Rushdie e o apocalipse americano

Não havia ainda um ano de presidência e Trump já era personagem no último romance de Salman Rushdie. Ele chama-lhe Joker.

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A Casa Golden é um texto programático produzido por um escritor zangado com o país onde vive desde 1999 Dylan Martinez/REUTERS

Ler um romance sobre o presente no presente desse romance e julgá-lo friamente é um teste com possibilidade de fracasso. Falta a distância, filtro recomendado a uma análise mais reflectida. É um argumento válido para quem lê, talvez mais ainda para quem escreve. A Casa Golden, 13º romance de Salman Rushdie (Bombaim, 1947), é um exercício arriscado, o de montar um espelho e tentar encontrar no reflexo um pensamento sobre a tragédia do tempo actual. “A nossa época é essencialmente trágica e, por isso, recusamo-nos a assumi-la tragicamente”, lê-se numa das frases escolhidas para epígrafe. Pertence a D. H. Lawrence, em O Amante de Lady Chatterley. Rushdie escolheu-a como simbólica face ao presente de que trata o seu livro, talvez a primeira e mais ambiciosa parábola sobre a América actual, tão actual que já contempla a eleição de Donald Trump, facto ainda mais notável se considerarmos que o original foi publicado no Outono de 2017, menos de um ano após 8 de Novembro de 2016, o dia em que essa América foi para a cama oficialmente mais dividida que nunca.

A Casa Golden parece obedecer a uma urgência, a do recém cidadão norte-americano em que Rushdie se tornou, para entender o real em que vive. O romance anterior já resultara da mesma urgência. Mas Dois Anos Oito Meses e Vinte e Oito Noites (D. Quixote, 2015) era uma paródia fantasiosa às Mil e Uma Noites, também contaminado pelo realismo mágico, com recurso à tradição de contar histórias com o propósito de adiar a morte. Neste A Casa Golden, Rushdie deixa muita dessa influência e regressa ao realismo que já marcara algumas das obras anteriores, mas apropria-se da mitologia clássica para sustentar um discurso intemporal. É nisso que joga a carta de tentar descolar o romance de um presente tão presente que o poderia comprometer. É Rushdie a dizer: esta é a circunstância actual da América, um império em queda como outros já caíram.

A par da tragédia da América há a tragédia de uma família. A acção decorre nos oito anos da administração Obama. Começa em 1988, no dia da eleição do 44º presidente dos EUA, e termina com a eleição de Donald Trump, identificado como Joker, um “fala-barato de cabelo verde” cuja oponente era, nas palavras do narrador, uma candidata “impressionante, extremamente qualificada mas impopular”. Os dois mandatos de Obama correspondem ao período de uma escalada trágica para a América conforme a interpretação de Rushdie e que encontra paralelo na queda da família Golden, apelido inventado por um pai velho, “profundamente apaixonado pela ideia de si próprio como alguém com poder”, admirador de governantes absolutos, que escolhe para nome próprio nesta reencarnação nada mais do que Nero, exactamente como o imperador do incêndio apocalíptico. “Os americanos decidiam constantemente como se queriam chamar e quem queriam ser, despojando-se das suas origens de Gatz para se tornarem Gatsby possuidores de camisas e perseguir sonhos chamados Daisy ou talvez simplesmente América”.

No momento da eleição de Obama, Nero Golden chegou a Nova Iorque com os três filhos adultos, “órfãos de mãe”, cada um disfuncional à sua maneira, todos a procurar exílio de um passado vivido num país cujo nome não se podia pronunciar ( logo no início se percebe ser a Índia), e apostados a reinventar uma identidade na cidade que permite o anonimato e que dá a quem lá vive a possibilidade da diferença. Esse silêncio sobre o que foram alimenta a imaginação de quem os rodeia e de um vizinho em particular.

Chamaram-lhes Golden, metáfora versátil, que Rushdie situa onde mais lhe convém, e mais uma vez a partir de outra frase em epígrafe. “Dai-me uma moeda de cobre e contar-vos-ei uma história de ouro”, pregão da Roma antiga citado por Plínio.

Não há dúvidas quanto à proposta: transformar o presente numa narrativa clássica. Primeiro, o leitor vai sabendo da família através de um narrador plural, que faz da sua voz a voz da vizinhança privilegiada da mansão Murrey, na baixa de Manhattan, agora conhecida como Casa Golden. Mas não tardará que esse narrador se apresente na sua singularidade: é René Unterlinden, 29 anos, “um contador de histórias credível e não experiente”, aspirante a cineasta e (o tal) vizinho dos Golden, a quem vigia, ganhando a confiança de cada um dos elementos da família para se apropriar do seu mistério e transformá-lo num argumento de cinema. “Os Golden eram a minha história”, dirá, acrescentando pouco depois que a sua questão artística “é a questão do mal”. E pode acrescentar-se que também é necessariamente a da virtude, ou da bondade, ou de como há um desajuste na linguagem no presente aqui retratado. “... a própria palavra bondade foi esvaziada de sentido e precisa, porventura, de ser posta de parte por uns tempos, como todas as outras palavras envenenadas: espiritualidade, por exemplo, solução final, por exemplo, e (pelo menos quando aplicada a arranha-céus e batatas fritas) liberdade.”

A partir da teia de relações familiares, amorosas, sociais e políticas dos Golden, Rushdie chama a si temas actuais na agenda política mundial, como a emigração, as alterações climáticas, a transexualidade, o exílio, a religião, a identidade, o exílio, tendo no centro o homem que se transformou no símbolo dessa catástrofe provocada, talvez por um facto: andámos muitos anos a fazer as perguntas erradas. Uma hipotética eleição de Joker é o resultado desse erro. E pode escutar-se a voz de Rushdie nas voz do narrador: “O que significava o que quer que fosse caso acontecesse o pior, caso a claridade desabasse do ar, caso as mentiras, as calúnias, a fealdade se tornasse o rosto da América. O que significaria a minha história, a minha vida, o meu trabalho, as histórias de americanos novos e velhos, famílias do Mayflower e americanos orgulhosamente naturalizados mesmo a tempo de participarem no desmantelamento — no desmantelamento — da América? Para quê tentar sequer perceber a condição humana se a humanidade se revelava grotesca, sombria, imerecedora? Que sentido tinham a poesia, o cinema, a arte? A bondade que morresse no ovo. O Paraíso que se perdesse. A América que eu amava, levara-a o vento.”

Não têm faltado vozes a identificar a proximidade de A Casa Golden com O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald. Num, como no outro, o foco está na classe abastada nova-iorquina e também em ambos o narrador observa e acede a esse círculo fechado para o contar. René Unterlinden surge como uma versão actual de Nick Carraway, mas é mais escorregadio e o livro de Rushdie está mais próximo do barroco, com uma exuberante multiplicidade de referências — literárias, cinematográficas, musicais, políticas —, enredadas numa profusão de acontecimentos que dificultam a descrição do enredo sem o alerta de spoiler. Além disso, A Casa Golden apresenta-se como um texto programático produzido por um escritor zangado com o país onde vive desde 1999 - escolha porque apesar de muitos males nele era possível dizer e escrever tudo, até que surgiu uma geração mais conservadora, o que leva o narrador, um simpatizante de Obama e da candidata, a falar de “estreitamento da mente jovem americana”.  

Lê-se A Casa Golden com encantamento e bocejo. As personagens são de grande profundidade, os ambientes bem construídos, mas as referências enciclopédias atrapalham, e há redundâncias quando à ideia de América. Rushdie não sabe fazer mal, mas quando não faz tão bem — por uma apressada necessidade de dizer coisas — isso chateia um bocado.

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