Braga ao toque dos sinos

Levantem a cabeça e procurem com atenção: sinos Jerónimo, relógios de torre, datas mais velhas do que a Sé, cortinas de renda nas janelas, pastelarias gulosas, pessoas com memória e muitas fotos a preto e branco. Passámos dois dias na cidade a abrir caminho para quem lá vai na Páscoa e encontrámos muitos segredos à moda de Braga.

Foto
Joana Gonçalves

Há uma betesga sem nome onde estão dezenas de sinos empilhados, velhos e pesados — como um cemitério de elefantes. Alinhado num muro descansa um regimento de badalos envelhecidos. Ouve-se perfeitamente o trânsito da Avenida Cidade do Porto, em Braga. Percebe-se ainda melhor a orquestra de ruídos que vem do interior da Fundição de Sinos, de Serafim da Silva Jerónimo, a única do género no país, fundada em 1932.

Tocamos à campainha e somos recebidos na fábrica onde mais de 30 pessoas restauram carrilhões, conjuntos de sinos e cabeçalhos (um puzzle perfeito de três peças maciças de madeira), trabalham na conservação de relógios monumentais e fundem um produto “rico em timbre”, uma arte milenar praticamente inalterável desde o século XII. Estamos na “última fundição”, apresenta Diana Araújo. Piscamos os olhos e recuamos um século, estamos no coração da fábrica de sinos, uma nave comprida de paredes rudes e escuras onde sobressaem apenas os mais reluzentes e onde as altíssimas temperaturas brincam com moldes de barro e cera.

Passo a passo. São fabricados dois moldes: um para o perfil interior do sino (“macho do sino”), o outro para o perfil exterior (“falso sino”). Este falso sino, composto de material refractário, é recoberto de uma fina película de cera sobre a qual são colocados os ornamentos, as inscrições e as esculturas também em cera, que depois são revestidas com diversas camadas de material refractário. Após um período de secagem de vários dias, separa-se a moldação exterior do macho e elimina-se o falso sino. Finalmente, voltam a ser colocados um sobre o outro e entre os dois é criado um espaço no qual o bronze fundido (78% de cobre e 22 de estanho) é vazado a uma temperatura de 1040 graus centígrados. Logo que o sino arrefece, parte-se o molde e ouve-se a primeira badalada, um som que, apesar de não ser ainda inteiramente puro, dá já uma indicação do seu timbre.

Fotogaleria

Passámos os dois dias seguintes a ouvir sinos a picar a hora, a bamboar a hora. Esta é uma das formas de conhecer Braga, a cidade dos sinos (a Fundição espalhou mais de 11 mil sinos por Portugal e no estrangeiro) e dos relógios de torre (levantem a cabeça e procurem com atenção: no fundo branco estão lá as inscrições a negro “Jerónimo” e “Braga”), dos mistérios que vão para além da Semana Santa, das datas muito, muito antigas que nos surgem pela frente (mais velhas do que a Sé de Braga), das cortinas de renda penduradas por dentro das janelas, das pessoas com memória — e muitas fotos a preto e branco —, das mil e uma tabacarias com senhores lá dentro, dos nomes de pratos e de doces que se confundem com títulos nobiliárquicos e hierarquias católicas, dos cafés e das pastelarias que teimosamente ocupam as esquinas e os gavetos do coração da cidade — um-dois-três-diga lá outra vez: Sàbiá, Brasileira, Tíbias de Braga, Lusitana, A Favorita, Santa Cruz...

Da Estação Ferroviária à Avenida da Liberdade é um pulo (mesmo com o tempo a ameaçar cumprir todas as profecias: chuva miudinha que se transforma em chuva torrencial). E não se deixem ficar quando perguntarem “o que há para fazer na cidade durante dois dias?” e, como resposta, alguém do lado de lá do balcão do posto de Turismo vos entregar diligentemente um roteiro com 30 pontos do roteiro barroco — estilo que se distingue pelo esplendor exuberante.

Foto
Avenida da Liberdade Joana Gonçalves

Desdobrem-no, dobrem-no. Continuem e ali ao lado, na apalaçada Casa Rolão, edificada entre 1758 e 1761 por iniciativa de uma família que se dedicava ao fabrico de sedas e projectada pelo arquitecto bracarense André Soares, encontrarão a Centésima Página, livraria recheada de truques e dicas também para quem quer conhecer os segredos de Braga. Estejam à vontade. Repitam a pergunta “o que há para fazer na cidade durante dois dias?”.

