Não é parecida com Nico, não canta como Nico mas Nico aparece-lhe
Nico, 1988, de Susanna Nicchiarelli, importuna o “filme biográfico” com uma personagem que não estava confortável na sua pele. Não imita Nico, o ícone, faz Nico aparecer. Revela a comédia humana. Entrevista com a realizadora.
Não é parecida com Nico, não canta como Nico e por isso a actriz dinamarquesa Trine Dyrholm foi a Nico perfeita para a realizadora italiana Susanna Nicchiarelli. Para o que ela queria fazer. É que há uma pergunta a que Nico, 1988 se atreve, intervindo sobre um género: que biopic pode ser hoje um biopic? Responde em actos, dirigindo-se à inteligência (palavra da realizadora) do espectador de hoje. Por exemplo, não mascarando Trine Dyrholm com playback, porque assim talvez deixasse fugir a personagem, ficando com a caricatura. Explicitando mesmo, pela intromissão de fragmentos de material de arquivo, que Trine e os outros, uma equipa e uma realizadora, não estão a imitá-la, estão a convocá-la no plateau. Como um chamamento.
Trine Dyrholm, prémio de melhor actriz em Berlim 2016 por The Comune, de Thomas Vinterberg, com passado de cantora (passou pela Eurovisão), não imita a voz, não reconstitui as performances. Participa, antes, de um trabalho sobre a memória. Eventualmente, Nico, nascida Christa Päffgen em Colónia, em 1938, e vítima em Ibiza, em 1988, de um derrame cerebral, aparecerá. Para um fragmento da sua vida, os últimos tempos e os seus últimos concertos, para um filme on the road, Paris, Praga, Nuremberga, Manchester, sobre uma digressão e sobre o abandono progressivo da heroína e o resgate afectivo do filho Ari. É um filme sobre uma presença desajustada, que aceitava que a metadona pudesse fazer dela velhota elegante (a alternativa, acabar como uma velha junkie, não era desejada) e que sacudia qualquer nostalgia tentada nas entrevistas - sobre os 60, os Velvet Underground, Andy Warhol, Lou Reed. E Nico sacudia com ironia termos como “musa” ou femme fatale.
Trine contou que tendo visto material de concertos e entrevistas, a pista foi uma resposta da cantora-compositora a uma pergunta sobre o que é que mais lamentava na vida: “ter nascido mulher, não ter nascido homem”. O incómodo que Nico, 1988 causa ao biopic tem um corpo. Nico, 1988 (data: uma Europa à beira do fim) respira o desajustamento que habitava em Nico. E coisa bonita deste biopic que também é retrato de grupo: a comédia humana que tem para revelar.
A actriz Trine Dyrholm mencionou uma entrevista em que Nico dizia que não lamentava nada a não ser o facto de ter nascido mulher. Um mismatch existencial. A desadequação da personagem contamina os planos pela sua simples presença.
É verdade. Foi importante o facto de Nico me permitir fazer um biopic diferente. Não é a história clássica da rock star que morre jovem. É a história de uma rock star que com a maturidade encontra a sua voz artística. Não trabalhámos a partir de um objectivo de imitação. A Trine não é parecida com a Nico. Não fui à procura de uma actriz parecida com Nico ou que cantasse como Nico – se a imitássemos, seria uma caricatura. Mas sabia que a Trine era capaz de desenvolver uma personagem, tornando-a mais universal.
Nico nunca esteve confortável na sua pele. Quando a vemos na Dolce Vita [Federico Fellini, 1960], quando a vemos nos screen tests de Warhol a não saber o que fazer, a fazer coisas com as mãos e com a cabeça... temos a impressão que por mais bonita que fosse havia um sentimento de não pertença.
Gosto da ironia dela, como respondia aos jornalistas de forma irónica - quando fala dos anos 60 nunca os idealiza. Nunca pertenceu a lugar nenhum. É ela que diz que esteve lá em cima e esteve cá em baixo e que ambos os lugares são vazios.
A primeira coisa que fizemos foi escolher as canções, trabalhar com os músicos, e através da linguagem corporal Trine encontrou a voz. Trine é uma bela cantora, mas tinha de cantar “mal”, e a abordagem à personagem foi feita trabalhando a música e a letra das canções. Essa entrevista da Nico de que fala deu a Trine a ideia de uma personagem desconfortável com o seu corpo e com o mundo.
