O rosto indecifrável do magnífico Akya, a empatia do porta-voz humano Cafarnaum: adivinhem quem vai ganhar
Na recta final da 71.ª edição de Cannes, dois protagonistas em duelo: um recusando, outro oferecendo-se à empatia. Entre Sergey Dvortsevoy e Nadine Labaki, talvez esta última leve daqui a Palma de Ouro.
Akya, como Rosetta, não quer ser pobre. Tal como em 1999, no final da competição do Festival de Cannes apareceu, sem alaridos a anunciarem, o melhor filme do concurso. Naquela edição foi o filme dos irmãos belgas Dardenne que tinha o nome da sua personagem, na edição 71 fomos invadidos por Ayka, a personagem do filme homónimo de Sergey Dvortsevoy. Rosetta recebeu a Palma de Ouro, por unanimidade, trucidando o favoritismo de Tudo sobre a Minha Mãe, de Almodóvar. Sergey Dvortsevoy, cineasta do Cazaquistão, chega com a sua segunda longa de ficção à competição de Cannes, dez anos depois do prémio Un Certain Regard a Tulpan. Os tempos são outros, a audácia do júri presidido em 1999 por David Cronenberg, naquele que fica como um dos mais belos palmarés do festival, não deve ser possível para o júri de Cate Blanchett, sobre o qual devem pesar agendas várias; mas que bom seria que se repetissem a estupefacção, o choque e os protestos – e os aplausos – de 1999.
Akya, avisa-se já, não faz da empatia o seu jogo. Aliás, estando sempre com Akya, experimentando com ela o mundo, raramente olhamos de frente para o seu rosto, e por isso não conseguimos decifrá-lo. Sabemos que acabou de dar à luz e que fugiu do hospital, abandonando o bebé, porque não tem trabalho e tem dívidas. Mas sentimos a neve que enterra Moscovo. Experimentamos a hemorragia de Akya, as dores no ventre, o cansaço, e as dores no peito, pela abundância de leite. Todo o mundo é percepcionado pela experiência física de Akya, o mundo é reduzido às dores, à fome, à sobrevivência. Como espectadores, a Akya, o filme, não acedemos só com as convicções morais, ou elas não dão conta das enormidades. Plano tremendo, o momento em que a personagem decide regressar ao hospital para resgatar o bebé: a imagem de cachorrinhos esfomeados que mamam na mãe. O corpo de Akya começa também a falar; regressa ao hospital, vai vender o seu bebé para pagar a dívida.
Nos corredores do festival, o filme já entrou em duelo com Cafarnaum, da libanesa Nadine Labaki, que, seguindo também uma personagem, um miúdo de 12 anos, fá-lo com uma estratégia de empatia. O rosto de Zain é o porto seguro para o espectador. O filme começa com Zain a interrogar os pais em tribunal: por que é que o trouxeram ao mundo se não estavam em condições de cuidar dele? Depois segue-se o flashback. Tudo se passa numa zona não nomeada do Médio Oriente, embora a rodagem tenha decorrido no Libano.
Labaki, vamos ser justos, evita as coisas horríveis que um empreendimento destes apresenta como ratoeira. A menor delas seria a manipulação melodramática. E é hábil, sem com a habilidade mandar ao ar a delicadeza, com intérpretes e personagens que nascem da fusão entre o documental e o ficcionado. Por exemplo, depois daquele statement da criança em tribunal contra os pais por estes lhe terem dado vida, o filme poderia não resistir. Mas resiste. Não se safa é de explicar e de justificar e de ser porta-voz – porta-voz dos que não têm acesso aos direitos fundamentais. O que Akya não faz, porque para Dvortsevoy um filme deve ser outra coisa. Mas cremos que com Cafarnaum a 71.ª edição de Cannes terá a sua Palma de Ouro.
Quase no fim, ficamos com Vanessa Paradis como produtora de porno gay, abandonada pela amada, que é a montadora dos seus filmes, ameaçados pelo godemiché fatal de um assassino homofóbico. Ficamos com uma homenagem ao underground dos anos 70, uma espécie de Brian de Palma low-fi, num filme, Un Couteau dans le Coeur, de Yann Gonzalez, todo ele vidrado pela performance e por isso algo paralisado – como se não passasse de uma série de reencenações. O gesto dos programadores, ao permitirem esta plataforma de visibilidade ao universo artesanal de Gonzalez, já é quase tudo.
E entretanto, Terry Gilliam
O fim mesmo, no concurso, só acontecerá esta noite com Poirier Sauvage, de Nuri Bilge Ceylan (currículo de Cannes: Grande Prémio em 2003 e em 2011 por Uzak e Era Uma Vez na Anatólia, respectivamente; Prémio de Realização em 2008 por Os Três Macacos; Palma de Ouro em 2014 por Sono de Inverno). Mas entretanto, foi já mostrado à imprensa o filme que encerrará, este sábado, a 71.ª edição: O Homem que Matou Dom Quixote, de Terry Gilliam.
Começa com a indicação, que os tribunais franceses impuseram, de que a projecção no festival não prejudicaria os direitos reivindicados judicialmente pela Alfama Films de Paulo Branco. E prossegue, temperando a lei com humor, exclamando, também em legenda, que, 25 anos depois de todas as catástrofes naturais e financeiras, eis finalmente… como se o mundo aguardasse por Star Wars.
Parecia bom augúrio, isto de a auto-ironia colocar a coisa numa fasquia menos do que épica. Mas a fasquia estatela-se no chão. Desde logo porque o humor é sempre o trambolhão de serviço para as personagens, um realizador de publicidade (Adam Driver) invadido pelas figuras – entre elas Don Quixote (Jonathan Pryce) – do mundo que desencadeou num “filme de estudante” do passado, e que se vê arrastado para a sua experiência do mundo como Sancho Pança.
Não se nega que há melancolia aqui. Não porque seja um sentimento procurado, trabalhado ou aprofundado, mas porque é isso que fica, e não é preciso ter estado à espera 25 anos, do bricabraque simplório (a sequência do baile de máscaras rodada no Convento de Cristo, em Tomar) e de um cast inexpressivo, monótono. O filme terá também estreia este sábado em 300 salas de França, depois de os tribunais de Paris terem indeferido o pedido do produtor Paulo Branco que reclamava a suspensão da distribuição do filme.