Ou folheiem. “Segredos são as coisas escondidas, o que está fora do nosso alcance imediato. Segredos são o que está a descoberto e não vemos. Segredos são um prazer porque são um desafio, um caminho para a alegria da descoberta”. Assim escreve Eduardo Pires de Oliveira no livro Braga Top-Secret, no qual revela os seus 56 locais secretos — “todos os dias passamos em lugares que a persistência do percurso tornou banais”.

A nossa “descoberta” desta cidade (“Em todos os lados há beleza, em todos os sítios há maravilhas a descobrir. A descobrir com os olhos, com a língua, com o tacto, com todos os sentidos”) onde tudo fica à mão de semear começa mesmo ali ao lado, no átrio da casa que ocupa os números 42-44, onde estão alguns dos raros azulejos de Arte Nova, sem grande aceitação em Braga, e serpenteia pelo centro até ao fim da primeira etapa (compromisso no GNRation).

Foto
Livraria Centésima Página Joana Gonçalves

Até lá, e na companhia de Helena Veloso, uma das proprietárias da Centésima Página, fomos percebendo o porquê da urgência em classificar as Lojas com História, programa que visa salvaguardar e dinamizar o comércio histórico e tradicional da cidade, apregoado por estes dias nos jornais bracarenses — estarão identificados 46 estabelecimentos comerciais, 15 dos quais centenários, que poderão beneficiar do estatuto. No número 38 da mesma Avenida Central fica a Queijaria Central, um dos flagrantes casos quem-o-viu-e-quem-o-vê. Se no site da Câmara Municipal a queijaria, que abriu portas em 1952, surge como um dos “espaços com alma” de visita obrigatória, ao vivo já só a fachada mantém a traça original.

Aqui há hóstias!

As ruas de Braga estão cheias de referências à paramentaria, à venda de saquinhos de hóstias (“Aqui há cacos!”), usadas para confecção de doces, e a casas cuja história se vai perdendo — como as lindas letras pintadas no interior da Casa das Velas, que comemora 75 anos este mês. No estabelecimento no número 103 da Rua Dr. Justino Cruz vendem-se velas, ex-votos, tapetes (“começou apenas com tapetes de igreja”) e vinho do Porto branco doce “elaborado especialmente para a celebração da missa”.

Ao lado da Casa das Bananas (Rua do Souto, 26: um “bananeiro” de poucas palavras, filas e filas de garrafas Moscatel de Setúbal com teias de aranha, uma banana e um cálice por 1,50 euros) rendeu-se a J. Vieira da Fonseca, loja fundada em 1943 que no seu interior fantasma ainda exibe a inscrição “pinturas, douramentos e obras de talha”.

Ali perto, no número 147 da Praça Conde Agrolongo, construída sobre o vinhedo da Santa Eufémia, daí ser conhecida popularmente como Campo da Vinha, resiste a amêndoa palitada, a sultana, as garrafas miniatura e o cheiro do moinho do café da Casa Meira da Silva e Ascenso (1939). “Este estabelecimento comercial reserva-se o direito de definir pesos mínimos para os diferentes produtos de venda avulso”, lê-se numa montra pouco frequentada.

Foto
GNRation Joana Gonçalves

O segredo do moderno vizinho GNRation, estrutura que aterrou no antigo quartel da GNR, é igualmente bem medido e diferenciador — à antiga: salas pequeninas, performances, concertos e exposições e um serviço cultural personalizado. “As pessoas têm receio daquilo que é novo e do que é diferente. Mas a verdade é que, quando percebem que de facto não há motivo para ter receio, antes pelo contrário, a palavra passa rápido e as pessoas enchem as actividades e validam o nosso trabalho”, sublinha Luís Fernandes, bracarense (“nunca equacionei viver noutra cidade”), director artístico de uma das duas estruturas de Braga a programar a tempo inteiro (a outra é o Theatro Circo, edifício idealizado em 1906 e que reabriu em 2006) e programador do Semibreve, um dos muitos “micro e macroeventos” de que fala e que vão deixando sementes e tornam a cidade apelativa do ponto de vista cultural.

