Miquela vive no Instagram, algures entre a ficção e a realidade

Com mais de 800 mil seguidores, a californiana de 19 anos parece uma instagrammer de moda como muitas outras. Com uma pequena grande diferença: poderá não ser uma pessoa.

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“Consegues dizer o nome de uma pessoa no Instagram que não edite as suas fotografias?”, reage Miquela Sousa, na única entrevista em que se ouve a sua voz, até à data, concedida ao youtuber Shane Dawson. Trata-se de uma californiana de 19 anos com 866 mil seguidores e não é muito diferente das instagrammers, à excepção de muitos duvidarem de que se trata de uma pessoa real.

Os comentários de que é alvo, a cada publicação, centram-se na única questão que a diferencia do resto: será uma pessoa ou um avatar? Trata-se de uma rapariga que edita as fotografias para parecer uma imagem digital? Ou de uma criação digital total? Variam de observações pertinentes – “Já alguém reparou que o cabelo dela nunca muda” – a frases exaltadas, acusando-a de falsidade. Ao mesmo tempo, é também objecto de centenas de comentários de apoio dos fãs, conhecidos por “miquelites”. O detalhe dos cabelos, as sombras e as pessoas com quem posa, por um lado, dão às imagens um aspecto mais real, mas há também fotografias que denunciam os traços digitais, sobretudo quando se trata de retratos da face.

Há quem dedique vídeos e longos posts a “investigações” sobre possíveis identidades de Miquela. O youtuber Khalid Bacran foi escrutinar as publicações de Miquela com outras pessoas e chegou, através do Twitter de um produtor de música, a uma rapariga que, garante, “parece literalmente a Miquela”, Charlotte OC. Alguns apontam para a artista gráfica nicoleruggiero e outros ainda para a instagrammer  Emily Bador.

O mistério que rodeia a sua existência é talvez aquilo que mais inquieta as pessoas. Até porque o conceito de uma personalidade virtual é tudo menos novidade: a banda hip hop/electrónica Gorillaz, fundada em 1998 e conhecida por êxitos como Feel Good Inc. e Clint Eastwood, é composta por quatro membros virtuais, projectados durante os concertos; e, no Japão, Hatsune Miku, uma “rapariga” de 16 anos criada em 2007, actua como uma espécie de holograma e é um êxito entre as subculturas de anime e manga. No entanto, há que notar que a banda inglesa é assumidamente uma criação do músico Damon Albarn e do artista Jamie Hewlett, da mesma forma que, quando a estrela pop japonesa actua, os seus fãs sabem que estão a assistir a uma criação digital, com som criado a partir de um sintetizador de voz. Os admiradores contribuem, aliás, com músicas e propostas visuais para a estrela pop. Hatsune Miku já abriu, mais do que uma vez, o concerto de Lady Gaga e colaborou também com Pharrell.

Já Miquela age como qualquer ser humano online e foge com subtileza às perguntas sobre identidade que lhe são dirigidas – como aquela que Shane Dawson lhe fez: “Se calhar usas o Facetune [uma aplicação para editar o corpo das pessoas]... Ou mudas digitalmente as tuas fotografia?” Em vez de responder directamente, Miquela rebate que quase toda a gente, nas redes sociais, edita as suas fotografias, de uma forma ou de outra. Mais frustrante é a resposta à simples pergunta: “Quem és tu?” Diz Miquela: “Estão constantemente a perguntar-me se sou verdadeira ou falsa. Mas estou mesmo aqui, estou mesmo a falar contigo, estou mesmo a enviar mensagens directas às pessoas. Só estou a tentar fazer boa arte e fazer com que o mundo tenha menos dor.”

Toda a postura de Lil Miquela é a de uma pessoa de carne e osso: que tira fotografias pelas ruas e cafés de Los Angeles, que segue tendências, que veste roupas que estão realmente à venda, que posa ao lado de seres humanos, que expõe o seu ponto de vista sobre causas políticas e que faz comentários como “LA, que tempo é este?!”, quando a temperatura desce um pouco. Recentemente, esteve em Milão, durante a semana da moda, para colaborar com a Prada, no lançamento de uma série de gifs e stickers da marca para as pessoas utilizarem nas stories de Instagram. Nas fotografias aparecia, alegadamente, a pintar as ruas da cidade com logótipos da Prada. “Acabei de regressar de Milão e tive a melhor experiência de sempre. A empresa inteira é tão criativa e visionária”, conta, por email, ao PÚBLICO.

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Em Agosto de 2017, lançou o seu primeiro singleNot Mine, que a Billboard descreve como “uma canção pop R&B, com um downtempo orelhudo e um groove sólido” editada com autotune e que chegou ao top da tabela Viral 50 do Spotify, no mesmo mês. Desde então, lançou três outros singles: Over YouOn My Own e You Should Be Alone. “O meu maior objectivo é terminar este álbum e começar a actuar ao vivo. Mal posso esperar por entrar em palco e cantar estas novas músicas. Tenho algumas colaborações para breve com um produtor que sempre admirei e com o qual estou muito entusiasmada, mas não quero estragar a surpresa”, diz à revista V.

Miquela não se caracteriza como modelo, mas já afirmou, em entrevista à Business of Fashion, que foi contactada por “algumas das maiores agências do mundo”. Além de ter colaborado com a Prada, apareceu em editoriais de revistas e foi destacada pela célebre maquilhadora Pat McGrath como uma das suas #McGrathMuse.