Contamina o filme. O que dá a Nico, 1988 também a sensação de comédia. Uma comédia congelada, certo – no sentido que os filmes de Aki Kaurismaki são comédias...
Há algo de escandinavo na comédia, sim, talvez por isso no Norte da Europa as pessoas riam mais com o filme do que no Sul.
A vida das pessoas que tocam música, a associação rock e drogas... é mais esta a forma como conto em Nico, 1988: o não ter lugar para dormir, o estar sempre a saltitar de casa de amigos para casa de amigos, o aborrecimento de viajar, os problemas para saber quem é que traz a droga... esse tipo de embaraço é mais realista do que o glam que é enfatizado.
Sim, aquela cena em que Nico mete heroína, e é observada: o embaraço da rotina...
As pessoas reais são assim. Foi isso que me fez relacionar com Nico: o parecer sempre deslocada. Senti sempre isso toda a vida, todas as pessoas o sentem. Mas nos filmes, e nos filmes sobre o rock, tudo é contado da perspectiva glamourizada, perde-se a sensação de embaraço.
Por exemplo, as cenas de sexo têm sempre um elemento de embaraço, e isso nunca se vê nos filmes.
Gosto de trabalhar com os actores para encontrar o espaço entre as palavras, o embaraço entre os diálogos. Pus isso em Nico, 1988. O silêncio é algo que nos filmes geralmente desaparece na montagem.
Falou em sexo... na verdade, ausenta-se aqui. Negando a habitual narrativa sobre Nico, que costuma ser olhada a partir dos homens da sua vida.
É verdade que a vida de Nico foi sempre contada a partir dos homens com quem dormiu. O que me irrita muito. E que acontece sempre às mulheres: parece que o mais interessante da vida delas foram os homens, É claro que Nico dormiu com homens interessantes, a começar por Bob Dylan, mas fiz questão de não falar de nenhum deles, nem mesmo de Alain Delon, que é o pai de Ari [Christian Aaron Boulogne, nascido em 1962; Delon nunca assumiu a paternidade, Ari foi criado por Edith Boulogne, mãe de Delon]. O único homem de que quis falar foi Jim Morrison porque para ela Jim foi importante. Foi ele que lhe deu a ideia para começar a escrever canções - no filme de Oliver Stone [The Doors, 1991], o único momento em que ela aparece é para o sexo oral a Morrison no elevador. Fiz questão de fazer o oposto, não quis falar de nenhum deles, nem de Brian Jones. Mesmo quando alguém pergunta “se ela teve uma história com um dos Rolling Stones”, não mencionamos o nome dele. Quis que isso estivesse nas traseiras do filme.
Mas há outra razão para o sexo estar ausente. Naquele momento Nico não tinha ninguém. A letra de These Days interpreta bem Nico naquele momento. A canção foi escrita por Jackson Browne em 1966, não podia ser sobre a Nico dos anos 80 mas é. Ela desistira de muitas coisas, e retirara-se dos homens. A atenção era focada no filho. Porque não havia nenhum homem - em 1972 havia [Philippe] Garrel. Fazer um filme sobre Nico em que não havia sexo seria surpreendente.
Não era uma mulher romântica nem sentimental, nem com o filho. Gosto da personagem por causa disso, por ser racional, parecendo às vezes fria.
Sobre as canções que escolheu, These Days, All Tomorrow’s Parties, My Heart is Empty..., são parte da narrativa, contam Nico...
Sim, fazem parte do argumento, e é por isso que em Itália [onde os filmes são dobrados] colocamos subtítulos durante as canções. Quis que Trine cantasse, porque o que ela canta são coisas que “acontecem” à personagem, são performances da vida. Não fazia sentido pôr a voz de Nico a sair da sua boca. Tratei as performances e as canções como linhas de diálogo do filme.
Há outra canção importante, My Only Child, por causa de Ari - ela escreveu a canção quando Ari tinha 8 anos. Outra canção que está lá pelas letras, e que na verdade Nico nunca cantou, é Nature Boy, em que se diz: “The greatest thing you’ll ever learn/Is just to love and be loved in return”. É sobre o amor materno, o único em que somos retribuídos na mesma medida. Falei muito com Ari quando estava a escrever o argumento e é interessante a forma como ele fala dela: amor incondicional sem qualquer censura ao facto de Nico não ter sido mãe perfeita.
