Cuidado com a pressa nas finanças locais!

É conhecido da experiência internacional que as organizações públicas estão sujeitas a pressões deficitárias nas suas contas.

Está em apreciação na Assembleia da República um pacote de diplomas para mudar a repartição de competências de despesa entre Estado e Administração Local e o enquadramento da gestão orçamental local — vulgo Lei das Finanças Locais (LFL). É uma excelente oportunidade para o país reflectir e resolver um problema de fundo na qualidade das finanças públicas nacionais: o seu enquadramento é, de facto, um regime de regras e estabilidade plurianual ou é um regime de discricionariedade e instabilidade permanente? Esta é uma contradição com décadas nas finanças locais portuguesas e tem consequências nefastas para todos os agentes envolvidos, incluindo os contribuintes e os destinatários das políticas públicas locais. Urge tomar consciência desta contradição e eliminá-la, pois ela prejudica a qualidade das políticas públicas, a sustentabilidade das finanças públicas e é uma causa de atrito recorrente entre os poderes central e local que a ninguém aproveita.

É conhecido da experiência internacional que as organizações públicas estão sujeitas a pressões deficitárias nas suas contas. O problema não está nas propriedades intrínsecas das pessoas responsáveis pela gestão dessas contas; aliás, a esmagadora maioria dá provas de elevada responsabilidade financeira na conduta das finanças pessoais e das organizações privadas que tenham também servido. A literatura económica especializada tem identificado várias causas para este enviesamento deficitário e essas causas radicam nos modelos de governança das organizações públicas e no modo como as escolhas colectivas são tomadas pela sociedade. As regras de disciplina orçamental têm vindo a ser preconizadas como um pilar importante de um sistema articulado de incentivos para contrariar aquelas pressões. Tipicamente, consistem em tectos à despesa ou a certas categorias de despesa, ao défice, à dívida ou ao serviço da dívida. Em conjugação com algumas destas regras, também são frequentes os limites nominais, tectos ou chãos, às transferências a receber de níveis superiores de jurisdição territorial. Há ainda ordenamentos nacionais que reconhecem a importância de limitar abusos do poder de monopólio do Estado ou dos governos subnacionais na cobrança de impostos ou ainda a concorrência fiscal excessiva entre governos do mesmo nível territorial, impondo, por isso, limites superiores e inferiores, consoante o caso, à fixação das taxas dos impostos.

Em tese, estas regras servem para promover condutas financeiramente sãs na gestão financeira pública. O que se pretende é que as regras de disciplina orçamental proporcionem segurança a todas as partes interessadas sobre quais são, de facto, as restrições orçamentais de cada governo. Não está em causa limitar a capacidade de qualquer autarquia para aumentar as suas receitas; o que se pretende é ajudá-las a conhecer em cada momento os meios com que podem contar e permitir-lhes assumir compromissos plurianuais à medida das suas possibilidades. Como é evidente, estas possibilidades não se limitam às receitas próprias; devem também incluir as transferências intergovernamentais e a capacidade de endividamento.

Portugal inovou quando, logo na primeira LFL, em 1979, optou por um regime de regras. Esta opção foi sucessivamente confirmada nas cinco leis seguintes, incluindo a que foi aprovada em 2013 e se mantém em vigor. Uma LFL justifica-se para definir as traves-mestras com as quais as autarquias exercem as suas opções financeiras no médio prazo, no quadro da autonomia política de que dispõem constitucionalmente. A LFL define, assim, as características essenciais do enquadramento orçamental local. Faz, portanto, todo o sentido que haja regras de disciplina orçamental vertidas na LFL. Qual é então o problema? O problema está no facto de, em paralelo à LFL, o Parlamento aprovar quase todos os anos um largo conjunto de excepções às regras através das leis anuais do Orçamento do Estado (OE). Desde 2001, só num ano esta prática não ocorreu. Exemplos: a regra da dívida na LFL de 2013 sujeitava a globalidade dos passivos exigíveis do grupo municipal a um tecto (150% da receita corrente líquida cobrada pelo município na média dos três anos anteriores); todos os anos vêm sendo acrescentados passivos que não contam para este tecto (como empréstimos para financiar a contrapartida pública nacional em projectos do Portugal 2020, passivos das sociedades Polis assumidos pelos municípios, e passivos do Estado transferidos para os municípios no âmbito da descentralização de competências). Existem na LFL regras numéricas que fixam o valor das transferências orçamentais do Estado para cada autarquia, mas quase sempre as leis do OE as trocam por uma decisão discricionária, que poderá dar mais ou menos dinheiro a cada uma.

