Marcelo só recorrerá ao Tribunal Constitucional em “casos óbvios”
O Presidente da República ainda não recorreu ao TC, porque “não houve nenhum caso flagrante”. Tem preferido usar o veto político, abrindo portas para que o Parlamento ou o Governo alterem os diplomas, que depois acaba por promulgar. O bloco central de palácios tem deixado de fora o Palácio Ratton.
O primeiro Presidente constitucionalista da democracia tem dado um uso diferente, em relação aos antecessores, ao poder de accionar a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis. Em quase dois anos e meio de mandato, Marcelo Rebelo de Sousa nunca enviou um diploma para fiscalização preventiva pelo Tribunal Constitucional, preferindo sempre os vetos políticos aos diplomas do Governo e da Assembleia – e são já dez, o último dos quais relativo ao direito de preferência dos inquilinos perante vendas de imóveis sem propriedade horizontal.
Se os seus antecessores evitavam o veto político para não afrontar o Governo ou a Assembleia da República e preferiam submeter as leis ao crivo do Tribunal Constitucional (TC), Marcelo faz o contrário. Afronta e veta, mas dando sempre uma segunda oportunidade ao legislador para repensar as soluções vetadas. O Presidente ganha, assim, centralidade no sistema legislativo, mas deixa de fora desta equação o Palácio Ratton, reduzindo o seu papel no sistema político, nas palavras do constitucionalista Jorge Reis Novais.
A explicação de Belém é que nestes dois anos e meio ainda não houve um caso evidente de inconstitucionalidade pura e dura, em que apenas estivessem em causa dúvidas jurídicas flagrantes, caso em que recorrerá aos juízes do Palácio Ratton. “O Presidente da República não considerou haver nenhum diploma que, até ao momento, merecesse de facto uma discordância flagrante em termos de inconstitucionalidade”, disse ao PÚBLICO fonte oficial, salientanto que Marcelo prefere deixar o envio de leis para o TC apenas em “casos óbvios”.
Até agora, os vetos têm sido políticos, ainda que com reparos jurídicos, e usados de forma cirúrgica, deixando claro quais os aspectos que gostaria de ver repensados e até em que sentido. O Presidente dá uma segunda oportunidade ao legislador, e o Parlamento e o Governo têm-na aproveitado, fazendo novas versões da lei para ir ao encontro das suas preocupações. Aconteceu em oito dos dez diplomas vetados e pode ainda ser assim nos dois restantes: o veto ao direito de preferência dos inquilinos será reapreciado em Setembro e os partidos proponentes, BE e PCP, já se mostraram disponíveis para o alterar.
O outro caso refere-se ao levantamento do sigilo bancário em contas acima de 50 mil euros, que mereceu o primeiro veto a um diploma do Governo, em 2016. O executivo deixou-o cair, mas já este ano - depois de o BE anunciar um projecto de lei no mesmo sentido e de o Presidente dizer que estava disponível para reavaliar a questão, pois a situação da banca já não apresentava a mesma fragilidade que motivou o veto -, o executivo transformou o decreto-lei em proposta de lei e o assunto está neste momento em discussão na especialidade no Parlamento.
Só num caso o veto de Marcelo Rebelo de Sousa foi global e radical, político no mais puro sentido do termo: o da lei do financiamento dos partidos. Neste, o Presidente deixou claras as suas reservas face à mudança de modelo – a permissão para angariar contribuições privadas sem limite máximo inverte a lógica do modelo de financiamento maioritariamente público. Mas acabou por promulgar uma nova versão do diploma, votada por uma maioria esmagadora de 192 deputados, apenas com uma alteração – o recuo na isenção total de IVA a todas as actividades partidárias. “O Presidente não está na presidência para impor os seus pontos de vista minoritários”, justificou na altura.
Por outras palavras, Marcelo dizia que não “chumba” apenas porque não gosta de uma lei. Por diversas vezes recorreu ao veto em matérias que claramente iriam contra a sua consciência católica conservadora, como a maternidade de substituição ou a identidade de género. Mas acabou por promulgá-las, depois de o Parlamento ter alterado o diploma. Se as tivesse enviado para o TC, expunha dúvidas que podiam matar as leis. Assim, deu-lhes o benefício da dúvida.
