Viaggio a Roma
De Fellini a Moretti, passando por Bernini, Canaletto e Turner, uma viagem a Roma e à construção da imagem desta cidade.
1. Fellini
Em Roma, o filme de Fellini de 1973, há uma cena icónica de uma rodagem durante um engarrafamento numa das vias rápidas de acesso à capital italiana. Todo o cinema felliniano é autobiográfico, mas esta é provavelmente a sequência em que o realizador, de modo mais explícito, nos assegura que a sua obra é também cinema sobre cinema ou, dito de outra forma, meta-cinema. Nessa sequência, a equipa de rodagem atravessa personagens e cenas anacrónicas e mesmo surreais — o surrealismo é referência constante, de resto: uma das cenas iniciais, sob a neve, copia ponto por ponto um cenário do pintor De Chirico. Apesar de vermos continuamente a câmara que, montada num elevador, roda incessantemente, temos nitidamente a percepção de uma suspensão no tempo. Isoladas dentro dos carros, impedidas de chegar aos seus destinos, as personagens replicam um outro engarrafamento icónico de um filme do realizador, o de Oito e Meio, de 1963. Fazem o que toda a gente faz num engarrafamento, que é olhar para o exterior do estreito espaço que toma como seu. Quando um dos membros da equipa de filmagem lança um foguete que ilumina uma ruína antiga, percebemos que esta suspensão do tempo é afinal a própria natureza da cidade.
Roma está de resto cheio de paragens no tempo. Não é apenas o engarrafamento que se eterniza. É também a gigantesca broca que esquadrinhava o subsolo romano para a construção de um metropolitano que hoje já existe, e que se via obrigada a parar de cem em cem metros por descobrir estruturas arqueológicas possivelmente importantes. Em oposição às paragens forçadas dessa sequência, há uma outra viagem da equipa de filmagem no subsolo romano, em que esta passa por catacumbas esventradas e uma equipa de operários fantasmática, para desembocar numa villa enterrada que desaparece ao contacto com o ar. Não há realmente história no filme, como já não havia em La Dolce Vitta ou em Oito e Meio. Há quadros (vivos?) de um lugar que tarda a morrer, que se decompõe interminavelmente. Como Sísifo, Roma está condenada a repetir o movimento que transforma o monumento em ruína, sem que a ruína cumpra jamais o seu destino de, por sua vez, se transformar em pó.
Roma está cheia de imagens subentendidas do cinema italiano do pós-guerra. Falámos de Fellini, mas podíamos ter falado de Rossellini, embora o povo de Roma, Cidade Aberta ou de Os Ladrões de Bicicletas de Vittorio de Sica tenha hoje desaparecido na cidade global que Roma também é. Do mesmo modo, esperamos ver os rostos de Anna Magnani ou de Claudia Cardinale assomar talvez numa esquina, e o magnífico Marcelo Mastroianni conduzir pela Via Veneto, porque o centro histórico aparentemente não mudou desde que os filmaram naquilo que é hoje, tal como sucede em todas as capitais europeias, um grande lugar de reencontro com as nossas expectativas. Ou talvez não. Porque Roma, como qualquer metrópole, está também repleta de estrangeiros que aqui vivem. Ricos e menos ricos, refugiados, brasileiros, muitos brasileiros por todo o lado. E jovens do norte da Europa, loiros altos e sempre de calções. Ingrid Bergman, cujo fantasma também anda por aqui, será tanto ou mais romana que a dona da trattoria muito de bairro que se serve uma belíssima pasta todas as noites. Ou que Balthus, esse pintor imenso que agora os puritanos do gosto querem relegar para a lista da arte degenerada da contemporaneidade e que, durante 17 anos viveu na Villa Medici nas alturas do Pincio.
2. Bernini
Nada nos prepara, contudo, para o confronto com a escala da realidade. Tudo é gigantesco, enorme. Nem o cinema, nem a fotografia dão a justa medida da cidade, das distâncias, dos edifícios. No dia em que chegámos, um sábado à tarde de calor maldoso, as colinas parecem mais íngremes, o lixo e o pó mais dispersos, e as ruínas um pouco menos estáveis do que o esperado. Roma é nesse dia uma cidade já mais do sul do que do norte da Itália, e isso até se nota no italiano cantado que se fala na rua, carregado de um sotaque inabitual, difícil de compreender. As passadeiras na rua são meras pinturas decorativas no asfalto, e os romanos olham-nos como se fôssemos transparentes, numa atitude muito próxima com aquela que nós, lisboetas, começamos a considerar o rebanho do turista na rua Garrett.
