Museu do Terramoto ainda é só projecto mas já treme

Porque é que a câmara decidiu ceder um terreno numa zona nobre a uma empresa criada há um ano e meio, cujo projecto levanta dúvidas a vários partidos? É isso que os deputados da assembleia municipal querem perguntar a Catarina Vaz Pinto e Manuel Salgado.

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O projecto visa dar visibilidade à Lisboa pré e pós-terramoto daniel rocha

Uma empresa privada quer instalar na Rua da Junqueira um equipamento turístico e cultural baseado no Terramoto de 1755 e pediu à câmara de Lisboa a cedência de um terreno para o projecto. O município decidiu fazer um contrato, válido por pelo menos 50 anos, em que a empresa recebe um lote com mais de 600 metros quadrados e paga uma renda anual de 24 mil euros. Nos termos do contrato, a Turcultur, assim se chama a firma, fica obrigada “à construção e instalação do Museu do Terramoto” naquele lote, pelos seus próprios meios. Se utilizar o terreno para outra coisa, ele volta à posse do município. Ao fim de 50 anos, o contrato pode ser prolongado por igual período. E no fim, com prolongamento ou sem ele, o terreno volta a ser público.

Aprovado na câmara com os votos contra do PSD, do PCP e do BE, o negócio chegou à assembleia municipal e esbarrou nas dúvidas dos deputados, que decidiram enviá-lo para a comissão de Cultura. É lá que esta quinta-feira vai a vereadora do pelouro, Catarina Vaz Pinto, e para a semana irá o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, que assinou a proposta.

As perguntas dos deputados aos vereadores deverão resumir-se a isto: porque é que a câmara decidiu ceder um terreno numa zona nobre da cidade a uma empresa criada há um ano e meio, cujo projecto faz franzir sobrolhos a vários partidos? Essa foi a questão que pairou na audição a um dos sócios da Turcultur, Ricardo Clemente, há umas semanas.

O empresário explicou que “a Turcultur foi criada exclusivamente para a execução deste projecto”, procurando “tirar partido do boom que todos conhecemos, o do turismo, mas fazendo algo com propósito”. Ricardo Clemente disse que o seu objectivo é “acrescentar valor à cidade, reforçando os seus traços de singularidade” e, por isso, procurou “uma temática que fosse muito própria da cidade”. Assim nasceu a ideia do Quake – Lisbon Earthquake Center, que a Turcultur quer instalar num terreno próximo do Museu dos Coches hoje ocupado por barracões.

Apesar de toda a documentação oficial da câmara se referir ao projecto como Museu do Terramoto, Ricardo Clemente disse que não quer estar preso a essa catalogação. “Não é definitivamente um museu, nem é um centro de interpretação como estamos habituados a ver, é uma mistura de alguns destes ingredientes”, afirmou. E este foi um dos primeiros pontos a gerar apreensão entre os deputados.

“Disse que não era um museu, também disse que não era um centro interpretativo. Então o que é que é? É um centro de exposições? É um parque de diversões?”, questionou Aline Beuvink, do PPM, que quis saber também “quais são as equipas científicas” responsáveis pelos conteúdos do futuro equipamento. Essa questão acabou por ser central nas intervenções de todos os partidos.

“Queremos ter um director de conteúdos, que fará a coordenação ou com pessoas individuais ou com institutos e universidades para as curadorias na componente científica e histórica”, respondeu Ricardo Clemente. No entanto, argumentou, “não vamos estar a contratar sem saber se o projecto tem pernas para andar ou não”.

O empresário referiu a intenção de abordar o Terramoto de 1755 de uma perspectiva histórica, mas também científica, levando os visitantes, por um lado, “a viajar no tempo, até ao século XVIII, para conhecer a Lisboa antiga” e, por outro, explicando-lhes porque é que houve um sismo tão grande na cidade e porque é que ele pode repetir-se – tudo isto com recurso a simuladores de realidade virtual. Ainda assim, Ricardo Clemente garantiu: “Nós não estamos a fazer um Madame Tussaud’s, uma Disney, não estamos a fazer uma Universal Pictures. Estamos a fazer um projecto que é lisboeta.”

O sócio da Turcultur afirmou que o projecto “é inteiramente privado” e será concretizado “sem dinheiro da câmara municipal ou outro organismo público”. Ricardo Clemente disse mesmo que “o risco está todo do lado dos privados”, pois vão investir capitais próprios e contrair empréstimos bancários para assegurar a viabilidade do Quake. “Não podemos falhar nada do que está previsto no contrato, sob pena de perdermos todos os activos e investimentos que ali estão feitos, que revertem a favor da câmara municipal.”

Mas este não é o entendimento de vários partidos. “O [investimento] público aqui entra e de que maneira se isto for para a frente. A mais-valia do projecto é aquele terreno”, considerou João Carlos Pereira, do PCP. Já Ana Mateus, do PSD, mostrou dúvidas sobre “a sustentabilidade da empresa” e o que isso pode significar para a autarquia. Também Simonetta Luz Afonso, do PS, que entre outras coisas foi comissária da Expo-98, alertou para os riscos económicos de um projecto deste tipo.

Em sentido contrário, a deputada independente Ana Gaspar desdramatizou a situação. “Isto para mim é, apenas, o mercado a funcionar. Seguiremos isto atentamente, mas não vejo mal nenhum que haja um grupo de empreendedores que quer arriscar. What’s the problem? Francamente não sei. Isto é o mercado”, disse.

No fim da audição, Simonetta Luz Afonso deu um conselho a Ricardo Clemente: “Eu se fosse a si ia pensando noutros sítios.”

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