Trine não é parecida com Nico, não canta como Nico, mas é a sua Nico. Os biopics querem que os actores sejam iguais às personagens, e por isso, no caso de um cantor, o playback é a solução. Em Nico, 1988 a voz é a da actriz, as performances não tentam reconstituir, são uma participação, da actriz e da realizadora, para chamar Nico. E ela acaba por “estar” lá. O mesmo acontece com a utilização dos fragmentos de Jonas Mekas [Scenes from the Life of Andy Warhol: Friendships and Intersections]. Esse material de arquivo, ao marcar a diferença entre a pessoa real e a personagem, é utilizado a contracorrente de um biopic convencional...
Ainda bem que me diz isso.
Seria impossível reproduzir Nico. Nada seria suficiente. Por isso o melhor era encontrar alguém com a personalidade certa e a capacidade para recriar a personagem do zero. Para além do mais, acho que as pessoas não gostam de ver imitações, estão sempre a verificar a relação com a realidade e com a verdade. Isso impede-as de viver o filme.
Não quis criar a ilusão de que a minha actriz era Nico. Queria fazer um filme sobre a vida como coisa longa e complicada. A vida particular da Nico podia dizer algo de universal sobre as nossas vidas.
Gosto muito quando se vêem imagens de arquivo. Apela à inteligência do espectador. O espectador não é alguém que se engane com a ilusão total. Ele sabe qual é a verdade, sabe que está a ver um filme. A ideia de um filme ser ilusão total não faz sentido hoje. As pessoas sabem como se fazem filmes. Devemos apelar à inteligência do espectador, que é capaz de separar a verdade do material de arquivo e aceitar a ficção do filme. Foi o que fiz com Mekas.
Material sobre os rastos da memória. Era naquele fantasma que todos pensavam no plateau...
Estávamos todos a lidar com essa memória, sim. Hoje é a forma mais interessante de fazer cinema. Em vez de criar a suposta grande ilusão e os seus efeitos, trata-se de falar de forma directa com os espectadores sobre os atalhos de um filme.
Porquê Big in Japan, a canção de 1984 dos Alphaville?
Os Alphaville eram uma banda alemã, como Nico, era plausível que pudessem ser ouvidos na rádio na Europa de Leste, como no filme. Representa a superficialidade dos 80, mas ao mesmo tempo gosto da ideia de ter a personagem de Nico a cantá-la em estilo gótico. Para mostrar as identidades diferentes daqueles anos.
É uma canção sobre dois miúdos à espera de heroína no Zoo Garten, em Berlim Oeste, onde Nico cresceu, onde teve o primeiro trabalho como modelo, na [loja] KaDeWe. O tema de Big in Japan é a fama, o mito dos 80: quantas pessoas me conhecem, quantas gostam de mim, o que significa o sucesso? A ironia da letras de Big in Japan é que o sucesso e o falhanço são extremos que não existem na vida. A vida é o que se passa no meio.
Como investigou os anos 80 naquela parte da Europa - há aquela sequência do concerto em Praga -, antes da queda do Muro de Berlim, que desapareceria já depois de Nico ter desaparecido?
A data que mudou o mundo foi 1989, Nico morreu um ano antes. Sentia de forma dolorosa a questão da identidade alemã e os problemas da guerra fria. Morreu com isso. Por isso 1988 está no título. E por isso quis colocar um concerto no Leste europeu. O episódio de Praga - Nico não tinha heroína, gritou com toda a gente, o concerto foi ilegal e ela parecia estar-se nas tintas - foi verdadeiro. E também é verdade que foi uma óptima performance. E que fugiram à polícia.
Ari viu o filme? Pode ser apenas um filme para ele?
Claro que não, até porque o apresenta em situações difíceis. Quando lhe mostrei o filme, estava muito nervosa. O primeiro comentário que fez foi durante a cena em que Nico come spaghetti. Virou-se para mim: “Esta actriz é mesmo muito boa”. Percebi que ia gostar.
Não é fácil para ele. Mas todas as pessoas a quem mostrei o filme, pessoas que conheceram Nico, gostaram, ninguém me disse que não tinha sido assim.
Nico “esteve” lá...
Sim, foi o que aconteceu.