Explosão, seja de drone ou botija, dá a Maduro pretexto para purgas
Oposição e observadores deixam aviso: o Presidente venezuelano vai transformar um episódio que mostrou a sua fragilidade num motivo para aumentar perseguição a inimigos.
Um atentado organizado por forças estrangeiras, uma tentativa de assassínio do Presidente levada a cabo pela oposição, ou uma simples explosão acidental aproveitada pelo regime? O que quer que tenha acontecido no sábado à noite, a Venezuela preparava-se para as consequências: um endurecer do regime, mais purgas no Exército, mais acções para concentrar e manter o poder.
As imagens do que aconteceu em Caracas foram dissecadas por analistas. Numa parada militar, o Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, discursava, quando algo distraiu quem estava no palanque – o Presidente, a sua mulher, Cilia Flores, e uma série de militares de alta patente. A segurança de Maduro corre para o cercar e proteger com painéis anti-bala. Mais abaixo, as colunas ordenadas da parada militar desfazem-se, vêem-se soldados correr em pânico, especialmente num ponto.
O Governo de Maduro foi rápido a dizer que se tratava de um “atentado”. O próprio Maduro discursou algumas horas depois, afirmando que segundo as “primeiras investigações” do caso, os “responsáveis intelectuais e financeiros” vivem nos EUA, no estado da Florida. Também apontou o dedo à vizinha Colômbia: “Não tenho dúvidas de que o nome de Juan Manuel Santos está por trás deste atentado”.
De Bogotá, o Ministério dos Negócios Estrangeiros emitiu um comunicado de “negação enfática” da acusação, que considerou “absurda” e “sem qualquer base”. De Washington, o conselheiro para a Segurança Nacional John Bolton também negou “inequivocamente” qualquer acção americana, supondo que “pode ser desde um pretexto do próprio regime a uma série de outras coisas”.
Analistas e comentadores não demoraram também muito a questionar a versão oficial. David Smilde, da organização Washington Office on Latin America, diz que se houve de facto drones, é muito improvável que não haja imagens. “Se o Governo ou alguém não mostrar algumas imagens dos drones ou das explosões, isso será muito suspeito”, disse ao Washington Post. “Eles filmam tudo o que fazem de vários ângulos, é difícil imaginar que não teriam isso gravado, se aconteceu mesmo.”
Também por isto não é provável que tenha sido uma encenação do regime – nesse caso, seria mais bem-feita, argumentou.
Mas provocou imagens de embaraço, fazendo com que o Presidente parecesse fraco. “Maduro vai usá-las para concentrar o seu poder, independentemente de quem tenha feito isto”, concluiu. “Vai restringir ainda mais as liberdades e purgar o Governo e as Forças Armadas.”
“Quaisquer que sejam as fragilidades mostradas, essas vão ser compensadas pela desculpa que dá a Maduro para perseguir os seus inimigos, reais ou não”, notou à agência Reuters Raul Gallegos, vice-director do grupo de consultoria Control Risks.
Maduro “vai usar este incidente para radicalizar”, disse pelo seu lado Eric Fransworth, vice-presidente da organização Americas Society/Council of the Americas, que promove laços culturais e empresariais. “É provável que faça uma purga no Exército, que fortaleça a sua guarda pessoal, e que exagere a narrativa de estar sob ataque dos EUA e da Colômbia para obter mais apoio.”
O ministro do Interior afirmou que foram detidas seis pessoas, duas já conhecidas das autoridades, uma por um ataque a uma base militar no ano passado e outra por participar em protestos contra o regime em 2014.
Deserções no Exército
O diário The Washington Post nota uma onda de deserções no exército desde as últimas eleições, em Maio, marcadas por acusações de fraude por parte da oposição e de muitos países, deixando Maduro isolado, e a agência Reuters explica que a crise económica tem afectado os militares, com muitos soldados a não conseguir comer três refeições por dia.
