O rock não morreu, mas mudou-se para Colômbia e Turquia, diz-nos o FMM
Na despedida de Porto Covo, o FMM foi tomado de assalto pelos psicadelismos tão singulares quanto deslumbrantes dos Meridian Brothers e BaBa ZuLa. E ficámos a saber o quanto nos fazia falta conhecer Robert Finley, monumento blues/soul que nos tem presos a cada verso.
Uma marioneta vermelha, iluminada pela luz de uma pequena lanterna, avança por entre o público no Largo Marquês de Pombal, em Porto Covo. É levada pelo seu manipulador com o esmero curvado de quem levaria pela mão a própria filha, furando a multidão, com o cuidado de não deixar que a sua protegida fosse pisada por algum passo de dança mais impetuoso ou derrubada por algum meneio de ancas mais imprevisto. Não fosse estarmos a assistir ao concerto dos sempre delirantes Meridian Brothers e a cena poderia parecer uma intromissão surreal no cenário da aldeia alentejana; mas no meio desta selva sonora de um rock carregado de um psicadelismo sem freio, com cumbias, champetas e vallenatos tratados como contendo propriedades psicotrópicas, de um colorido garrido e alucinado, a situação torna-se, de repente, um mero sinal de normalidade. Na verdade, e de forma quase paradoxal, faz crer que esta deflagração de música mirabolante a que assistimos em palco só pode ser verdadeira.
Pela segunda vez no Festival Músicas do Mundo (FMM) – a primeira fora em 2014 –, os Meridian Brothers voltaram a usar duas armas fundamentais no seu jogo de sedução com os públicos sem cidadania colombiana: o reagrupar das ossadas musicais de Jimi Hendrix, mas montando-as de forma a delas extrair não uma síntese da música negra, mas antes um “perreo-reggaeton” (perreo é uma forma de baile latino-americana particularmente lasciva) que soou a um rock tomado por febres tropicais; e a tendência repetida para raiar a loucura em palco, exemplificada quando, no final de El gran pájaro de los Andes, os Meridian deslaçam, com a música a finar-se, o seu cardápio de imitações de sons animais — e o público responde com grasnares e macaqueares que transformam, por momentos, Porto Covo num imenso zoo em que já nada parece descabido.
Claro que tudo isto poderia não resultar em mais do que aquele velho truque de atirar uma bola ao ar para disfarçar algo mais que se passa (ou não) a um nível inferior. Podia até acontecer que os Meridian Brothers da mente fervilhante de Eblis Álvarez (que encontramos também nos mui recomendáveis Los Piranãs e Chupame El Dedo) se limitassem a mascarar falta ideias com uma teatralização do excesso. Só que neste cometa musical colombiano as notas do baixo bailam o tempo todo, as percussões transpiram a cada segundo a identidade tropical latino-americana, os teclados parecem pilhados de um banco de sons sci-fi e a guitarra e voz (por vezes transfigurada) de Eblis acentuam a chamada para um lugar de delírio pirético que só acontece com tanto garbo na música desta gente.
Rimar Erdogan com Orbán
Se os Meridian Brothers fecharam os quatro dias de concertos do FMM em Porto Covo (esta segunda-feira a base de operações, até sábado, passa a ser Sines) com a mais monumental das passagens por aquele palco, o grau de escapismo atingira já níveis consideráveis com os BaBa ZuLa na véspera. Há uma energia bruta nos turcos que parece tê-los atirado directamente dos clubes marginais de Istambul para o palco de Porto Covo, fazendo esquecer que entre os dois momentos passaram mais de 20 anos.
Essa energia primeva é tão transbordante e desconcertante que os BaBa ZuLa abandonam o palco e misturam-se com a multidão quando o concerto ainda mal começou. Ainda nem aqueceram o público, ainda nem se certificaram de que a música já produziu o seu efeito de contágio quando Murat Ertel e Periklis Tsoukalas, munidos de saz e alaúde eléctricos, desaparecem no meio das dezenas de pessoas que sobrepovoam as primeiras filas. O resultado musical resultante desse prolongado momento não é propriamente vitorioso, mas há uma vontade entusiástica de estabelecer uma relação com a plateia que compensa largamente essa fragilidade.
De volta ao palco. Ertel e Tsoukalas comandam uma viagem pelo legado do rock psicadélico da Anatólia, colhido de Erkin Koray, Baris Manço ou Cem Karaca, com eventuais ecos de uma música que é toda ela ecos (dub). A sonoridade dos BaBa ZuLa é um combate em contínuo entre energia e densidade, desenrolado sobre um tapete rítmico árabe que elimina a necessidade de qualquer palavra-chave para entrar neste mundo. Os BaBa ZuLa soam, afinal, a uma explosão de liberdade que circula em sentido contrário aos destinos do seu país. Não é difícil, aliás, perceber que quando aconselham o público a dar ouvidos aos poetas e não “às pessoas que estão no poder e que vos dizem mentiras todos os dias” estão a falar em causa própria e a evitar manchar o seu concerto com o nome de Erdogan.