Subo para Santa Maria della Vittoria, na mira da Santa Teresa de Ávila de Bernini, essa sublimação do prazer carnal feminino em êxtase místico barroco — e espectáculo para o encomendador que, na capela lateral da igreja, se faz representar a si próprio em camarote de ópera em gelada brancura de mármore. Espectáculo, espectáculo que continua como era há 300 anos, tanto mais que é preciso pagar para ver: uma moeda de um euro assegura a iluminação indispensável para a correcta visão da escultura durante uns trinta segundos.
Bernini será um dos tempos fortes desta visita, ele que deixou marca por toda a cidade, desde a colunata curva do Vaticano às fontes da Piazza Navona, desde esta Santa Teresa à Beata Ludovica Albertoni — numa igreja mais modesta de Trastevere, San Francesco a Ripa — , também ela uma mulher contorcendo-se num leito de mármore em êxtase místico — , ou na profusão de esculturas que enchem a Galleria Borghese, também no Pincio. De certo modo, Bernini, que marca o apogeu desse estilo propagandístico que o barroco foi, significa o culminar de uma convenção mimética que nunca mais regressará à arte. Pretende captar a adesão do espectador pela emoção, pelo sentimento e, por isso, manipulá-lo e provocar a sua admiração sem reservas. A mão que agarra o mármore e o vinca como se se tratasse de carne não está apenas lá para marcar a perícia sem igual do escultor, mas também para assinalar o ponto final a partir do qual não se poderá continuar neste caminho. Nas igrejas jesuítas do Gesú e de Santo Ignacio, com estonteantes perspectivas celestiais pintadas no tecto, encontro a contrapartida pictórica deste raciocínio.
De Santa Maria della Vittoria desço para a Fontana di Trevi. É sábado, repito, não se sente uma aragem, e uma multidão de centenas de turistas enchem por completo a diminuta praça onde Fellini, outra vez ele, filmou Anita Ekberg dentro da fonte de vestido de noite de veludo preto. Fellini, nessa cena de La Dolce Vita, confirma-me o que eu já intuia: que Roma é uma cidade de esculturas, de edifícios feitos esculturas, de ruínas tornadas objecto. Anita Ekberg, nessa celebérrima cena, é ela própria uma escultura, com as suas formas barrocas, um pleonasmo das muitíssimas estátuas e fontes que ornamentam a cidade. Nada no filme nos dá a escala da Trevi, que parece entalada numa praça diminuta entre prédios em que ninguém deve já viver. O barulho é imenso, o grosso dos turistas vira as costas à fonte, tira uma selfie e come um gelado. Antes de seguir para a próxima atracção.
3. Canaletto
A distância entre o que vemos e a imagem que trazíamos da cidade é imensa. E, no entanto, é ela que nos leva a tomar consciência de que essa imagem, tal como sucede em Nova Iorque, foi fabricada pelo cinema. No fundo, é ao cinema que se deve o cliché que ainda hoje é a imagem da cidade que os turistas procuram. Ora, Roma foi o primeiro destino turístico do mundo culto. O Grand Tour, que os artistas e aristocratas cultos europeus realizavam a partir da Idade Moderna, tinha como destino Itália e a descoberta de uma paisagem que, pela primeira vez na história da Europa, não era vista como coisa utilitária — boas terras de vinho, por exemplo, ou excelentes carreiras de mármore, como as que Miguel Ângelo apreciava — , mas como fonte de deleite estético. E Roma, com as suas ruínas pitorescas que são representadas e copiadas sem fim pelos pintores do norte da Europa, é não apenas causa de prazer estético, mas oportunidade sem igual para uma reflexão melancólica, já pré-romântica, sobre a vã glória dos impérios.
