Filipe II também mandou usar a palavra Descobrimentos
A espada vence e a palavra convence, dizia-se antigamente. O adágio popular parece mais oportuno do que nunca, no meio da inesperada controvérsia nacional acerca do nome para o museu que Fernando Medina prometeu a Lisboa. Se a polémica provou alguma coisa, é que não faz sentido não discutirmos a palavra “Descobrimentos”.
À boa maneira democrática, uma centena de investigadores contestou em carta a atribuição do nome “Descobertas” a um novo museu em Lisboa, sem discussão prévia. A reacção na imprensa foi imediata e contundente: a palavra não se discute. Não só não se discute como a suspeita levantada é infame. Articulistas, à esquerda e à direita, apontam o dedo — e citarei avulsamente — às “últimas modas dos novos inquisidores” na “onda de histerismo do politicamente correto”, à “doença cultural que atravessa o Ocidente” e ao “novo fanatismo” que deseja o “revisionismo ou invenção do passado” só para “crucificar este velho país”. Feitas as contas, não faltaram sugestões ou apoios à moção. Mas o mais significativo de tudo isto é como parte da elite intelectual pasmou com choque e afronta. O debate sobre o nome não tem nada de novo. O mal-estar que gerou, esse sim, é inédito.
Basta lembrar que em 1573, em Espanha, Filipe II ordenou por decreto real que se usasse sempre e só a palavra “descobrimentos” em vez de “conquista.” “Não queremos”, explica, “que o uso do nome seja incentivo para que se possa usar força e causar injúria aos índios.” Respondendo à campanha de Bartolomeu de las Casas para que estas expedições marítimas fossem chamadas somente de “conquista”, dada a brutalidade e belicismo dos encontros, a intenção do monarca ao impor o termo único, banindo outros, era explícita: camuflar a violência. E perdurou. Em 1832, por exemplo, o Supremo Tribunal dos EUA autorizou a expropriação das terras habitadas por nativos à luz do “descobrimento”, lei que conferia aos europeus o direito exclusivo a propriedade. A ideia do “descobrimento” como acto contemplativo, e não uma conquista com invasão, subjugação e ocupação, foi aliás duramente criticada por Hugo Grotius, o pai do direito internacional, logo em 1608.
Quem hoje pretende o termo indiscutível não se socorreu da extensa bibliografia que, no contexto português, cauciona argumentos a favor do seu uso. Pelo contrário, tem procurado legitimar-se através de uma desautorização moral, ideológica, e profissional dos signatários da carta, apelidando-os de “iluminados da história” e “meninos armados em heróis dos direitos humanos”. E não só não aceitam que este termo único possa ser problemático, como acham inaceitável uma discussão de meio século vir do estrangeiro. Quem não gosta que se vá embora, foi mesmo dito aos jornais, contra “debate importado que menoriza o que os portugueses fizeram” e contra ditas “modas intelectuais alheias”.
Este excepcionalismo lusitano havia sido invocado por Salazar nos anos 50 para descreditar a descolonização, em termos muito semelhantes: “Um vento de revolta agita a África (...) e constitui base do anticolonialismo em moda; e a Europa, por cobardia colectiva, parece envergonhada e alinha com um movimento que, sendo sobretudo racista, ameaça erguer-se contra a civilização do Ocidente. (...) Verdadeiramente este aspecto não diz respeito a Portugal.” Foi, aliás, em 1951 que deflagrou esta actual polémica entre historiadores sobre o nome “descobrimentos”, tornando-se desde então, e mundo fora, objecto de confronto intelectual, debate político, protesto público e assimilação crítica. Contudo, em Portugal, foi o ano em que Salazar decidiu sanear da nomenclatura nacional não essa palavra, mas a expressão “império colonial”.
O historiador brasileiro Thomas Marcondes de Souza acusou prontamente Salazar de ser um “revisor”, por fingir que “Portugal não teve colónias e (que) a sua expansão no mundo não passa(va) de uma grande ilusão!” Mas os anticorpos à outra disputa internacional continuam activos ainda hoje. “Correntes de fora”, diz-se. Dar novos mundos ao mundo nunca pressupôs aceitar trocas ou reclamações, é certo. Talvez por isso, no país que fez do passadismo a religião nacional, condicionado sempre a olhar o presente pelas lentes do passado, anacrónico contra tudo e todos, não exista exercício mais inconcebível nem pecado mais inexpiável do que aquele que agora se atribui a esta carta: olhar o passado pelas lentes do presente.