Luís tem acompanhado “a mudança”, aquilo a que chama de “crescimento exponencial” nos últimos dois anos, um movimento que encaixa na chegada a Braga de outras “naves espaciais” (como o Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia, com quem o GNRation estabeleceu parcerias criativas, e o recente título de Cidade Criativa da UNESCO na categoria Media Arts). “Temos quebrado algumas barreiras e apresentado uma oferta cultural que não havia na cidade, uma relação estreita entre tecnologia e arte”, prossegue. “Os lamentos típicos sentem-se muito, muito menos.”

Susana Seabra, que gere a Cafetaria Pausa no miolo do GNRation, sabe que este é um “local tecnológico que procura recuperar hábitos antigos”. “Aqui tentamos que se coma como comíamos antes”, diz, lembrando que muitos dos ingredientes (como “as alfaces ainda com orvalho”) são comprados no Mercado Municipal ali ao lado. “Comida genuína e honesta, saborosa e equilibrada”, indica a Pausa, com um espaço de livros (e um astronauta num mural da autoria de Sama): uma livraria dedicada à Ilustração (Ilustra), um ponto oficial de bookcrossing (Leva & Traz) e ainda a Partilha, onde se pode encontrar revistas temáticas para leitura no local.

Foto
Cafetaria Pausa Joana Gonçalves

Por aqui é fácil confundir tudo com comida — e nem é preciso andar muito nem jogar ao jogo da corda para ver qual o melhor arroz de pato da região, quem serve as melhores papas de sarrabulho ou qual o restaurante que faz do seu nome um prefixo para um prato de bacalhau. Facilmente contaríamos a nossa experiência em Braga relatando as vezes que nos sentamos à mesa.

O copo de vinho a transbordar (“Seja branco ou seja tinto/ Não importa a cor que tem/ Bebido nesta casa/ Todo ele sabe bem”) e o bacalhau com grão no Restaurante Velhos Tempos (uma espécie de museu onde saltam à vista as acções emolduradas da Companhia Industrial Portuguesa, o termómetro Singer, as mesas de máquinas de costura e as penas de aparo, entre muitos outros objectos de colecção), a broa doce e o prato de amêijoas (e a Abelha Maia adoptada por Rui e Tânia) da Retro Kitchen, o cevadotto de espargos na Casa de Pasto das Carvalheiras (se tiverem sorte dão com João Pupo Lameiras a brincar na cozinha), os saquinhos de papel atados com um fio da Doçaria S. Vicente (1929) e cheios até cima de fidalguinhos (“os mais fininhos”), pedreneiras (de canela), rosquinhas, casadinhos (de marmelada), charutos (de chila), bolinhas (de mel e amêndoa) e suplícos, e o melhor pudim abade de Priscos cá do bairro, o da Pastelaria Sàbiá, entre prédios na Rua Beato Miguel de Carvalho.

“O segredo não existe”, sublinha Manuel Almeida, proprietário do pequeno espaço que tem ajudado a divulgar uma “receita pública”. Açúcar, ovo, vinho do Porto, toucinho, canela e limão. “O criador da receita nunca fez questão de a esconder”, explica, enquanto nos são apresentados os segredos de uma marca (1922) que vai na quarta geração com produtos da alçada da Doçaria da Cruz de Pedra. “Damos uma nova vida à receita original”, diz.

Foto

A Sàbiá trabalhou o produto e a embalagem. A forma em alumínio foi redesenhada, assim como uma pega em cartão (“Fundada em 1922 pelo mestre pasteleiro António Xavier Martins, cruzou com os seu sabores o último século, atravessando quatro gerações da mesma família. Mantém inalteradas as receitas originais”) e uma embalagem em cortiça. Experimentámos o mais pequeno (80 gramas) dos três tamanhos disponíveis servido num pratinho de barro onde encaixa um copo, também de barro, com uma aguardente velha gelada. Chamam-lhe “harmonização”.

