E agora, Brasil?
Já não é de hoje que da situação política brasileira emana um terrível fedor a situação pré-ditatorial.
É admissível achar que a governação de Lula operou uma transformação social do Brasil para muito melhor e que o Partido dos Trabalhadores, sob a liderança do mesmo Lula, pegou num sistema político que já era corrupto e não só não fez nada para o reformar como amplificou mesmo os vícios políticos do país, a começar pelo próprio “mensalão” com que comprou votos de congressistas — a exemplo do que tinha antes criticado veementemente com a presidência precedente do PSDB.
É possível também admitir que o tempo de Lula na política brasileira já poderia ter sido encerrado pelo próprio e pelo PT, para dar lugar a uma nova geração de políticos que contribuíssem para um Brasil menos polarizado. O mito de Lula é desmesurado, e ao mesmo tempo que gera ódios insanos, também acaba por secar a sua própria área política. E isto é independente do famoso processo do “triplex do Guarujá”, que segundo a investigação do juiz Sérgio Moro teria sido oferecido a Lula pela construtora OAS em troca de favores políticos mas de que comprovadamente nem Lula nem a sua família usufruíram (além de, claro, não terem nenhum título de propriedade dele em seus nomes — o que em si pode não ter significado caso houvesse um usufruto indireto através de um testa de ferro). Mas o processo do “triplex” não está ainda fechado, de forma que teremos de esperar para ver se configura, ou não, corrupção.
É admissível até, como já vi nas páginas do PÚBLICO, perceber os argumentos a favor da decisão do Supremo Tribunal Federal de manter a prisão após confirmação de uma sentença em segunda instância e perceber os argumentos de quem diz que a metodologia do processo contra Lula tem, a vários momentos, laivos indesmentíveis de perseguição política: vejam-se as escutas libertadas para a imprensa antes de validação judicial, com o intuito de influenciar a opinião pública. É certo que o Brasil está muito polarizado. Nós não temos de estar polarizados com ele. Custa-me a entender que haja gente tão obcecada com Lula que não tenha tempo para reconhecer que a forma como Sérgio Moro investiga, sentencia e vem para as redes sociais lançar foguetes é tudo menos típico de um juiz sério num estado de direito.
O que não é de todo possível, parece-me, é olhar para o que se está a passar no Brasil e não estar preocupado com o presente e o futuro da democracia brasileira. Já não é de hoje que da situação política brasileira emana um terrível fedor a situação pré-ditatorial.
O ponto de viragem foi a vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2014. Desde que ela tomou posse começaram as manobras para a destituir sob qualquer pretexto — e o pretexto que foi encontrado não foi mais do que a utilização de um critério de ornçamentação comum a muitos governos no mundo, de que todos os seus adversários já se esqueceram e que nem eles sequer jamais levaram a sério. Mas esse foi o pecado original. Como no Macbeth de Shakespeare, a vontade de poder justifica que se cometa o primeiro crime político: todos os outros cadáveres servem para justificar o primeiro.
A partir do momento em que ficou claro que uma parte do sistema político brasileiro estava disposta a tudo para tirar Dilma do poder — em parte, relembre-se, para enterrarem e conterem a operação Lava-Jato —, ficou claro também que seria inadmissível para a mesma gente aceitar que o PT pudesse vir a recuperar o poder em eleições presidenciais. Lula na cadeia passou a ser uma necessidade, não por causa de um triplex que ele nunca ocupou nem de um processo que ainda não transitou em julgado, mas pela muito mais singela razão de que Lula poderia perfeitamente ganhar as próximas eleições.
Se a minha interpretação shakespeariana estiver correta, porém, as coisas não vão ficar por aqui. Imagine-se que Lula apoia um outro candidato e que a transferência de intenções de voto, como as sondagens indicam, permitem que esse candidato passe à segunda volta das eleições presidenciais e se ponha em posição de ganhar (talvez contra um fascista como Bolsonaro). Alguém imagina que os inimigos de Lula se vão deixar derrotar por um candidato do PT? Eu tenho dificuldade em imaginá-lo. E por isso não tenho dúvida que é a própria realização do ato eleitoral brasileiro que deve ser agora protegida dentro e fora do Brasil. A última vez que se suspendeu a democracia naquele país, ela demorou duas décadas a voltar.