Já fui um conquistador, era todo um povo
Que não se admita ideias do estrangeiro para falar dos pioneiros da globalização multicultural é ironia que baste. Mas até isso implicaria aceitar que este termo nunca foi problematizado no contexto lusitano. Ainda no século XIX, Jaime Batalha Reis condena a comemoração oficial do 4º Centenário do Descobrimento da Índia (“da Índia!”, exclama, “pelos portugueses, em 1498?!”), deplorando o facto de “a palavra descobrimento estar ao serviço das nações ou das pessoas e da redução da História”. A querela intelectual dos anos 30 acerca da recusa desta designação para os Açores por inadequação histórica foi também sinal de que este nome não passaria imune durante a ditadura que o canonizou. Francis Millet Rogers, o titular da primeira cátedra de estudos portugueses nos EUA, em Harvard, concluiu dos encontros sobre o tema em Lisboa nos anos 50 e 60: “Juntei mais uma palavra detestada ao meu vocabulário: ‘descobrimentos’. (...) Até a distinta historiadora portuguesa Virgínia Rau partilhava do meu repúdio pela palavra descobrimentos.” C. R. Boxer investigou-a nos anos 70 para tentar perceber como se generalizou, se as missões originais se pautavam pela conquista e conversão.
Mas as últimas décadas têm também visto surgir polemistas como Ana Barradas ou Júlio Carrapato com os seus livros negros sobre a gesta ultramarina, a crescente demarcação em relação ao termo por parte da nova geração de historiadores, e as objecções de consagrados especialistas no período. Maria Beatriz Nizza da Silva, por exemplo, declarou há muito que o nome não tem nenhum sentido: “sempre fui contra uma disciplina existente nos cursos de História em Portugal denominada História dos Descobrimentos”. António Borges Coelho escrutinou as designações usadas à época para os vários processos em causa, e explicou então: “Por que não escolher o termo Descobrimentos? Para não tomar a parte pelo todo.”
Que importa, se tudo não passa do súbito capricho de cientistas sociais — termo, esse sim, raramente usado sem aspas — que, por mania e moda, inventam polémica onde não existe, enviesam o que é natural e neutro, e jogam a palavra, e com ela o país inteiro e a própria história, na fogueira? Que interessa ser um dos vocábulos mais politicamente viciados e abusados da língua portuguesa e mais contraditos pela era contemporânea, se nos garantem, em coluna de jornal, que esta “guerra semântica não faz sentido nenhum” pois “não tem nada de histórico”? Embora goze de uso corrente, é incontável o número de filósofos e historiadores que, de todos os continentes, se têm debruçado sobre esta palavra, apelando à revisão dos termos, e é longa a lista de alternativas propostas por activistas, intelectuais e ministros — conquista, contacto, expansão, exploração, invasão, invenção, etc.
Edmundo O’Gorman, que lançou o debate em 1951, abandona a Academia Mexicana de História em 1987 por se opor ao termo convencionado pelo cinquentenário de Colombo: “encontro”. Este foi porém escolhido pela maioria dos países das Caraíbas e América — essa geografia difusa a que Sérgio Sousa Pinto chamou “o Bornéu”. Em 1990, a UNESCO adopta este termo. Espanha inclui-o na denominação. E a palavra “descobertas” é contestada no Parlamento Europeu e no Congresso dos EUA. Em 1991, Miguel Urbano Rodrigues protesta na Assembleia da República contra a “teimosa insistência no uso da palavra ‘Descobrimentos’”. Criticou como, face às iniciativas latino-americanas e espanholas, o “distanciamento de Portugal traduz insensibilidade do poder”, pois “as grandes viagens marítimas portuguesas não devem ser tratadas (...) pelo velho discurso apologético”. A Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses criada em 1988 nada mudou, só concedeu que o nome “comporta um evidente enviesamento eurocêntrico”.