A casa da cadeira invertida

O quarto nas águas-furtadas está pronto. Cuidado com a cabeça! Estamos a entrar no quarto Alice no País das Maravilhas. Só mais um aviso: “Don’t drink me”. A cama alta tem uma colcha de renda e uma cadeira de pernas para o ar bordada nos lençóis e nas fronhas das almofadas. Há uma dama de copas na cabeceira, um serviço de chá Aleluia com o tema de cartas de jogar, um relógio e um espelho. “É uma casa com alma e não nova e brilhante”, deixa bem claro Anna Dobiech, polaca natural de Lodz e sócia da bracarense Joana Macedo, que nasceu na sala de estar da Residencial Inácio Filho, agora Collectors Hostel, com vista sobre os telhados e as torres sineiras da cidade e varanda sobre a Rua Francisco Sanches e a ginkgo biloba da Casa do Passadiço, uma das árvores mais antigas de Braga.

“Fizemos tudo com as nossas mãos, reutilizámos tudo o que encontrámos nas gavetas”, explica Anna, enquanto apresenta o hostel feito com pedaços da história da Residencial: colecções de porta-chaves, de galos, de chaves de portão, de rendas e de outros bibelots. “Tudo é vintage.” Sinta-se em casa. “É como uma casa dos avós, mas diferente. É um projecto muito pessoal, o nosso bebé”, sublinha Anna Dobiech, que conheceu Joana enquanto trabalhava num restaurante em Paris. O Collectors dispõe de oito quartos (quatro camaratas, dois quartos de casal, um duplo e um single) e uma “cozinha familiar pequenina”. “Fizemos tudo em três meses, 15 horas por dia.”

Foto
Collectors Hostel Joana Gonçalves

Ouvimos o primeiro bamboar às 7h — em ponto. Meia hora antes de servir o pequeno-almoço, Anna pega no carrinho de compras do avô de Joana (“guardou tudo por uma boa razão”) para ir ao Mercado Municipal, aberto todos os dias, mas com vida extra às terças, quintas e sábados. Há 40 anos que a dona Glória vende frutas e hortaliças, sementes e flores num mercado que serve frangos e coelhos vivos e ovos à dúzia. “Vai com Deus.”

O hostel de Anna e Joana abriu em Abril de 2015. “Agora crescem como cogumelos”, comenta a polaca. Dali ao Arco da Porta Nova são... dois minutos mal contados. Diariamente, pelas 11h e 15h, esse é o ponto de encontro com o guarda-chuva verde da Minho Free Walking Tours. “E há pessoas todos os dias, mesmo todos os dias”, reforça o nosso guia Paulo Simões, que integra há dois anos o projecto de dois professores de História que não têm mãos a medir. Desde então “muita coisa mudou”. “Os turistas já não vêm passar o dia em Braga, já passam a noite em Braga, já vêm especificamente para Braga, mesmo que não saibam nada da cidade.”

“Arcebispos”, avisa Paulo, é a palavra que mais se repete na visita que durante três horas serpenteia pela “cidade onde se reza”. Começa quase na estreita Rua da Violinha, a única viela onde podemos tocar simultaneamente com os dois braços nas suas duas paredes, e passa por alguns segredos de alguns monumentos nada secretos (a gárgula impudica pendurada, rabo ao léu, no topo da Sé; a Senhora do Leite, que é um dos principais ícones da cidade; os galos casamenteiros mal escondidos na fachada da igreja de Santa Cruz) e outras curiosidades que vão pautando a dinâmica citadina (como a notícia de que o antigo cinema São Geraldo, abandonado há mais de 20 anos, irá reabrir no final do ano como área comercial, a de que o novíssimo Parque de Exposições contará com uma sala de concertos para mais de nove mil espectadores e zona exterior com uma praça com capacidade para concertos para mais de 20 mil pessoas ou a de que ainda há muitas bandas a ganharem corpo no velhinho Estádio 1.º de Maio).

Foto
Joana Gonçalves

Porque a cidade está em constante mutação, na primeira quinta-feira do mês há “Conversas sobre imagens de Braga” no Museu Nogueira da Silva, onde se fala sobre a imagem urbana e locais que ou desapareceram ou foram alterados. Pela mesma razão, na última quinta-feira do mês há PubhD, um jogo entre as “palavras” Pub e PhD, um encontro no Barhaus em que se discutem teses de doutoramento em ambiente descontraído. Mudam-se os tempos...