Uma das exposições que decorre em Roma neste momento, e que pode ser vista até dia 19 de Agosto no Museo di Roma, tem justamente por objecto a construção dessa imagem da cidade. “Canaletto, 1697-1768” dá-se a ver como uma ambiciosa antológica da obra do pintor veneziano, responsável pela fixação de uma certa imagem da “luz” de Veneza, mas que também viveu em Roma no início da sua carreira. Com curadoria de Bozena Anna Kowalczyk, apresenta obras vindas de importantes museus de todo o mundo, desde o Pushkin, de Moscovo à National, de Londres, bem como dos italianos, com destaque para os venezianos Giorgio Cini e Academia. A exposição mostra bem como Canaletto, que começa por desenhar e construir cenários de ópera, guarda o sentido do espectáculo no desenvolvimento das vedute, um género particular de paisagem urbana muito detalhada que fazia furor no século XVIII e cristalizava a imagem ideial de cada lugar. Qualquer fotografia da ponte do Rialto ou da Riva dei Schiavonni, em Veneza, para não mencionar as incalculáveis vistas da laguna povoada de gôndolas, deve tudo, senão muito, à pintura de Canaletto.
A exposição, que segue uma linha biográfica e não se esquiva a deliciosos pormenores anedóticos — como o inventário dos bens aquando da morte do pintor, especulando sobre os pares de calções “velhíssimos”, por contraposição às camisas “usadas”, se não é o contrário — , tem o mérito de mostrar como, para além de um hábil produtor de vedute em quantidades consideráveis, que fazia por encomenda quando viveu em Inglaterra entre 1746 e 1755, foi também sensível às qualidades pitorescas da paisagem, precedendo nisto os românticos ingleses, que decerto tiveram amplas possibilidades de conhecer pessoalmente a sua obra. A Ponte de Rialto vista do Norte, hoje na Pinacoteca de Turim, exibe um céu tempestuoso como talvez o pintor tenha visto na famosa Tempestade de Giorgione, que é considerada hoje como a primeira pintura que representa a paisagem como género autónomo. Não sabemos. Mas a relação com o espaço urbano romano está também muito presente na obra deste pintor, sobretudo na pintura de capricii, um sub-género da paisagem que combinava ruínas, vistas em Roma na sua juventude, e paisagem natural, de modo fantasioso. E, embora pouco haja de melancólico na pintura de Canaletto — os seus seguidores, entre os quais Guardi, de quem a Gulbenkian possui uma excelente obra, preferem inspirar-se na sua temática veneziana — , o que é certo é que o Romantismo, de novo, vai olhar para este tema da ruína com um interesse muito particular.
4. Turner
Por coincidência, um dos mais importantes pintores românticos de sempre, William Turner, está representado numa outra exposição que decorre não muito longe daqui, no Chiostro del Bramante. O Chiostro, claustro que, como o nome indica, é obra do arquitecto renascentista Bramante, é uma dependência da belíssima igreja de Santa Maria della Pace. É sobretudo conhecido por albergar um famosíssimo fresco de Rafael representando as sibilas, e mostra agora também, numa sucessão de salas de reduzida escala onde se adivinha a origem monástica, uma selecção cuidada de obras do pintor inglês oriundas da Tate de Londres. Com curadoria de David Blayney Brown, apresenta peças quase todas pertencentes ao legado de Turner, que à data da sua morte, em 1851, deixou ao estado as obras que estavam na sua posse. A Tate é hoje o maior proprietário de obras deste artista, realizando periodicamente exposições suas um pouco por todo o mundo — em 2003, por exemplo, houve uma em Portugal, na Gulbenkian.
