Um filme quixotesco: o Festival de Cannes começa hoje, mas não se sabe como acabará
Só quarta-feira se sabe se o filme de encerramento será ou não O Homem que Matou Dom Quixote, numa edição com Spike Lee, poucas estrelas e o produtor português Paulo Branco e o realizador britânico Terry Gilliam em duelo.
O 71.º Festival de Cannes começa esta terça-feira, mas não é certo como acabará. Um filme “maldito” foi escolhido para encerrar a mais importante mostra de cinema do mundo, mas um produtor português atravessa-se no caminho de um ex-Monty Python e da instituição Cannes numa polémica quixotesca. O filme de Terry Gilliam O Homem que Matou Dom Quixote está finalmente feito, muitos anos e um punhado de tentativas espectacularmente falhadas depois, mas não se sabe quando é que verá a luz do dia. Ou melhor, o interior de uma sala de cinema. Um tribunal francês avalia agora o seu futuro imediato e decide amanhã se o filme encerrará ou não um festival sob o signo de alguma turbulência.
O produtor português Paulo Branco surgiu em 2016 como o cavaleiro andante do realizador britânico. A sua Alfama Films iria finalmente produzir o filme que Gilliam tentava fazer desde o final da década de 1990. Mas os problemas, que já tinham começado nos bastidores do próprio anúncio, no Festival de Cannes de há dois anos, fizeram com que no Outono desse ano o filme estivesse já nas mãos de outros produtores. O Homem Que Matou D. Quixote foi filmado entre Espanha e Portugal, sem Paulo Branco mas não sem a sua dose de sobressaltos — como as acusações de que danificara o Convento de Cristo, em Tomar, nas filmagens de Abril de 2017, estragos esses que a Direcção-Geral do Património considerou depois não serem “significativos” — e sempre com uma batalha legal em plano de fundo.
Quando, em meados de Abril, foi escolhido como filme de encerramento do Festival de Cannes, começava um novo capítulo: “Só o toque de magia do Festival de Cannes poderia quebrar o feitiço”, disseram na altura, honrados, Pandora Cunha Telles e Pablo Iraola, da Ukbar Filmes, uma das co-produtoras a par da espanhola Tornasol, da belga Entre Chien et Loup ou da francesa Kinology. Mas sem a resolução do conflito legal entre Gilliam e a Alfama Films, “o filme não passa”, avisava logo a seguir Paulo Branco ao PÚBLICO. Agora, se Adam Driver e Jonathan Pryce são protagonistas do filme, Paulo Branco e Terry Gilliam são protagonistas de um duelo em pleno Festival de Cannes.
No fim do mês, Branco interpôs uma acção de interdição (o equivalente a uma providência cautelar) para impedir que O Homem Que Matou D. Quixote passe na Croisette. No mesmo dia, o presidente do festival Pierre Lescure e o seu delegado geral, Thierry Frémaux, respondiam-lhe num tom inusitadamente virulento: “Estamos do lado dos realizadores e, em particular, do lado de Terry Gilliam”; “toda a nossa indústria sabe que 'criar questões' sempre foi a estratégia preferida do sr. Branco” que, escreveram, “mostrou o seu verdadeiro rosto de uma vez por todas”. O pedido começou a ser analisado segunda-feira em Paris e só há decisão na quarta-feira.
Este é uma espécie de nó burocrático de ano e meio de duração no meio de 20 anos de avanços e recuos em torno do filme – o episódio mais colorido remonta a 1998 e à primeira tentativa de fazer o filme com Jean Rochefort e Johnny Depp. A rodagem foi cancelada depois de ser sobrevoada por aviões militares e de os cenários terem sido destruídos por chuvas torrenciais, como ilustra o documentário Lost in La Mancha (2002), terminando com uma lesão de Rochefort. Desde 2008 e até 2015 o projecto enfrentou problemas de financiamento e até a morte de um dos seus actores, John Hurt. Tornou-se um mito, o filme impossível de filmar.
Preliminares e ódio
O Homem Que Matou D. Quixote é o filme de que Terry Gilliam, realizador de Brazil ou 12 Macacos, nunca desistiu. “Estarei morto antes do filme”, disse sobre a necessidade de o fazer. Agora, aos 77 anos, luta por ele, mas em tribunal. Os contratos de direitos de autor-realizador e de guião estão em tribunal desde que, no final de Agosto de 2016, Terry Gilliam informou a Alfama Films de que considerava haver uma “quebra material” do contrato por falta de pagamento e de um plano de financiamento do filme, bem como que “tinham tentado impor condições de forma impróprias” ao realizador, como consta dos processos que o PÚBLICO consultou. A Alfama e Paulo Branco contestam formalmente que esse contrato esteja rescindido, uma tensão tornada pública quando, em Outubro de 2016, Gilliam acusou o produtor português de não ter dinheiro para fazer o filme como prometera na BBC Radio e no Facebook.
Desde então, as partes dirimem argumentos e contestam interpretações das decisões dos tribunais que, em Maio e Dezembro de 2017, ainda não deram uma vitória clara a Terry Gilliam e seus representantes. Em Londres, o tribunal deliberou sobre uma extensão de um prazo contratual a favor de Paulo Branco, permitindo-lhe concluir que os direitos sobre o argumento estão ainda com a Alfama Films — mas os actuais produtores dizem que estes já lhes foram cedidos, também legalmente, e que na decisão londrina “não existe qualquer reconhecimento dos direitos de Branco”, escreveram num comunicado de 30 de Abril. Já em Paris aguarda-se para 15 de Junho o que dirá o tribunal superior sobre o contrato de direitos de autor-realizador que Gilliam e o seu advogado consideram actualmente “rescindido” e que uma primeira decisão da justiça francesa, há um ano, não confirmou. “Os direitos do realizador também são nossos”, dizia Paulo Branco há dias ao PÚBLICO.
Questões de orçamento e controlo criativo misturam-se nas declarações públicas, nos registos legais a que o PÚBLICO teve acesso e nos emails entre o realizador e o produtor que o diário francês Le Monde revelou há um mês. Branco queria filmar só em 2017, em digital e com o ex-Python Michael Palin mais barato; Gilliam queria filmar no prazo previsto, em 2016, e em 35mm, queria Palin por um preço “não insultuoso” e sim pelo inicialmente combinado. Palin sairia do projecto e as relações eram difíceis, Paulo Branco “tinha decidido produzir o filme com metade do orçamento acordado”, escreveu Philippe Aigle, da distribuidora do filme, a Océan Films, no mesmo comunicado divulgado após a acção contra Cannes. O Le Monde cita um email de Branco: “Para que este projecto se torne uma realidade, deve ter um verdadeiro produtor e um só capitão.” Ele próprio, esclarece o jornal.
As filmagens sob o leme de Branco nunca começaram mas a troca de palavras entre as duas figuras do cinema independente continuou acesa. “Depressa percebi que ele tinha um ódio profundo para com os produtores”, queixa-se Paulo Branco a certa altura à imprensa. Em tribunal, Gilliam atirou: “Paulo Branco é muito bom nos preliminares. Mas quando se trata de concluir, não está lá ninguém.” O filme fez-se, mas outro decorreu sempre em paralelo nos tribunais.
Terry Gilliam e seus produtores defendem que Branco não pagou pela aquisição dos direitos sobre o guião nem de realização, nem reuniu o orçamento combinado – 16 milhões de euros. A Alfama reclama, na argumentação legal consultada pelo PÚBLICO, ter feito repérages, pedido autorizações e trabalhado no design de produção e casting. “[Depois de ter abandonado o projecto, o realizador] seguiu todas as minhas recomendações”, disse mesmo há um mês Paulo Branco ao Le Monde. “Investi mais de 700 mil euros para que este filme exista, quero o meu lugar de produtor reconhecido.”
Gilliam frisa que Paulo Branco “não tem nada a ver com o filme [na sua versão final]. As exigências dele são risíveis, absurdas. Ele está a tentar fazer o máximo de dinheiro possível com um filme que não produziu”, disse há um mês à agência AFP, com Aigle a dizer que Paulo Branco exigiu, em Março, 3,5 milhões para chegarem a acordo num “ultimato não negociável”, o que Paulo Branco nega ao Le Monde. Ao PÚBLICO, em Abril e sem falar de valores, o produtor disse que a Alfama há muito desejava um acordo num caso que “pode ser um desastre industrial ao mesmo nível que o primeiro”, diluviano.
Segundo o Le Monde, o Centre National du Cinéma et de l'Image Animée (agência do Ministério da Cultura francês) aguarda a decisão sobre Cannes para emitir ou não o visto de exploração, que é obrigatório para a estreia comercial de um filme em França, prevista para o mesmo 19 de Maio – que também pode estar condicionada pelo recurso cujo desenlace só será conhecido em Junho.
Guerra, crise e mulheres na edição 2018
A polémica entre Gilliam e Branco encontrou um palco mediático para deflagrar de forma mais ardente, mas Cannes 2018, que abre esta terça-feira com Todos Lo Saben, rodado em Espanha com Penélope Cruz e Javier Bardem pelo iraniano Asghar Farhadi, já tinha a sua quota parte de perturbações, multiplicando-se os comentários a sinalizar “crise”.
Foi o caso Netflix, que fez a plataforma de streaming retirar títulos da Croisette depois da decisão dos programadores de fazerem depender a presença em concurso da distribuição em sala. É o facto de na era #MeToo e Time’s Up o festival ser suspeito de não fazer o suficiente para se livrar de velhos paradigmas. Apesar de um júri presidido por Cate Blanchett, e com mais mulheres do que homens, só há três realizadoras nos 21 títulos da competição — a libanesa Nadine Labaki (Capharnaum), a francesa Eva Husson (Girls of the Sun) e a italiana Alice Rohrwacher (Lazzaro Felice), mas Frémaux mantém que “os filmes são seleccionados pelas suas qualidades intrínsecas” e que “nunca haverá selecção com discriminação positiva”.
E para mais aceitou o regresso de Lars von Trier (The House That Jack Built, fora de concurso), que numa conferência de imprensa em Cannes em que a provocação lhe saiu mal disse que compreendia Hitler, e cuja produtora Zentropa foi acusada de assédio sexual na pessoa do seu sócio, Peter Allbaek Jensen.
Há ainda sinais, ou é assim que a 71.ª edição está a ser lida, de que Cannes é pouco apetecível para filmes que querem trabalhar um perfil de “evento” (porque as críticas arrasadoras na Croisette podem estragar a festa) ou preparem o caminho dos Óscares (o Festival de Veneza conquistou esse espaço). Os novos filmes de Xavier Dolan (The Death and Life of John F. Donovan), Luca Guadagnino (remake de Suspiria), Bradley Cooper (remake de A Star Is Born) ou o projecto americano de Jacques Audiard, The Sister’s Brothers, com Joaquín Phoenix e Jake Gyllenhaal, preferiram outros festivais. Resultado: há menos estrelas e só dois americanos em concurso, Blackkklansman, de Spike Lee, e Under the Silver Lake, de David Robert Mitchell (Solo: Uma História de Star Wars, é exibido em sessão especial).
Mas o caso Spike Lee, com a história real de Ron Stallworth, detective negro da Polícia do Colorado que penetrou no Ku Klux Klan no final dos anos 70, é um regresso-acontecimento. Cannes renova com alguém sempre “em guerra”, como disse Thierry Frémaux. Desde logo em guerra com os palmarés, porque duas vezes gritou que tinha sido “roubado”. Em 1989, quando Do the Right Thing se perfilava para a Palma de Ouro e o júri de Wim Wenders guinou para Sexo Mentiras e Vídeo; e em 1991, quando Barton Fink levou tudo, Palma de Ouro, prémio de realização para os Coen e de interpretação para John Turturro, ficando para o “favorito” Jungle Fever um prémio especial, de interpretação secundária, a Samuel L. Jackson.
De esta terça-feira a 19 de Maio estão ainda em competição o iraniano Jafar Panahi (Three Faces, filmado por um cineasta em prisão domiciliária e impedido de sair do seu país - o festival dirigiu-se já às autoridades iranianas a pedir que Panahi seja autorizado a deslocar-se para apresentar o filme), Godard (Le Livre d’Image), Stéphane Brizé (En Guerre, de novo com Vincent Lindon, prémio de interpretação por A Lei do Mercado em 2015), Jia Zhang-ke (Ash Is Purest White), Cold War (Pawel Pawlikowski, a preto e branco como Ida, Óscar do Melhor Filme Estrangeiro de 2015) ou Dogman (Matteo Garrone).