Marrocos: se és homem, cobre as tuas mulheres na praia e fora dela

Campanha está a agitar as redes sociais. Foi lançada no início de Julho para impedir as marroquinas de usarem biquíni ou fatos de banho. Já deu direito a uma petição enviada ao Governo pelos activistas dos direitos das mulheres.

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Em Marrocos há ainda muitas mulheres que vão à praia de niqab Reuters/PHIL NOBLE

Começou no Facebook a 9 de Julho com um post dirigido aos homens em que se escrevia: “És responsável pelo que usa a tua mulher e a tua filha… Por isso, não sejas um dayooth [palavra árabe que se refere ao homem que permite que as mulheres da família tenham relações consideradas ilícitas].” A campanha online com a hashtag  árabe #kunrajel, lançada para impedir, em época estival, que nas praias de Marrocos haja mulheres muçulmanas em biquíni ou fato de banho, está a agitar as redes sociais e já chegou aos jornais.

Os que a criticam criaram já uma hashtag contrária — #Soisunefemmelibre (“Sê uma mulher livre”) — e lançaram uma petição destinada a levar o Governo a proibir o que definem como uma campanha “misógina” que tem vindo a gerar “indignação” no país e fora dele. E entre mulheres e homens.

Segundo o jornal digital Morocco World News, que opera a partir da capital marroquina, Rabat, mas tem sede em Nova Iorque, os signatários da petição pretendem abolir a hashtag #kunrajel (que se pode traduzir por “Sê um homem”, mas que na realidade tem um tom vernacular, que em português ficaria mais próximo de um “Ganha tomates”, a confiar na tradução para castelhano feita pelo diário El País).

O corpo que perturba

“O corpo das mulheres no espaço público parece estar a perturbar cada vez mais homens marroquinos, alguns dos quais se permitem, impunemente, ‘desempenhar com exagero’ um inaceitável papel policial no nosso país”, diz a petição, da autoria de Fathia Bennis, fundadora e presidente da Associação Tribuna das Mulheres. Este texto, que lembra ainda o raide que no ano passado levou uma verdadeira “milícia” a percorrer uma praia em Agadir forçando as mulheres em fato de banho a cobrirem o corpo, quer ainda chamar a atenção para o aumento da violência contra as mulheres em Marrocos.

Em 2016, escreve o Morocco World News, dados de um observatório nacional davam conta de que 73% das marroquinas diziam ter sido vítimas de assédio em locais públicos. No ano seguinte, uma investigação levada a cabo na sequência de um ataque chocante num autocarro em Casablanca chegava à conclusão de que a violência doméstica afecta 14,2% das mulheres.

Apesar de ter sido aprovada uma lei que condena a violência contra as mulheres, protegendo-as até de formas de abuso por parte do marido e de outros familiares que até aqui não eram reconhecidas pelos tribunais, muitos activistas dizem que há ainda um longo caminho a percorrer. De acordo com a petição lançada na passada quinta-feira e que já tem mais de 1500 assinaturas, a Constituição marroquina concede a homens e mulheres igualdade de direitos cívicos, políticos, sociais, culturais e ambientais, algo que a campanha #kunrajel (também com as hashtags #kunrajulan e #soisunhomme) não está disposta a reconhecer.

Segundo o diário espanhol El País, que esta segunda-feira publica uma reportagem numa praia de Marrocos em que fala com várias mulheres, umas contra a campanha #kunrajel e outras a favor, a situação das mulheres naquele país do Norte de África melhorou consideravelmente com a lei de 2004 (um novo código de família). A idade mínima para o casamento passou dos 15 para os 18 anos, o que permitiu à mulher pedir o divórcio, e deu-lhes acesso a parte dos bens do casal, em caso de separação.

Apesar das melhorias, nota o El País, há ainda cerca de 45 mil casamentos por ano entre homens adultos e mulheres com menos de 18 anos e o Código Penal continua a punir as relações sexuais fora do casamento (um ano de prisão), a homossexualidade (três anos) e o adultério (dois anos, quando denunciado pelo cônjuge, seja homem ou mulher).

As mães solteiras também continuam a ser marginalizadas e quanto às heranças, as mulheres continuam a ser prejudicadas: quando os pais morrem, por exemplo, as filhas marroquinas só podem receber metade dos bens que recebem os seus irmãos.

Campanha machista

Ibtissame Betty Lachgar, porta-voz do Movimento Alternativo para as Liberdades Individuais (MALI), que em Marrocos, e na observância dos princípios da desobediência civil, luta pelos direitos humanos, sejam eles os das mulheres ou os das minorias, está entre os que acreditam que há ainda muito a fazer para garantir a igualdade.

Para Lachgar, uma psicóloga clínica de 43 anos que de acordo com o jornal online El Faro de Melilla recebe com frequência ameaças de morte e de violação por causa do seu activismo na defesa da igualdade de liberdades para as mulheres ou os homossexuais, a situação no espaço público tem vindo a piorar.

Foi dela que partiu a iniciativa de criação da hashtag #Soisunefemmelibre. Lachgar compreende os argumentos de todos aqueles que nas redes sociais e nas páginas dos jornais têm defendido que o melhor é “ignorar os provocadores” que desencadearam a campanha que classificam como “machista”, mas prefere falar porque o silêncio pode ser lido como cumplicidade. Tanto lhe faz que as mulheres usem fato de banho na praia ou um niqab (o véu que deixa apenas os olhos à vista), desde que possam fazer o que quiserem. Incluindo não ir à praia.

“O importante é que as mulheres actuem em liberdade e não sob o domínio do patriarcado”, disse ao El País. “Não se trata da roupa, mas do corpo. Queremos que os homens deixem de controlar os nossos corpos. Os mesmos que não respeitam o nosso corpo são os que dizem, quando uma mulher é violada: ‘Bem o mereceu pela maneira como ia vestida’. São os mesmos que me assediam e insultam.”

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