Na década de 1980, o argumentista de banda desenhada inglês Alan Moore publicou duas histórias que exploravam o desejo do Super-Homem se retirar das habituais actividades justiceiras e fruir de uma vida simples de indivíduo comum, em família. Estas histórias são dos exemplos mais notáveis da “viragem psicológica” que marcou a banda desenhada de super-heróis daquela década, cujo impacto persiste, definindo a maturidade do género. O novo God of War, o quarto da linha principal da série, opera nela uma viragem parecida.
Neste jogo, encontramos o semideus Kratos em preparativos para as cerimónias fúnebres da mulher, acompanhado pelo filho (Atreus), a tentar viver como humano, refugiado no norte de uma Europa pré-viking. As cinzas produzidas pela pira funerária destinam-se ao cumprimento do derradeiro desejo da defunta — que os seus restos mortais sejam espalhados no ponto mais alto dos “nove reinos” da mitologia nórdica (que aqui substitui a mitologia grega típica da série).
Será esta a demanda de Kratos e Atreus, uma “viagem sentimental” transformadora para ambos. À superfície, é Atreus o aprendiz de Kratos nesta viagem, que o prepara para ser um futuro guerreiro à semelhança dos pais. No entanto, é Kratos, como bem lembrou o realizador do jogo Cory Barlog, que está a sujeitar-se à aprendizagem mais essencial através da relação com o filho — aprender a ser humano pela constante confrontação com a curiosidade, os afectos e o humor de Atreus que o pai procura reprimir, considerando-os fraquezas prejudiciais à sobrevivência num mundo hostil e brutal.
Longe vai a mortandade causada a todo um panteão de deuses gregos do Olimpo nos anteriores títulos da série, motivada por desejos de vingança. Longe vai também a espectacular pirotecnia dos jogos anteriores, sublimemente excessivos, no limiar da absoluta tolice, que, no entanto, apresentavam a invulgar capacidade de combinarem estas características com excelente direcção artística e criatividade narrativa.
A viragem que esta reinvenção de God of War opera consiste em conferir densidade psicológica a uma personagem outrora dominada por impulsos primários e em optar por uma abordagem mais intimista e sóbria, na linha de The Last of Us e Uncharted 4. Estes passos na direcção do amadurecimento da série acompanharão a própria maturidade dos jogadores veteranos da franquia, existente desde 2005. É possível imaginar que uma parte significativa desses antigos semideuses das consolas se ocupe agora de actividades mais triviais decorrentes da paternidade e crie empatia com as angústias de um pai obstinado com a protecção do filho num ambiente violento.
Apesar do tom intimista que prevalece no novo God of War, mantém-se a grandiosidade, a ambição épica dos jogos anteriores, bem como os combates intensos e brutais. À escala arquitectónica sobrehumana acrescenta-se agora uma paisagem nórdica esmagadora que, combinadas, fazem deste jogo o mais belo de toda a série. Um ponto alto de God of War será a exploração em canoa do Lago dos Nove em que se combinam, com rara harmonia estética, um imenso espelho de água navegável com ruínas arquitectónicas e escultóricas colossais.
God of War é uma reinvenção completa da série, em que o Santa Monica Studio — com a introdução de novos panteão de divindades, cenário, jogabilidade e ângulo de câmara — correu riscos inusuais num projecto com o envolvimento de largos meios de produção. A ousadia produziu um dos jogos mais envolventes desta geração.