A análise dos constitucionalistas
Esta opção é, contudo, questionada por constitucionalistas como Jorge Reis Novais, que foi colega de Marcelo na Faculdade de Direito de Lisboa e assessor jurídico do Presidente Jorge Sampaio. “Começa a ser, não diria teimosia, mas uma interpretação muito duvidosa do que deve ser a posição do Presidente da República nesta matéria. Se a Constituição criou a fiscalização preventiva, devia ser pedida sempre que haja dúvidas de constitucionalidade antes das leis entrarem em vigor”, diz ao PÚBLICO.
Reis Novais alerta para o risco de o chefe de Estado ver posta em causa a sua posição pelo próprio TC, quando a fiscalização é pedida por outras entidades depois da entrada em vigor da lei (fiscalização sucessiva). “Pode acontecer, como já aconteceu, haver dúvidas de constitucionalidade e ele promulgar, ou da primeira vez ou à segunda, e depois vir o TC, passado muito tempo, dizer que a lei é inconstitucional”, acrescenta.
Foi o que aconteceu no caso da lei da maternidade de substituição: Marcelo vetou a primeira versão, o Parlamento alterou-a respondendo às dúvidas do Presidente e este promulgou a segunda versão. Mas o CDS, com a ajuda de alguns deputados do PSD, pediu a fiscalização sucessiva e o Tribunal declarou várias normas inconstitucionais.
No entanto, a maior parte dessas normas eram transpostas da legislação que já estava em vigor, e por isso não tinham sido analisadas pelo chefe de Estado - à excepção da relativa aos prazos do consentimento. A decisão dos juízes surpreendeu Belém e também Reis Novais, para quem o TC “forçou o pedido do CDS e do PSD para dizer mais do que lhe tinha sido solicitado, acabando por pôr em causa o anonimato dos dadores”, já previsto na lei original.
Ainda assim, este professor de Direito considera que teria sido preferível ser o Presidente a suscitar a fiscalização preventiva. “Mesmo que ache que a lei não tem problemas nenhuns, sendo leis importantes e que começam a levantar dúvidas nas instituições e partidos, seria mais adequado esclarecer logo tudo nessa fase inicial”, defende.
“Quando não faz isso, o Presidente ganha uma centralidade maior, porque tudo acaba por depender dele, mas tem a contrapartida de retirar influência ao Tribunal Constitucional”, analisa Reis Novais. “Ao retirar-lhe o poder de intervir na fiscalização preventiva, o Presidente diminui significativamente a possibilidade de intervenção do TC. E não vejo que haja vantagens nisso para o equilíbrio do sistema. Se há dúvidas de constitucionalidade, deve enviar para o TC”, conclui.
Tiago Duarte, professor de Direito Constitucional da Universidade Nova de Lisboa, faz uma análise diferente desta opção do chefe de Estado. “Eu percebo que, como professor de Direito Constitucional, faça ele próprio uma análise com outro olhar, enquanto outros Presidentes preferiam ter o conforto do TC”, diz, acrescentando, no entanto, que Marcelo “tem de perceber que não acumula as funções de Presidente e de Tribunal Constitucional”.
Para Tiago Duarte, há outras razões que podem justificar a opção de não pedir a intervenção do tribunal, como o facto de o chefe de Estado, por “conhecer bem o TC, os seus juízes e a sua jurisprudência”, poder antecipar as suas decisões e “evitar o recurso ao TC quando achar que as opiniões serão diferentes”. Mas também porque “o Governo e o Parlamento parecem estar a ser mais cuidadosos” e forçarem menos a Constituição do que, por exemplo, o executivo de Passos Coelho. Mas “algum dia vai ser esse dia”, diz Tiago Duarte, que está convicto de que o Presidente “vai escolher um diploma simbólico para ser o primeiro a enviar ao TC, e assim fazer disso um ‘happening’”.