A mãe de todas as cimeiras ainda está para vir
O que fazer com os EUA é a grande questão que a Europa tem pela frente. Como tratar um aliado que se comporta como adversário?
1. “A União Europeia foi criada para tirar vantagem dos Estados Unidos”. A frase, cuja assinatura não podia ser outra, foi dita na sexta-feira pelo Presidente americano. No mesmo dia, soube-se que há já algum tempo tinha proposto a Macron a saída da França da União Europeia, substituindo-a por um acordo comércio com os EUA. “Tremendo” e “maravilhoso”. Ontem, o seu homólogo francês limitou-se a comentar que toda a gente sabia qual foi a resposta. Por momentos, fica-se sem saber exactamente se se trata do que pensa mesmo o Presidente americano ou se é apenas uma forma de criar tensão entre os dois lados do Atlântico. A primeira hipótese é provavelmente a verdadeira. Ambas levantam a questão que hoje se coloca em todas as chancelarias europeias: o que quer Trump da relação transatlântica? Acabar com ela? Alterar radicalmente os seus termos?
2. O que reserva o Presidente para a cimeira da NATO, até hoje a trave mestra, tida como indestrutível, da relação entre a Europa e os EUA? Teme-se o pior.
Em Washington, a coreografia das deslocações de Trump no palco internacional previstas para os próximos dias não é nada animadora. John Bolton, o falcão que é hoje o seu conselheiro de Segurança Nacional, esteve recentemente em Moscovo para preparar uma cimeira, a primeira, entre os dois Presidentes, que terá lugar em Helsínquia a 16 de Julho. Terreno neutro e cheio de tradições. Bolton não especificou aos jornalistas o que seria a agenda. Limitou-se a dizer que a sua realização já era um sucesso. Há uma vasta lista de temas a discutir: a Síria, a crise ucraniana, a interferência russa nas eleições americanas (e outras), a alegada cumplicidade entre a campanha de Trump e Moscovo, as sanções que os EUA e a Europa mantêm contra Putin por causa da Crimeia. Trump não poupou elogios ao seu homólogo russo durante a campanha eleitoral. Gosta de “homens fortes” que mandam mesmo nos respectivos países. Mas a realidade não lhe permitiu até agora traduzir essa simpatia em decisões politicas. Pelo contrário. A experiência anterior também não é abonatória. Do seu encontro com Kim Jong-un ao qual teceu imensos elogios, ainda não se viu nada em matéria de desnuclearização. Foi o que disse um porta-voz do Pentágono recentemente. “Ainda não vimos nada”. Foi o que reiterou o próprio Trump há meia dúzia de dias. “A Coreia do Norte continua a ser um grande perigo”. Em que ficamos? James Mattis foi na semana passada a Seul e a Pequim tomar o pulso à situação. Apesar do cancelamento dos exercícios entre a Coreia do Sul e os EUA, previstos para Agosto, o chefe do Pentágono falou de “laços de aço” entre os dois países. Em Pequim, ouviu uma mensagem dura: a China não permitirá qualquer interferência americana nas bases que está a construir no Mar do Sul da China, às vezes em total violação da lei internacional. Diz Leon Panetta, ministro da Defesa de Obama e chefe da CIA, ao site americano do Politico “Creio que têm de ser muito cuidadosos. Pode enviar a mensagem erradas ao mundo e aos nossos aliados.”
3. Bolton também passou por Londres, que o Presidente visita no intervalo entre a cimeira da NATO e a de Helsínquia. Vai visitar a Rainha, um acontecimento que chega e basta para preencher horas e horas de transmissão em directo. Mas não vai certamente renovar a “relação especial” entre os dois países. Talvez se limite a elogiar a coragem britânica de sair dessa coisa chamada União Europeia, que detesta. Houve um tempo em que Theresa May precisaria desse apoio. Hoje, está mais inclinada a dispensá-lo. Como se viu no Conselho Europeu, a primeira-ministra britânica, incapaz de colocar um mínimo de ordem no caos do “Brexit”, jogou a cartada da segurança. Não na velha lógica britânica de impedir qualquer avanço da defesa europeia que pudesse minar a NATO, mas exactamente o contrário. A Europa precisa do Reino Unido para reforçar a sua capacidade militar autónoma, combater o terrorismo, enfrentar a chantagem de Moscovo. A NATO não chega para manter a ligação entre o seu país e o continente. Macron pensa a mesma coisa. Na semana passada, foi anunciada a criação de uma força europeia de intervenção rápida incluindo nove países, entre os quais o Reino Unido. O Presidente francês foi o principal incentivador. Defendeu uma “cooperação estruturada permanente” para a defesa (Pesco), limitada aos países com alguma capacidade militar e, sobretudo, com uma cultura estratégica mais próxima. Merkel quis que a Pesco fosse aberta a quem quisesse e, com boas ou não tão boas intenções, quase toda a gente quis. A nova força será constituída fora dos tratados.