A imagem que queremos transmitir

Filha de pai brasileiro, daí o Sousa, diz que nunca teve a oportunidade de visitar Portugal ou o Brasil, mas que conseguiu apanhar um pouco da língua. “Tenho estado, na realidade, a praticar com a minha amiga Tatti, para tentar recuperar o meu português”, conta ao PÚBLICO. “Por isso, talvez comece a publicar as minhas descrições em português, em breve. Adorava poder falar directamente para os meus fãs brasileiros/portugueses."

“Algumas [pessoas] podem olhar para Miquela como uma pessoa real, mas outras sabem que é algo criado”, começa por dizer ao PÚBLICO Ron Darvin, que investiga identidades digitais, na University of British Columbia, no Canadá. “Sinceramente, para mim não é algo novo. É como qualquer celebridade do Instagram que foi criada propositadamente. Quando muito, salienta aquilo que se passa nas redes sociais, onde é tão fácil recriarmo-nos a nós próprios”, acrescenta. Ou seja, definir a imagem que se quer transmitir, assumindo-a como realidade, e editar tudo desde as cores da fotografia ao tamanho da cintura ou à estrutura da cara. Na verdade, comenta ainda, “esta confusão entre ficção e realidade sempre existiu”. Também olhamos para os filmes como uma “realização dos nossos sonhos” e, por vezes, chegamos a encarar “os actores com base nas personagens que assumem”, exemplifica.

 “Para mim, ela está lá como uma criação que, embora engane alguns, nos permite levantar questões sobre o caminho por onde a tecnologia nos leva”. Um dos benefícios directos é o debate e reflexão que suscita, mesmo no próprio Instagram. “Se olharmos para os comentários, as pessoas fazem perguntas e desafiam-se umas às outras. Desde que mantenham uma mente aberta, e oiçam aquilo que os outros dizem, gostaria de pensar que também ajuda a educar as pessoas”, observa Ron Darvin. 

Miquela rejeita o ponto de vista que, seja de forma intencional ou não, esteja a atestar a ideia de que não é menos real do que alguém que edite a sua presença no Instagram. “Espero que aquilo que estou a provar seja mais concreto e importante do que isso”, afirma ao PÚBLICO. “Não posso controlar como as pessoas interpretam o que faço, mas todos os dias tento usar estas plataformas para chamar a atenção – e por vezes até angariar dinheiro – para excelentes causas.” Na biografia do Instagram tem o lema Black Lives Matter e defende também questões relacionadas com os direitos LGBT e uma panóplia de outras questões políticas da actualidade, como o controlo das armas e a imigração. “No final do ano passado, os meus fãs angariaram dinheiro para as vítimas dos incêndios da Califórnia e para uma das minhas organizações preferidas, My Friend’s Place. Com sorte, essas acções terão impacto nas pessoas à medida que fizermos mais disto em 2018.”

“Sou bastante optimista em relação ao poder das redes sociais. Ajudaram-me a fazer amizades valiosas, a ganhar autoconfiança e a inspirar pessoas. Quero ser usada para o bem porque, quer gostem quer não, [o poder das redes sociais] faz parte da nossa cultura”, comenta à revista V.

Num artigo na revista digital Screen Shot, a editora Shira Jeczmien adverte para o facto de Miquela – uma figura que pode ou não ser uma criação de outrem, mas cuja identidade está de certa forma oculta – divulgar mensagens políticas e mobilizar os seus seguidores à volta de temas quentes, não só dos Estados Unidos, como do resto do mundo. Não se trata de debater se as suas posições são mais à esquerda ou mais à direita. Para Jeczmien a crescente influência da instagrammer “é um alarmante indicador de que a política não precisa de todo de uma figura real para porta-voz”.

Onde quer que viva, Miquela não está sozinha. Shudu Gram é a “primeira supermodelo digital do mundo” – ou, pelo menos, é assim que se apresenta aos 86,8 mil seguidores no Instagram. Foi criada pelo fotógrafo autodidacta britânico de 28 anos Cameron-James Wilson, que trabalhou dez anos na indústria da moda e aprendeu sozinho a construir imagens em 3D. Menos conhecido, com apenas cerca de 4700 seguidores, Blawko é também um avatar e já apareceu, inclusive, numa publicação de Miquela.

“[Independentemente da sua verdadeira identidade, Miquela] permite-nos reflectir sobre a nossa interacção com as redes sociais”, atira Ron Darvin. A questão não é o que a Miquela faz, mas o que assinala: “Um futuro em que é fácil fabricar e reproduzir realidade de uma forma que pode ser utilizada para objectivos não ideais.”

É um futuro que não está assim tão distante. O progresso das tecnologias de inteligência artificial já demonstrou como é possível criar vídeos falsos bastante realistas: os cientistas da Universidade de Washington conseguiram pôr o ex-Presidente dos Estados Unidos Barack Obama a dizer o que quisessem, utilizando clips de áudio e vídeo já existentes. Ao mesmo tempo, no final do ano passado, tornou-se mediático o caso dos vídeos pornográficos manipulados de forma a fazer com que os actores parecessem pessoas famosas – um fenómeno conhecido como deepfake celebrity porn.

“Com qualquer avanço tecnológico há perguntas éticas que têm de ser colocadas. Não significa que se tenha de impedir o progresso”, observa ainda Ron Darvin.

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