A receita do rock psicadélico como analgésico para sociedades que — em linguagem de redes sociais — têm uma relação do tipo “é complicado” com a democracia havia já surgido nessa mesma noite pela mão dos húngaros Meszecsinka. Num equilíbrio nem sempre bem gerido entre a música tradicional (húngara, sim, mas também búlgara) e os arroubos de psicadelismo, o grupo húngaro dispõe-se todo em torno da voz que parece não ter fim de Annamária Oláh. Culpam as montanhas da Hungria pelo psicadelismo — nada dizem sobre as eventuais culpas de Viktor Órban —, mas é difícil não pasmar e escalar essa montanha que conduz aos encantos explosivos do grupo.
Um nome a reter: Robert Finley
A bolsa de apostas já colocava sem grandes hesitações os Meridian Brothers e os BaBa ZuLa entre os grandes concertos do fim-de-semana de Porto Covo, mas a história do FMM faz-se de repetidas revelações vindas de onde menos se espera — basta lembrar as actuações passadas dos BCUC, Asif Ali Khan ou Tigran Hamasyan para saber que tudo aquilo que conhecemos de um artista pode ser uma pálida imagem daquilo que pode oferecer diante de uma multidão. Em Porto Covo, a grande surpresa do festival estava guardada para o concerto do norte-americano Robert Finley. A descoberta tardia de Finley — gravou em 2016 o seu primeiro álbum aos 64, mais de 50 anos depois de se ter estreado, tendo conquistado algum reconhecimento graças à produção de Dan Auerbach, dos Black Keys — parece uma história contada já tantas vezes que se perde a atenção para o que nos possa dizer. Mas há uma alma gigante neste homem, que serpenteia por blues, soul e r&b com a agilidade de um adolescente, e a mestria de um octogenário.
Dedicado à música agora que a sua quase total perda de visão o obrigou a abandonar o ofício de carpinteiro, Robert Finley tem ainda discernimento para elogiar as mulheres bonitas com quem se cruzou em Porto Covo. Mais do que isso, no entanto, esse elogio é a ponte narrativa que estabelece com Medicine woman e aquilo que vamos percebendo ao longo da actuação é que há poucos músicos com esta exímia capacidade de partilhar histórias e prender uma praça cheia, a rebentar pelas costuras, a cada um dos versos que canta. Quando interpreta Age don’t mean a thing, espantosa canção que subalterniza a idade perante aquilo que manda a libido, Finley põe o público a uivar de satisfação ao cantar diálogos como “How old are you? – I’m old enough to make your dream come true”.
Finley é alguém que se imagina a circular entre o Tom Waits clássico, o melhor Otis Redding e um Bruce Springsteen envelhecido de acordo as melhores técnicas vinícolas, e que, sem aviso prévio, tira da cartola um falsete soul que poderia estar preso às cordas vocais de Al Green. Uma descoberta que justificaria, como se dizia no final da noite, voltar ao FMM com honras do palco no Castelo de Sines. Menos surpreendente terá sido a demonstração de talento de Vieux Farka Touré, esmerado filho de Ali Farka, um impressionante e virtuoso intérprete dos recursos da guitarra maliana mas sem o rasgo de brilhantismo que o seu pai extraía de qualquer guitarra acústica, por mais castigada e esclerosada que fosse o seu estado.
Virtuosismo foi coisa que não faltou também aos venezuelanos C4trio – que é como quem diz um trio de quatro. Ou seja, um trio de quatros (instrumento tradicional de cordas na Venezuela), aumentado de um baixo com igual predisposição para percorrer o braço do instrumento em velocidade supersónica. Mas é virtuosismo com uma musicalidade e uma simplicidade cativantes, algo que encontrámos também nos espanhóis Brigada Bravo & Díaz e nos polacos Kroke. Menos dados ao klezmer do que há uns anos, os Kroke navegam hoje por terrenos menos imediatos (do jazz às músicas de cordas centro-europeias, às vezes quase a roçar uns Sigur Rós da folk nos momentos de arrebatamento épico que assomam à voz do violista Tomasz Kukurba) e em que a exploração criteriosa da beleza que levaram para palco desaguou em solos em que Kukurba tratou a viola d’arco como se tivesse uma guitarra eléctrica nas mãos. Ele mesmo, tal como Eblis Álvarez, quase se reclamando um bastardo herdeiro de Hendrix.
O PÚBLICO esteve em Porto Covo a convite do Festival Músicas do Mundo