António Alves está há 32 anos no número 53-55 da Rua D. Diogo de Sousa (“esta rua tem sete nomes”). “Comecei com dez anos nesta profissão. Ainda não tive outra”, diz, engolido pelas custódias, cálices e cruzes, pela sua oficina para obras em prata e partes metálicas para arte sacra. “Douram-se e prateiam-se todas as obras de prata e metal”, lê-se no cartão-de-visita da Casa S. José. Ao virar da esquina, estão as Frigideiras do Cantinho (1796) que Júlio Dinis descreveu como “divinais” na sua obra Serões da Província, estabelecimento cuja remodelação, em 1997, permitiu a descoberta de estruturas que correspondem a uma habitação do Período Romano (os vestígios podem ser observados através do pavimento de vidro da pastelaria).

“É bastante comum em Braga. Escava-se um buraco e encontra-se algo romano”, brinca Carina Alves, gerente do Burgus Tribute & Design Hotel, que não foi excepção à regra. À medida que se foi escavando foi ficando à vista o espólio romano encontrado nas fundações. Foi criada uma parceria com o Museu D. Diogo de Sousa e com o departamento de Arqueologia da Universidade do Minho e um pedaço da muralha descoberta foi trazida para o nível da recepção do hotel.

Foto
Casa Rolão Joana Gonçalves

A obra, que esteve um par de anos parada, presta hoje tributo a personagens relevantes para a cidade. Cada quarto (são 14) tem o nome de uma “personagem relevante”. “Não deu para as personagens todas”, sublinha Carina Alves. Deu para D. Pedro, André Soares, D. João Peculiar, S. Frutuoso, D. Diogo de Sousa, Pêro Magalhães Gândavo, D. Afonso Henriques, D. Henrique e D. Teresa, D. Rodrigo de Moura Teles, S. Martinho de Dume, Carlos Amarante, Paulo Osório, Francisco Sanches e para Adolfo Luxúria Canibal, “o único vivo” do lote com direito a capa do Mutantes na porta. “É uma figura marcante da cidade e José Pereira, administrador do hotel, é grande fã”, justifica a gerência.

Em plena Rua D. Afonso Henriques, o Burgus está numa zona “cada vez mais viva”. “A parte histórica esteve parada durante muitos anos e tem sido reabilitada, aproveitando também o excedente de turismo do Porto. Já não é uma coisa estática”, explica a responsável do hotel com quartos com vista sobre a Sé e com cinco sinos Jerónimo sobre o balcão do bar — quatro foram transformados em candeeiros, um toca.

“O progresso implica destruição”, assinala (à mesa da recatada cafetaria da Casa do Professor) Francisco Vieira da Silva, autor de livros (Estamos Pobres!, Lopes Gonçalves e Viver com André Soares) que exploram a relação de algumas personagens com uma cidade no passado “fechada e pequena”. “Hoje, Braga já é grande num Portugal pequenino. Na sua história guarda mais virtudes do que erros. É uma cidade jovem, principalmente desde a chegada da universidade”, resume.

Foto
Retro Kitchen Joana Gonçalves

“Braga tem muita coisa para descobrir”, sentencia, assinalando o Parque das Sete Fontes (levar botas e lanterna; as visitas são geridas pela AGERE), uma das medalhas de mérito da Associação para a Defesa, Estudo e Divulgação do Património Cultural e Natural (ASPA), responsável pela classificação e processo de recuperação daquele espaço como parque monumental.

As incríveis pedras rejeitadas

Para sabermos mais sobre o que está atrás de cada porta fechada aderimos ao palavra-puxa-palavra, ao mail-puxa-número-de-telefone, ao apanhar-táxi-para-não-apanhar-molha (perdão, não sabíamos que a Uber já cá estava desde Janeiro).

No Seminário Conciliar de São Pedro e São Paulo foi o seminarista Miguel Neto quem nos apresentou à capela Árvore da Vida, um jogo de luz e sombras, projecto (Cerejeira Fontes Arquitectos) que só abre ao público uma hora por semana (às sextas-feiras, entre as 17h e as 18h). “É como uma clareira num bosque, o coração pulsante da casa”, descreve Miguel, 32 anos.

