Combater o fogo com Fogo. Como o humor pode ajudar a ultrapassar o trauma

O grupo Trigo Limpo teatro ACERT está a percorrer aldeias de Tondela e a pôr as pessoas a rir da própria desgraça. É uma forma de superação.

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Paulo Pimenta
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Na noite de sábado, o FC Porto ganhava em casa ao Boavista e, no café da Associação Cultural, Desportiva e Recreativa (ACDR) de Sangemil, uma aldeia nas redondezas de Tondela, os olhos estavam postos no ecrã. Mas o programa para o serão era outro. Estava 1-0 ao intervalo quando entra na colectividade um homem de macacão azul e concertina ao peito. “Sigam-me por favor”, diz, depois de se apresentar. A larga maioria acede, deixa o café para passar ao salão logo ao lado e instala-se nas cadeiras de plástico em frente ao palco.

O homem, Pompeu José, é um dos três actores do grupo Trigo Limpo teatro ACERT, que por estes dias percorre várias aldeias do concelho de Tondela afectadas pelos incêndios com a peça Fogo. Veste a personagem de um bombeiro filho de bombeiros, que serve de ponto de partida para falar sobre a tragédia utilizando o humor como linguagem. Este é um mecanismo de lidar com o mundo, diz ao PÚBLICO Pompeu José, que viu a própria casa rodeada pelas chamas em Outubro. “O humor acaba por nos salvar, por desmontar a realidade”.

“A equipa vive toda em Tondela e sentimos que tínhamos de fazer alguma coisa”, explica o actor, encenador e dramaturgo. “Não para carpir em cima da desgraça”, mas para aproveitar o balanço do trabalho de reconstrução. “Temos de conseguir brincar com isto.”

A 15 de Outubro, o fogo passou por metade da área de Tondela, distrito de Viseu, em sete horas. Foi quanto bastou para que cerca de 240 casas de primeira habitação fossem destruídas. Em Sangemil, apesar de o incêndio ter consumido tudo à volta da aldeia, arderam apenas algumas que estavam desocupadas, conta António Louro, de 53 anos. Ao lado, João Pereira, dez anos mais novo, também da direcção da colectividade, acrescenta: “Em termos visuais isto afecta imenso as pessoas. Ficámos sem uma zona verde”.

Pompeu José explica que havia um sentimento de que “o murro foi muito grande”, mas era preciso “sair deste sufoco o mais depressa possível”. Hoje, “o pessoal já se habituou, mas nos primeiros dias foi mais complicado”, continua João Pereira. Passaram pouco mais de cinco meses, desde que “o fogo levou o que quis”. A peça “traz alguma alegria e faz com que as pessoas se juntem”, diz João Pereira, que há pouco discutia atrás do balcão se a entrada do axadrezado Vítor Bruno sobre o portista Sérgio Oliveira seria caso para vermelho. O espaço da associação é o único café de Sangemil e vai servindo de ponto de encontro à comunidade.

“Até se devia fazer mais vezes”

No salão com o tecto com faixas de plástico coloridas da ACDR estão cerca de 30 pessoas. Na sexta-feira, quando a peça passou pelo bar ACERT, em Tondela, a sala estava cheia, garante o actor. Em Sangemil a participação não pode ser considerada reduzida, se tivermos em conta que a aldeia tem cerca de 80 pessoas.

Tem receio da reacção do público? Se a conversa com Pompeu José tivesse decorrido depois do espectáculo, esta pergunta ficaria por fazer. “É um risco”, respondia, sublinhando no entanto que a população já conhece o trabalho do Trigo Limpo e isso é uma vantagem. Em Fogo cabem situações que, não reflectindo as ocorrências do dia, se podem relacionar com aqueles momentos aflitivos da vida das pessoas.

“Não procurámos fazer um retrato de uma realidade possível”, refere Pompeu José. O texto foi buscar referências à dramaturgia tradicional e a trabalhos como os de Raul Solnado. Ao palco subiram o hiperbólico aparato mediático, as respostas governamentais caricaturadas e episódios de um bombeiro não menos desconcertante. Abrem-se os rostos e ouvem-se gargalhadas.

Mas na altura “o caso não foi para rir”, diz Armanda Nascimento, 65 anos e moradora na aldeia, que foi assistir ao espectáculo com a filha e com a neta. Nádia, de 37 anos, acrescenta que iniciativas do género ajudam a recuperar. “Não podemos viver sempre com aquelas imagens negativas”, diz, enquanto aconchega a filha de 15 meses ao colo.

Maria Teresa Loureiro concorda. “Isto descontrai muito”. A moradora de 59 anos conta que os incêndios continuam a ser assunto entre a vizinhança. “Às vezes até tentamos evitar”, mas a conversa vai lá dar. No sentido inverso, a peça de sábado foi “um lembrar divertido”.

O mesmo considera Rui Santos, que perdeu a casa aos 35 anos e para quem o 15 de Outubro se mantém bem presente. Mora em Corujeiro, uma aldeia “mais abaixo”, como quem segue o curso do rio Dão, diz, enquanto percorre no telemóvel a galeria de imagens que demonstram o estado em que casa ficou. “Chegou de tarde ou de noite?”, pergunta ao PÚBLICO. Já era escuro. Se tivéssemos chegado de dia, veríamos a Sangemil rodeada de cinzento, ilustra. “Vai ficar nas nossas memórias. É um trauma”. Mas não é por isso que leva a mal que na peça se brinque com o assunto. “Até se devia fazer mais vezes”.

Com o final do espectáculo, a plateia regressa ao café, onde o cheiro a bifanas ainda se mistura com o fumo da lareira que aquece a sala. A partida que poucos viram acabara com mais um golo do FC Porto. Mas também pouco importa. A maioria dos que ali estão, garantem-nos, torce pelo Benfica ou pelo Tondela.

As dores da interioridade

O cartaz que anuncia a peça do Trigo Limpo está suspenso por uma mola num cachecol da selecção nacional, mesmo ao lado de um poster de Cristiano Ronaldo. As paredes mostram também que Sangemil já foi terra de mais gente. Há fotografias emolduradas de equipas de futebol da terra e dos grupos das marchas. Há pouco mais de dez anos ainda eram 200 moradores, recorda António Louro. Há muitos emigrantes entre os 25 e os 30. “Foi a crise, levou muitos”. Depois, “morrem cinco ou dez e não nasce ninguém... É complicado”.

Pompeu José fala da necessidade de “reavivar as salas, que começam a fechar muito. Só vais agarrar as pessoas e fazer com que elas fiquem nos sítios se estes espaços forem vividos”. Neste aspecto, confessa-se “um bocadinho lírico”. Mantém a vontade de fazer teatro na região e acredita que a cultura pode ser um factor de desenvolvimento no interior do país.

Também por isso, este não é o último acto do grupo sobre este tema. Para além do circuito de contos volantes, também pelas aldeias afectadas pelos incêndios, o ciclo iniciado com Fogo vai continuar com mais elementos, Água e Terra.

Já no último dia do mês tem lugar a Queima do Judas, em Tondela. O evento costuma acontecer todos os anos, mas neste assume uma força mais simbólica. “É uma espécie de julgamento de todos os males que ocorreram no ano anterior, que vão ali ser expurgados”, explica Pompeu. Consiste na queima de uma figura bestializada de nove metros, forrada a papel, com folhas de eucalipto por dentro e com uma estrutura de ferro a suportar. Houve quem chegasse a perguntar se a Queima do Judas se faria este ano. “Mas achamos que devemos ter a coragem de continuar. Tendo o fogo como purificador, mas também como o mal que nos assolou”.

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