No ano passado, um polícia, Óscar Pérez, desviou um helicóptero e tentou atingir edifícios do Governo. Não conseguiu, e acabou por ser apanhado, e morto, por forças do regime.
No discurso, emocionado, após o incidente, Maduro declarou a sua “luta” como “a mais justa”. “Esse drone vinha para me atacar, mas havia um escudo de amor que nos protege sempre.”
A oposição avisou também para esta possibilidade de endurecimento do regime.
“Ainda é preciso ver se foi realmente um ataque, um acidente fortuito ou alguma das várias versões que circulam nos media”, disse a Frente Ampla Venezuela Livre (FAVL), que junta partidos e grupos da sociedade civil. “Uma atitude responsável seria esperar pelo resultado das investigações, mas é difícil acreditar nos burocratas do regime.”
De qualquer modo, “avisamos que o Governo está a aproveitar-se deste incidente para criminalizar os que se opõem de modo legítimo e democrático, e aumentar a repressão e as violações sistemáticas dos direitos humanos”, disse ainda a Frente, numa declaração publicada no Twitter.
Jornalistas detidos
A transmissão televisiva e radiofónica do discurso foi cortada e jornalistas independentes que estavam noutros locais foram detidos – alguns estiveram mais de três horas na sede dos serviços de informação militares. O Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Imprensa denunciou a “detenção ilegal” e “roubo e agressão” de 11 jornalistas e trabalhadores de media que cobriam o discurso de Maduro e a parada militar no sábado. Vários viram o seu equipamento confiscado.
A agência Associated Press falou com bombeiros que disseram que os estrondos que se ouviram foram causados por uma explosão numa botija de gás, e alguns jornalistas locais também puseram no Twitter fotos de janelas de um apartamento perto a fumegar.
O Governo diz que se tratou de um ataque com dois drones com explosivos C-4 que tinham como alvo Maduro.
Outros especialistas apontavam as conclusões rápidas: “A ‘investigação’ oficial tem o curso habitual: começa com uma conclusão e recua a partir daí”, notou no Twitter Phil Gunson, do centro de estudos Internacional Crisis Group.
Entre as trocas de acusações, o Movimento Nacional Soldados de T-shirt – um grupo até agora pouco conhecido e que diz congregar forças da oposição –, reclamou a autoria do ataque através do Twitter: “A operação era sobrevoar com dois drones carregados de C-4 o palco presidencial. Franco-atiradores da guarda de honra derrubaram os drones antes da chegada ao objectivo. Demonstrámos que são vulneráveis. Hoje não conseguimos, mas é uma questão de tempo.”
Também esta versão foi questionada. O jornalista especialista em crime Javier Mayorca perguntava como poderiam os drones lançar o C-4 e fazê-lo explodir sem um detonador. Também um tiro não faria explodir a carga. E, perguntam muitos, se havia um drone e foi abatido, onde estão os seus restos?
Nas redes sociais e na televisão, circulou ainda um comunicado em que o incidente de sábado era descrito como uma “acção militar” apoiada na Constituição e levada a cabo no âmbito de um plano alargado para restituir a democracia ao país. Os promotores chamaram-lhe Operação Fénix.
A Venezuela está a sofrer uma recessão grave que provocou a falta de bens básicos e medicamentos, fez disparar os casos de subnutrição, levou a inflação a valores difíceis de imaginar (está quase a chegar a um milhão por cento), e há ainda uma onda de emigração em massa, longe do sucesso económico anterior à queda dos preços do petróleo, em 2014.
A repressão das autoridades de manifestações contra Maduro no início do ano passado deixou cem mortos, e a oposição diz que as eleições de Maio foram marcadas por fraude eleitoral – além disso, quatro anos depois de assumir o poder na sequência da morte de Hugo Chávez, em 2013, Maduro esvaziou os poderes do Congresso, dominado pela oposição, e criou uma nova câmara controlada por figuras que lhe são leais.