças carentes desde 2005. Além de apoio às crianças dos bairros de lata do Bangladesh através da construção de escolas, tem vindo a conseguir introduzir com sucesso a gestão de resíduos, construção de estradas, abastecimento de água potável e saúde para os bairros de lata de Daca. “Há dois anos, ofereceram-me o livro Uma Mulher no Topo do Mundo. Contactei-a e dei-lhe os parabéns”, conta Rui, que entretanto lançou uma página JustGiving de angariação de fundos e que pretende cortar essa meta algures entre Abril e Maio de 2019.
Esse é o pretexto de alguém que se foi deixando levar. “Fui-me apaixonando pelas viagens”, diz. “Fui-me apaixonando pelos países. Vai mudando a nossa mentalidade. Vejo muita gente que não tem nada e é feliz. Em casa, no Ocidente, estamos habituados a ter tudo. Temos uma casa, um, às vezes dois carros. Não sou rico nem milionário, mas penso nisso. Não acredito em vidas que chegam depois. Tenho esta”, resume este pianista em pausa sabática, um viajante no activo que usa países e cidades como vírgulas. “As pessoas, casa-trabalho-casa, chateiam-se e matam-se por tudo e por nada. Olho para o lado e vejo pessoas que gostavam de ter feito e não fizeram.” No fundo, Rui ouve quem lhe sussurra “goza a vida”.
Iniciou esta odisseia em Setembro, em Portugal. Partiu à boleia até chegar a Marraquexe e daí até Serra Leoa e Burkina Faso. Atravessou toda a África Ocidental até chegar ao Níger e voltou a Portugal para passar o Natal, cumprindo a promessa que fizera à mãe. “Infelizmente apanhei malária e estive internado durante duas semanas”, conta. Retomou a partir do Togo, em Fevereiro.
“Este continente é bem mais difícil do que eu imaginava”, prossegue Rui, que carrega uma pequena tenda e que sempre que pode acampa com tribos nas aldeias. “Nas capitais apenas paro para tratar dos vistos.” Já foi agredido na Libéria (“senti que não era bem-vindo”), foi assaltado no Burkina Faso (“já me borrei algumas vezes”) e no Mali teve que dormir com locais na berma da estrada por ser demasiado perigoso passar durante a noite numa zona de rebeldes. Bateu à porta de muitas igrejas e apelou a missionários. Cruzou a Nigéria toda a dormir em estações. Apanhou boleia de um cargueiro que o levou até aos Camarões (“disseram-me que não havia barcos de passageiros; durante 24 horas comi um ovo cozido, enquanto os tripulantes de binóculos procuravam piratas”).
Tens um plano? “Sim”. Segue-lo? “Nem sempre”, brinca Rui, um “palhaço” (“gosto de me rir”). Um-dois-três-diga-lá-outra-vez: Guiné Bissau, Conacri, Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim, Mali, Burquina Faso, Níger, Togo, Benim, Nigéria, Camarões, Guiné Equatorial, Gabão, Congo. República Democrática do Congo, Angola, Namíbia, Botswana, África do Sul, Suazilândia, Lesoto, Moçambique, Zimbabué...
Não é fácil acompanhá-lo. Nem na conversa, nem no mapa, nem na conta de Instagram que alimenta com paisagens avassaladoras, boleias improváveis (“táxis de três à frente e seis atrás”), transportes à pinha, lugares imperdíveis e refeições mais ou menos comestíveis.
Já picou a Europa toda (só não esteve na Bielorússia) e percorreu parte de África em duas etapas de bicicleta (Senegal, Gâmbia e Guiné Bissau de uma vez, Gana, Togo e Benin da outra; no final de ambos os percursos ofereceu as bicicletas a crianças). Descobriu o Irão com as próprias mãos (“diziam que era super-perigoso; é, vais lá e não queres sair”) e foi então que decidiu que “a televisão é uma treta”. “Não tenho visto notícias nenhumas. Não sei o que se passa em Portugal. Não sei o que se passa no mundo”, repete. Ganhou “coragem” e foi ao Iraque. Foi convidado por polícias no Paquistão para beber chá. Encontrou “pessoas espectaculares” em Moçambique e o povo africano mais hospitaleiro no Níger. Fez voluntariado em Angola e criou um coro infantil no Gungo. Há uma coisa que o deixa cabisbaixo: a escravatura infantil (“ainda existe”).
Rui diz-se “descarado”. Gosta de “tudo o que é diferente”. E gosta de se aventurar. Sente-se “afortunado” por viver “uma carrada de histórias todos os dias” e o manual do desenrasque obriga-o a ser uma espécie de “mentiroso compulsivo em África” (na escala de Richter já ia em dez, “mais do que um terramoto").
Viaja com uma tenda, um adaptador universal e uma tripla, um bloco de notas e uma caneta. E pouco mais. Escreve sempre que possível e publica regularmente crónicas de viagem no site luxemburguês Bom Dia (“levar a lição estudada para este continente não serve de nada”, escreve a propósito da Guiné-Bissau). No Benin, fotografou uma miúda com um balão amarelo à frente da cara. Aparece assim coberta “para que a sua alma não fosse roubada”.