Estamos perante 20 toneladas de pinho norueguês, um encaixe orgânico que não levou nem parafusos nem pregos. Simbolicamente, a porta não tem portadas e as pedras adoptadas (degrau da entrada, pia de água benta e ambão) são pedras rejeitadas (“na pedreira não iam ter nenhum uso”), à semelhança do que acontece com a pedra vertical do altar com uma esquina partida, estrutura que fica completa com um tampo de uma mesa masseira em carvalho (onde se amassava e guardava o pão a levedar).

Foto
Joana Gonçalves

Doze luzes iluminam a assembleia e há uma luz sobre o ambão que nunca se apaga. Uma série de artistas contribuíram para que esta fosse uma peça especial — vencedora do prémio ArchDaily 2011 para edifício religioso —, uma avalanche de metáforas: um políptico da pintora Ilda David, as galhetas e o jarro com o dedo da barrista de Barcelos Júlia Ramalho, alfaias litúrgicas desenhadas pelo escultor norueguês Asbjörn Andresen, o órgão português construído por Pedro Guimarães.

A capela faz a capa do livro que comprámos na Centésima Página e de onde saltam segredos de todos os pontos do mapa: Escola Secundária Sá de Miranda (aquela colecção de mapas...), miradouro do Sagrado Coração de Jesus, jardim suspenso da Velha-a-Branca, Torre de Menagem, Bar Egípcio, sacristia da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Memória, vistosas clarabóias escondidas pela cidade e Convento de Nossa Senhora da Conceição, onde se escondem as máquinas de fazer hóstias.

O Padre Rui Sousa abriu-nos a porta de outro esconderijo, a Capela Imaculada, um feixe de luz no interior do Seminário Nossa Senhora da Conceição (actualmente com 16 seminaristas), que, no contexto do 90.º aniversário (em 2015) decidiu revitalizar-se, reinventando um edifício construído na década de 40 em estilo neogótico, mantendo alguns traços primitivos e acrescentando uma “linguagem adequada e compreensível” que se traduz em “formas simples” e objectos minimalistas.

Estamos perante uma obra do gabinete Cerejeira Fontes Arquitectos, do escultor Asbjörn Andresen e da pintora sueca Lisa Sigfridsson (com apoio do então director do seminário Avelino Amorim e do cónego Joaquim Félix). “Procurou manter-se a escala e a luz, acrescentando conforto (foi aplicada uma solução de piso radiante alimentado por painéis solares) e uma sensibilidade estética contemporânea”, explica Rui Sousa, minucioso na revelação dos segredos deste espaço — onde está plantada a Capela Cheia de Graça, uma matrioska em madeira com vida própria, um oratório cujo altar é o topo de um pilar de pedra com quase cinco toneladas e que na base tem esculpida uma orelha (simboliza o shemá) de mármore, que existia no edifício original.

Foto
Joana Gonçalves

O caminho da Capela Imaculada “não é linear e imediato”. “São cerca de 50 centímetros entre a quota da porta e a do altar”, avisa o nosso guia, enquanto, à esquerda e à direita, nos aponta a Via-Sacra e a Via Lucis, conjuntos de quadros imaginados e pintados por Lisa Sigfridsson. “Este caminho de acesso ao mistério que celebramos não se faz de uma forma imediata, mas progressiva e lenta”, justifica.

Somos envolvidos por uma grande abóbada (130 toneladas de betão) com rasgos de luz que vão sendo mais intensos à medida que nos aproximamos do altar. Para que quase 30% das pessoas possam estar sentadas na primeira fila, a assembleia encontra-se disposta em presbitério em ilha, uma elipse da qual faz parte a Senhora da Humildade, uma figura em madeira entalhada inspirada nas primeiras representações escultóricas de Maria vestida em tons de terra, de húmus, coroa nas mãos, orelhas grandes e olhos bem abertos — na mesma técnica foi esculpido um Cristo, na cruz, mas sem estar pregado a ela.

Sem frente e verso e polido apenas numa das faces, o altar de granito encontra-se “suspenso” sobre as águas. Ao fundo, há um corpo de luz (é mesmo luz natural) onde se equilibram várias peças suspensas de mármore polido de Estremoz trespassadas pelo sol. “Densidade e sentido sem ostentação”, resume o padre Rui Sousa.

Por uns momentos — lá fora a chuva abafa o som dos sinos.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários