Eutanásia, golpe de misericórdia?
Tenho esperança de que a efectiva criminalização da “eutanásia sem pedido” possa vir a ser o ganho resultante da aprovação da “eutanásia a pedido”.
Há uns tempos, surpreendemo-nos com a desfaçatez da Sra. Bastonária da Ordem dos Enfermeiros quando disse que a eutanásia é praticada todos os dias nos nossos hospitais.
Que eu saiba, nada aconteceu depois dessa grave afirmação, mas interessa agora voltar ao assunto. Na verdade, essa eutanásia é outro nome para o clássico “golpe de misericórdia” aplicado para poupar uma pessoa de sofrimentos maiores. Se ela está ou não consciente do facto e se concorda ou não, pode ser secundário ou irrelevante.
Como médico de cuidados paliativos num hospital público, estou convicto de que os pedidos de eutanásia são pedidos de ajuda para ter uma vida melhor até morrer. E é isso que lhes queremos proporcionar, sem antecipar nem atrasar a hora da “morte natural”. Para mim, é essa dignidade que é digno das nossas profissões conceder às pessoas que em nós confiam.
Sendo, portanto, visceralmente contra a eutanásia a pedido, vejo-me na posição ambivalente de admitir a sua legitimidade se for acompanhada pela penalização da eutanásia clandestina que — concordo — frequentemente se realiza no nosso país.
Se há dúvidas sobre o que acabo de dizer, basta inspeccionar os processos clínicos das pessoas falecidas nos nossos hospitais. Verificar em quantos desses episódios se registou a concordância do próprio ou dos seus familiares para a realização da “sedação paliativa”. E se as doses dos medicamentos utilizados foram ou não muito superiores às recomendadas para essa sedação.
Por razões semelhantes, sou contra o aborto, mas prefiro-o ao aborto clandestino, “de vão de escada”. Ou seja, tenho esperança de que a efectiva criminalização da “eutanásia sem pedido” possa vir a ser o ganho resultante da aprovação da “eutanásia a pedido”. Seria uma forma de compensar a desmoralização que esta lei nos traz.