Nesta exposição, que pode ser visitada até 26 de Agosto, o curador teve o cuidado de privilegiar a relação com a escala quase intimista do espaço e escolher sobretudo obras de pequeno formato, vindas dos muitos cadernos de apontamentos de Turner que, embora legadas ao estado, como referimos, nunca foram pensadas como obras de arte para serem mostradas ao público. Turner (com Constable, mas essa é outra história), é também ele o criador de uma certa imagem do espaço inglês, se é que tal coisa existe, o mesmo, por exemplo, onde uma princesa podia ser chamada de “english rose” sem que ninguém pusesse em dúvida semelhante metáfora. E contudo Turner, porque é grande e muito bom, consegue ultrapassar estas qualificações, e construir uma obra que vai até além da questão do sublime na natureza, fundamento da sensibilidade romântica, já moderna, que Edmund Burke definira numa época que sucede à de Canaletto e que precede a da maturidade de Turner. De sala para sala, de época para época, por vezes mesmo da adolescência até à idade madura, sentimo-lo obcecado pelas questões da luz e da cor, ou da luz através da cor, inclusive nas aulas que dava na Royal Academy e de que a exposição apresenta os fascinantes materiais didáticos de apoio. Um capítulo especial da exposição é dedicado às viagens que fez a Itália e outros países, numerosas e regulares — o curador chega mesmo a chamar-lhe “o turista anual” — , e aos assuntos que aí o interessavam: castelos, desfiladeiros nos Alpes, as águas da laguna de Veneza, enfim.
Um caderno de esboços é como um livro de horas, ou um diário. Abre-se, usa-se, vê-se diariamente. Nas obras da maturidade, a secção final da exposição, percebemos como por vezes lhe bastava um borrão de cor, uma pincelada inclinada de determinada forma, uma linha sinuosa para servir de memento a uma pintura a realizar (ou não) no futuro. Turner é este pintor do instante, do momento que não volta mais que está muito próximo da flânerie de Baudelaire, que era para o poeta francês o modo ideal de percorrer a cidade moderna. Esta maneira de perceber o mundo encontra na natureza o reflexo da subjectividade do pintor, e é por aí, por esse misto de fascínio pela beleza da cor e admiração pela força indomável dos elementos que a sua obra pode começar a ser compreendida. Sem que o modo como se aproxima da abstracção, sem nunca lá entrar porque os tempos ainda não o permitem, não deixe de nos fascinar a nós, em pleno século XXI.
5. O pé de mármore
No Chiostro há uma cafetaria cara e sofisticada que me deixa beber uma água fresca sentada na sombra do claustro. Levanto os olhos, e vejo os jardins suspensos dos apartamentos de cobertura dos prédios das ruas vizinhas da Piazza Navona, todos eles emoldurados por janelas quase herméticas que devem resguardar do calor e do barulho os apartamentos que escondem. Este é o olhar do turista, como em tempos uma senhora me disse no autocarro que vai do Lido a Malamocco, em Veneza: andam todos de olhos no céu. Aqui é de facto o habitual, tanto mais que, para voltar ao cinema e à imagem de Roma que ele constrói, Nanni Moretti também nos põe a olhar para os apartamentos romanos de cobertura no Querido Diário de 1994. Este é também o olhar da centena de turistas que, comigo, olha para o tecto da Capela Sistina. E vislumbra, lá num canto, o Profeta Jeremias com que Ruy Belo cogitou um Diálogo com a figura do profeta jeremias pintado por miguel ângelo no tecto da capela sistina. É que de facto, este olhar, esta cabeça que se inclina para trás só pode fazê-lo porque o que vê é desmedido, enorme, colossal.
Desmedido é o Vaticano, o Latrão, as termas deste e daquele. Desmedido era o Panteão, até que se tornou no mais belo vestígio do império, esse sim com uma janela para o céu a justificar os olhos levantados. Desmedido é o pé exposto na Via del Pie di Marmo, o que resta de um colosso numa rua de resto adorável, com uma lindíssima livraria na esquina. Desmedidas as igrejas jesuítas, os sentimentos barrocos, o excesso de obras na Galleria Borghese. Desmedidos os restos que ainda se percebem aqui e ali da arquitectura fascista. Desmedidos os palácios, as igrejas, as distâncias que se percorrem a pé, os arcos de suporte de um antigo hipódromo que estaria por baixo da Piazza Navona. Há um fio condutor neste gosto pelo grande, nesta identificação que se quer criar entre escala, monumento, poder e orgulho — e vaidade às vezes, também — que é muito romano, e que se mantém através dos tempos. Como outros gostos que vemos manterem-se sem interrupção para além de impérios, religiões, regimes políticos. Em Roma, sempre em Roma.