4. O que fazer com os EUA é a grande questão que a Europa tem pela frente. Como tratar um aliado que se comporta como adversário? Esperar pelo que vem a seguir, tentando evitar a radicalização de posições? Tem sido esta a reacção de Berlim, de Paris e de outras capitais ocidentais. Será possível? Há países tão importantes como a Itália que alinham pelo mesmo diapasão do Presidente americano. Bolton foi a Roma encontrar-se com Salvini antes de regressar a Washington. Também vão ter de fazer as suas contas. Não consta que a opinião pública italiana seja maioritariamente contra os EUA e contra a NATO, para já não falar da Europa. Mas há sempre aquela frase apagada da primeira versão do programa da coligação entre Salvini e di Maio (Cinco Estrelas), definindo a política externa italiana: manter a aliança com os EUA e a cooperação com a Rússia para poder isolar a Alemanha. Vale a pena perguntar até quando a Europa manterá a sua política de sanções à Rússia, que acabam de ser renovadas por mais seis meses.
Conclusão: a Europa enfrenta um daqueles momentos em que tudo pode ainda correr mal ou muito mal. Daqui a 10 dias, os líderes europeus voltam a Bruxelas para a cimeira da NATO sem qualquer previsão segura sobre o que se poderá passar. O secretário-geral da organização multiplica-se em encontros com os governos aliados, tentando evitar o pior. Ninguém se atreve a fazer apostas.
A Europa está também a braços com as medidas proteccionistas de Trump, que talvez comece a perceber que a economia americana sofrerá inevitavelmente o ricochete. A Harley Davidson, à qual Bruxelas aplicou uma quota de importação de 20 por cento, anunciou imediatamente que considera a hipótese de deslocar partes da produção para fora dos EUA. Trump ficou furioso. Animou as hostes conta a empresa. Outras porventura se seguirão caso a sua política prossiga. Nada é certo.
5. É neste contexto difícil em que as migrações ganharam uma nova dimensão internacional, colocando desafios complexos e difíceis numa desordem internacional crescente, que António Vitorino vai dirigir a organização das Nações Unidas para as Migrações (IMO). Ganhou a nomeação, tal como António Guterres, em boa medida graças às suas qualidades pessoais e à sua longa experiência. É bom lembrar que foi o primeiro comissário de uma nova dimensão da integração europeia – da Justiça e dos Assuntos Internos – e que desempenhou o cargo sempre nos lugares de topo da lista de classificação dos melhores comissários que o Financial Times publicava na altura. Chegou a ser um potencial candidato a secretário-geral da NATO. Ficou pelo caminho quando foi a “exame” ao Pentágono e Donald Rumsfeld ditou a sua sentença: “Este não”. Pouca gente em Portugal pensa sobre a Europa como ele. Com profundo conhecimento mas também total lucidez. Há, desta vez, um facto curioso. Na generalidade da imprensa europeia e americana o título da notícia sobre a sua escolha não fala de um português, nem de um europeu. A tentação é demasiado grande. “O candidato de Trump perdeu.” Para um português só vem a seguir. Para sublinhar o feito, os jornais lembram que, tirando um curto período de tempo na década de 60 (a organização foi fundada em 1951), foi sempre um americano a dirigi-la. E não foi o currículo do candidato americano, bastante problemático em matéria de islamismo, que lhe facilitou a vida. Os EUA conseguem quase sempre fazer valer as suas escolhas. Havia uma terceira candidata de continuidade (era já vice-presidente), natural da Costa Rica, que passou às finais com Vitorino, deixando para trás o americano. O novo director-geral da MIO precisa de boa sorte. Não vá o Presidente americano querer vingar-se, abandonando a organização e retirando-lhe uma das suas maiores contribuições. Seja como for, não deixa de ser um desafio a todos os títulos estimulante. Que pode, em algumas ocasiões, fazer a diferença. Como no ACNUR, trata-se de defender aqueles que mais precisam de ser defendidos.