Foi uma noite para a eternidade com Nick Cave no Nos Primavera Sound
Apaziguador ou feroz, desafiante ou afectuoso, Nick Cave e os seus Bad Seeds deram na noite chuvosa do último dia do Nos Primavera Sound um daqueles concertos que nunca mais se esquecerão.
Foi uma daquelas noites. Daqui a muitas luas ainda será recordada como aquela vez em que ouvimos Nick Cave à chuva no parque da cidade do Porto, no contexto do festival Nos Primavera Sound. É fácil hiperbolizar nestes momentos. Escreve-se a quente. Falamos daquele que é talvez o melhor performer vivo do rock. As condições atmosféricas acabam por dar um cunho grandioso a quem se dispôs a elas para presenciar um concerto. E existe nesta altura da sua carreira qualquer coisa de novo a rodeá-la. Mas ainda assim, há poucas dúvidas de que foi um momento de transcendência para a maioria.
O que mudou na nossa relação com ele? O tempo, por um lado, que permite ver aquilo que ele sempre foi, mas que não víamos da mesma forma: encarnação das dores e da poesia de viver expostas em palco. E por outro, houve também o excelente álbum Skeleton Tree (2016) e a morte de um filho, que parecem tê-lo transformado num actor ainda mais disposto a se envolver, procurando constantemente o contacto do público. É como se aquilo que passou a vida a cantar - a morte, a transcendência, os sonhos, os vícios da existência ou a paixão - fizesse ainda mais sentido hoje. Dito assim, para quem não esteve lá, pode parecer pesado. Mas não foi nada disso.
Estamos todos ávidos de nos reconciliarmos com o mundo de alguma forma e foi isso que se sentiu. Muitos dirão, que diabo, é apenas um espectáculo de rock & roll e Nick Cave, e os que estiveram lá, responderiam, como fizeram no final com a canção Push the sky away, com ele e muito público em palco, “it’s just rock & roll, oh! but it gets you right down to your soul”.
Nem é tanto o rock. É o que se faz dele. E neste momento Nick Cave transforma-o em coisa digna, altiva mas também frágil, introspectiva mas também capaz da catarse colectiva, algo profundamente emocionante. Para ele, e para os sete fantásticos músicos que o acompanham, com destaque para o barbudo e frenético multi-instrumentista Warren Ellis, foi mais uma noite de música. Para as cerca de 30 mil pessoas que envergaram impermeáveis e saíram de casa foi um ritual que lembrarão durante muito tempo. É verdade que a maior parte estaria disponível para ser conquistada em antecipação. Mas mesmo aqueles que já o viram inúmeras vezes, como é o nosso caso, ou o presenciaram naquele mesmo palco em 2013, perceberam que houve algo que mudou, tornando a noite de sábado algo especial.
Olhos nos olhos
O alinhamento, agora que a digressão das salas acabou e se detém mais nos festivais, percorre toda a sua carreira, não se concentrando tanto em Skeleton Tree. A extensão do palco dá-lhe a possibilidade de ele caminhar por entre o público, tocando-o constantemente, dialogando com ele através das canções, olhos nos olhos, sendo muitas vezes afectuoso mas também interpelador e feroz. Ele, corpo esguio, é por vezes espasmódico ou imperial, enviando pontapés para a atmosfera, circulando com vigor de um lado para o outro enquanto lá atrás, os músicos, todos de negro, são de uma precisão milimétrica, com o cenário a adoptar por vezes cores fluorescentes e outras projectando imagens de sentido preciso.
Em Girl in amber, vemos imagens de Brighton, a cidade onde vive e onde o filho morreu, enquanto canta de forma dilacerada “if you want to bleed, just bleed”, e em Tupelo somos inundados por tempestades e mares revoltos, envolvidos pelo som contundente e pela chuva, como se ficção e realidade fossem uma e a mesma coisa. Os dois primeiros temas (Jesus alone e Magneto), referentes ao último álbum, instituíram o ambiente. Ao terceiro, Do you love me?, a rendição absoluta, com ele envolvido na assistência, até aos acordes de From her to eternity, com cantor e músicos possuídos num frenesim de electricidade. Às vezes Nick Cave golpeia o piano. Outras parece acariciá-lo apenas, como em Into my arms, convidando a multidão a cantar com ele, dizendo-se feliz pela chuva, argumentando que tornava o cenário mais belo. Em Loverman, ajoelha-se, rasteja, põe as entranhas de fora aliviando a tensão, em nome do amor. Jubilee street começa pianíssimo, no parque da cidade só a chuva e o vento a passar e a respiração de Nick Cave, para tudo desembocar em catarse, com toda a gente aos pulos e em delírio.