Em 1983, eram já tantas as críticas que o Conselho da Europa reuniu peritos em Lisboa para debater o ensino dos Descobrimentos Portugueses a alunos do secundário na Europa. No rescaldo da ditadura e da descolonização que pôs fim a um ciclo imperial de meio milénio, o local escolhido para o encontro não fora inocente. Concluiu-se assim: “No passado, os Descobrimentos Europeus foram frequentemente ensinados de modo chauvinista ou eurocêntrico. Dado o carácter multicultural de muitas escolas da Europa Ocidental e a necessidade de educar jovens para a vida num mundo interdependente, é essencial que o ensino do tema não inspire sentimentos de superioridade cultural ou racial.” Em particular, destacou-se: “O termo ‘Descobrimentos’ requer análise cuidadosa para não dar ideia de que o resto do mundo seria um vazio antes das Viagens Europeias de Expansão, os professores e autores dos manuais escolares talvez queiram encontrar termos alternativos como a ‘expansão ultramarina europeia’ ou ‘A Idade do Encontro’.”
O estado da nação
Três décadas depois, é revelador que o debate sobre o termo seja denunciado na imprensa portuguesa, em dezenas de artigos de opinião, como uma “ideia peregrina”, “o esplendor do politicamente idiota”, “ditadura do pensamento único”, “parvoíce geral,” “gritaria de extrema esquerda” e “vergonha do nosso tempo”. A carta tem sido atribuída, sem hesitação, à “arrogância”, “disparate”, “propaganda”, “tara” e “sanha” de académicos em escolas de “segundo plano”. Houve comparações a Mao Zedong e Estaline nos jornais e já se fala mesmo numa nova “corrente empenhada em que deixemos de ter orgulho na nossa História”.
A ideia do termo ser altamente contestado e contestável, não devendo ser assumido sem consulta nem recurso, foi a gota de água para muitos que viram nela clara intentona para “pôr na pira a história do nosso pequeno país”. José Miguel Sardica suspirou, “até me admira que os radicalismos da moda não tenham ainda dinamitado o Padrão dos Descobrimentos”! E José Manuel Fernandes declarou-se finalmente “farto” e achou o abaixo-assinado a prova mais queirosiana de que o país é uma “choldra torpe”.
Pela minha parte, subscrevo. Como esquecer a campanha difamatória de Pinheiro Chagas contra Eça, acusando-o de insultar a pátria a soldo do estrangeiro por ter escrito, em 1881, “a nossa dominação no Oriente foi um monumento de ignomínias”? A troca foi feroz, embora Eça jurasse não receber um milhão em ouro para “injuriar semanalmente Portugal, deitar peçonha nas nascentes do Alviela e fazer saltar pela dinamite a estátua de Camões!” Atacado sem trégua, Eça sugere a Chagas que deixe de ser patrioteiro — para quem “fazer a crítica histórica do passado era ofender as glórias da nação” — e vire patriota, dos que “deixando para trás as glórias que ganhámos nas Molucas, ocupam-se da pátria contemporânea.” E remata, com assombrosa actualidade: “Estou vencido. Eu (que, como você afirma, sou um ignorante) não sabia realmente desse respeito que nos tributa Ceilão. Mas agora vejo com evidências que Portugal não necessita nem forte cultura intelectual, nem educação científica, (.) esses esforços são para a França, a Inglaterra, a Alemanha, países não privilegiados; Portugal, esse, tem tudo garantido (.) desde que (como você afirma com a autoridade do seu saber) há nos mares do Oriente uma ilha, onde debaixo de um coqueiro, à beira de um arroio, estão quatro indígenas, de carapinha branca e tanga suja, ocupados de cócoras a respeitar Portugal!”
Nem tribunal, nem altar
É simbólico que a ideia do Museu das Descobertas assim chamado seja de 1932 e visasse uni-lo fisicamente ao Ministério das Colónias. Mas a polémica não é original. Em 1980, por exemplo, renomeou-se Museu das Descobertas e do Ultramar. O MDP/CDE foi contra “Ultramar”. O CDS insistiu nele, e exigiu incluir “Nacional”. Será bom lembrar que nem a megalómana Expo-98 logrou consensos. Alguns criticaram-na por repisar o velho discurso laudatório e idealizado das descobertas, sem escravatura ou violência colonial. Outros porque não glorificou o suficiente. O PSD, insatisfeito com o facto da monumental exposição (e uma ponte e um centro comercial) ser dedicada a Vasco da Gama, exigiu um “voto de protesto” do parlamento por não se ter festejado com pompa o aniversário da viagem à Índia. O CDS foi além. Condenou a Expo-98 por “comemorações envergonhadas e modestas, discretas e minimalistas”, porque nos “orgulhamos de todo o nosso passado e não vemos factos que eventualmente possam parecer criticáveis à luz dos nossos dias”.