A troca reiterada de regras de disciplina orçamental local por decisões discricionárias e imprevisíveis do governo central mexe com os incentivos à gestão local e no mau sentido. As regras perdem a capacidade de orientarem as organizações locais na gestão prudente da sua actividade. É um erro induzir a ideia de que apenas é condenável o incumprimento da lei, pois um passivo não deixa de ser obrigação a pagar por não contar para a regra da dívida. Enquadramentos orçamentais locais instáveis podem conduzir a problemas de restrições orçamentais brandas. A imprevisibilidade das regras do jogo, que determina compromissos certos e recursos incertos, pode acabar voltando-se contra o governo central. A experiência dolorosa de 2008 a 2014 mostrou à saciedade como a volatilidade daquelas restrições levou a sucessivos programas de resgate de inúmeras autarquias, com reflexos na própria crise das finanças públicas nacionais. A própria resposta de emergência do Estado, ao impor os mesmos sacrifícios a todos os municípios, sem atender à qualidade da gestão de cada um, gerou fenómenos de risco moral perversos. Muitos autarcas terão pensado: “para quê sofrer o ónus político de uma gestão prudente quando, nas horas difíceis do país, se é tratado com a mesma dureza que municípios com condutas menos sãs? Para a próxima, farei como eles.”

Importa tomarmos consciência que condutas financeiramente sãs não deverão ser pomo de discórdia ideológica. Pensar o contrário é pôr em causa a própria essência da democracia, que consiste na possibilidade de periodicamente os cidadãos reverem as suas preferências ideológicas e elegerem propostas diferentes em matéria de políticas públicas, tanto do ponto de vista dos bens e serviços a fornecer como dos meios empregues para financiar essa provisão. Se uma administração tiver tido uma gestão financeiramente desastrosa, prejudica seriamente a capacidade de as plataformas concorrentes colocarem no terreno as suas próprias ideias, pois passarão boa parte dos mandatos seguintes a recuperar capacidade financeira.

Para cumprirem a sua finalidade, as regras têm que estar devidamente articuladas com outras características do enquadramento orçamental, como sejam o quadro de competências, o ónus político na obtenção de parte das receitas e nas escolhas de quanto, como e em quê gastar, e ainda os instrumentos usados para promover o equilíbrio orçamental vertical (i.e., entre os níveis central, regional e local das AP) e a equidade horizontal (meios para garantir níveis de provisão considerados politicamente adequados em todas as parcelas do território nacional).

A experiência passada recomenda que haja no futuro maior cuidado na redacção das normas que enformam as regras. Para serem eficazes, estas têm que ser simples, estáveis, mensuráveis, tempestivas, monitorizáveis e consequentes. Só se estas propriedades forem respeitadas é que as regras serão credíveis, ou seja, levadas a sério por quem tiver que as cumprir, por quem tiver que as fazer respeitar e por quem tiver que negociar com os governos a elas sujeitos (seja como fornecedor ou credor). Por estes motivos é tão importante a articulação entre o cuidado técnico e o rigor político na preparação da legislação e da eventual regulamentação que for necessária. O que sucedeu com a LFL de 2013 (bem como com a lei de finanças regionais do mesmo ano) não deverá voltar a suceder. A informação necessária para apurar o tecto numérico da dívida dos grupos municipais não é conhecida no primeiro dia do ano a que a regra se aplica. Ainda hoje, quatro anos e meio volvidos sobre a aprovação daquele diploma, está por regulamentar a operacionalização das regras do saldo corrente modificado e dos tectos à despesa de médio prazo. Finalmente, é preciso restringir a circunstâncias justificadamente excepcionais a possibilidade de introdução de excepções através de leis avulsas, sejam as do OE ou outras.

A pressa nunca foi boa conselheira. É tudo isto e muito mais que deverá ser pensado maduramente na Assembleia da República antes de se aprovar o pacote de diplomas referido.

CIDADANIA SOCIAL - Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais - www.cidadaniasocial.pt

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