Em Red right hand o público canta o refrão e em Weeping song ele atreve-se a ir mais longe, prostrando-se literalmente no meio do público numa plataforma, para servir de maestro, pedindo-lhes palmas a compasso repetidas vezes, mas fá-lo com a sobriedade de quem não precisa de criar empatia de maneira forçada. À distância, mantém o diálogo com os músicos. Num certo momento, pede uma linha de baixo. E ela surge, pulsante e redonda. Quer que oiçamos a respiração uns dos outros. Pede silêncio. E ali ficamos envolvidos naquele jogo em que quer que nos oiçamos, ouvindo-o a ele. E depois mais sublimação, com Stagger Lee, para o momento final com Push the sky away, convidando a assistência a subir ao palco. Ele mantém a dignidade de sempre. Ao seu lado risos, abraços e lágrimas.
No final muitos diziam que tinha sido o melhor concerto a que já tinham assistido na vida. Cada um criará a sua própria história. Agora o que parece consensual é que aquilo que se viveu ali só ali poderia ter acontecido. Chama-se música ao vivo. Em palco viu-se alguém que sabe comunicar todos os recantos negros da vida, ao mesmo tempo que os aceita e, nesse movimento, toca no principio da humildade de estar vivo. Que tudo isso esteja inscrito num momento de música – tantas vezes a arte do indizível – eis o que faz de cada concerto do Nick Cave actual um momento absolutamente portentoso.
Para além de Nick Cave
Face a isto, não foi fácil experienciar o resto do que aconteceu no recinto do festival, e não foi por falta de motivos de interesse, com concertos dos The War On Drugs, Mogwai ou Arca. Do que vimos sobressaiu a sensualidade felina da americana Kelela, que não se cansou de agradecer a quem se dispôs a ouvi-la, apesar da chuva intensa que se fazia sentir. E ela fez por merecer toda a atenção, com uma prestação que teve tanto de fragilidade como de segurança, pelos meandros do R&B menos óbvios, naquela que terá sido a presença mais sensual de todo o festival. No final, a americana informou que a amiga Kelsey Lu iria tocar num outro palco próximo, e que deveríamos ir vê-la. Já tínhamos essa intenção e não nos arrependemos.
Sozinha, com a sua guitarra, ou com programações, em vez do habitual violoncelo que também toca, Kelsey Lu expôs a sua música envolvente, tranquila e sonhadora com grande nível, mostrando ter uma magnífica voz, conseguindo arrancar da assistência muitos aplausos, principalmente quando interpretou canções como Dreams ou o mais recente single, Shades of blue.
Um dos músicos que teve a dura tarefa de actuar depois de Nick Cave, foi o alemão Nils Frahm e que bem que esteve. Ao piano, ou envolto por sintetizadores, conseguiu sempre manter o público interessado, atribuindo aos seus temas instrumentais uma qualidade mais rítmica, por vezes quase próximo do tecno, mostrando pontos de contacto com a música de cariz clássico. No final, movendo-se entre piano e sintetizadores, propôs o tema Says, naquele que ficará guardado como um dos momentos mais sublimes de todo o festival, numa espiral sónica em crescendo que levou a assistência à levitação.
No final, fica a ideia que a 7.ª edição do festival, funcionou em pleno. Segundo a organização passaram diariamente pelo recinto cerca de 30 mil espectadores de dezenas de países. A chuva foi uma ameaça nos dois primeiros dias e ao terceiro apareceu mesmo em força. O palco Seat, no asfalto, ganhou uma nova centralidade, o que é bom porque permite mais fragmentação de público, mas é pior se atentarmos que a identidade do festival foi construída a partir do envolvimento do parque relvado. E no campo dos concertos não faltaram boas propostas. Father John Misty, Lorde, Tyler The Creator, Ezra Furman, A$AP Rocky, Fever Ray, Superorganism, Kelela, Nils Frahm ou War On Drugs foram alguns dos que se destacaram. E depois, noutro patamar, esse acontecimento chamado Nick Cave & The Bad Seeds.