Ambos os lados da contenda sublinham hoje a urgência do museu. Que seja feito, pelo que há de notável e abjecto no passado, não para filtrá-lo por orgulhos e vergonhas, ou afagar o ego patrioteiro com glórias de genuflexão. Uma petição com mil assinaturas circula entretanto exigindo que o museu se vote à “dignidade nacional”. É “intolerável”, dizem, que “histerias importadas” levem a uma “casa dos horrores anti-Portugal”, focando “aspectos lamentáveis e frequentemente exagerados por uma falsa historiografia”, pois deve apenas enaltecer o “mundo que o português criou” como “igualitário e integrador”, “benigno, benéfico e estimulante.” Se fosse preciso prova de que este é o tom dominante da cultura pública, o abaixo-assinado dos investigadores revela o furor apocalíptico que a menor crítica ainda suscita. Até Marcello Caetano achou espinhos na gloriosa epopeia. Em 1945, indignou-se com a frequência com que os colonos anunciavam: “Preciso que me dêem pretos.” (“como se os pretos fossem coisa que se desse!”, desabafou). Contudo, em 1965, e como é apanágio de uma certa retórica comemorativa, não teve dificuldades em desassociar a realidade da discriminação racial, trabalho forçado e guerra colonial de um elogio incondicional às Descobertas. Mas não sem o mea culpa que hoje, para muitos, bastaria afixar à porta do novo museu: “Pode às vezes o contacto com outras culturas ter tomado aspecto agressivo; no fundo, esse contacto traduzia sempre um acto de amor.”
Engana-se quem acha que a questão se divide entre esquerda e direita. Não foi o PCP a propor o Festival dos Descobrimentos este ano? A disputa, mais do que ideológica, é geracional. E digo-o tendo nascido em 1987, quando se lançava o ciclo comemorativo mais longo da Europa, doze anos bem lembrados do público português pelas iniciativas em torno dos descobrimentos, com a Expo-98 à cabeça. É pena termos esquecido o acto inaugural. Para celebrar a viagem de Bartolomeu Dias, Portugal decidiu enviar uma nau de Lisboa à Cidade do Cabo, violando o boicote internacional ao apartheid na África do Sul, em isolamento total e sob estado de emergência. A iniciativa surgiu como uma bóia de salvação para o último regime de minoria branca. Com o assentimento de Portugal e para evitar escândalo, o governo do apartheid encontrou meios para injectar 1,3 milhões de rands na efeméride sem nunca tornar público o seu envolvimento, e mandou retirar toda a sinalética de segregação racial do recinto. Foi o último e o mais grotesco festival do regime racista. Cumprindo o roteiro histórico cinco séculos depois, a caravela tinha agora de desembarcar em “praia para brancos”. Perante um boicote inédito de três milhões de pessoas de cor que recusaram participar no evento, a polícia de intervenção vigiou o perímetro enquanto o público assistiu à chegada dos navegadores na praia. Desta vez, os portugueses não foram rechaçados pelos locais nem mataram um deles, segundo reza a crónica. Foram recebidos de braços abertos por actores brancos pintados de preto, com cabeleiras. Assim se celebraram cinco séculos de encontros entre povos e o arranque da comemoração dos descobrimentos pelo governo português. Uma nota final: foi com base no Dias Museum ali inaugurado então que nasceu a actual proposta para um Museu da Interculturalidade em Lisboa. Na altura teve o nome de Museu do Multiculturalismo mas entretanto a palavra adquiriu outras conotações. Sabem como é, o politicamente correto.
*Historiador da Arte (2018-19 Postdoctoral Fellow, Forum Transregionale Studien, Berlim)