Administração pública e democracia
A cor política dos funcionários não pode ser a bitola para o seu recrutamento nem para a sua exclusão.
A sociedade portuguesa é, há séculos, eminentemente clientelar (e nisso não é singular). Somos uma sociedade clientocrática — predomina o poder das redes clientelares — e não uma sociedade meritocrática — não predomina o poder dos que fazem melhor.
Na clientocracia, a proteção mútua oferecida em dado grupo aumenta os fatores de confiança, baseados num valor — a fidelidade — e em trocas — dar e receber. Mas esta atitude secundariza e desvaloriza o mérito.
Na meritocracia, o reconhecimento em dado grupo dos que melhor desempenham dada tarefa aumenta os fatores de segurança, baseados no valor da tecnicidade e numa economia competitiva — fazer melhor é melhor. Mas esta atitude contém fatores de exclusão de parte da sociedade.
Idealmente, deve procurar-se uma sociedade inclusiva, que contenha em si, independentemente do mérito, todos os seus membros e que reconheça a importância do mérito no desempenho das diferentes tarefas — a articulação, apesar de complexa, é possível.
E na administração pública? Como referenciar o mérito e a confiança?
Os fatores clientelares têm sido dominantes, também na atividade administrativa do Estado, a nível nacional, regional e local. O critério da confiança — pertença à clientela — é, em geral, mais importante do que o critério da segurança — o mérito do (da) agente.
As teorias de gestão da administração pública e decisões em concreto que procuram valorizar o mérito têm, na nossa democracia, feito caminho. Iniciativas como o SIADAP (Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho na Administração Pública, Lei 66-B/2007) ou a CRESAP (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública, Lei 64/2011), entre outras, são, à partida, contributos para aumentar a importância do mérito. À chegada, nem sempre tem sido assim — ou seja, os resultados dos procedimentos por vezes não correspondem à sua razão e faltam incentivos de progressão nas carreiras e avaliação, em vários domínios da administração. Dito isto, veja-se como está a ser tratada uma situação concreta, acontecida na semana passada.
A diretora regional da Direção Regional de Cultura do Centro (DRCC), de acordo com o PÚBLICO de 6 de março, terá dito, no dia 3: “Vim cá a Leiria porque, por incrível que pareça, não me pediram dinheiro. Como é possível? Ainda por cima na área do teatro! Foi algo que me tocou bastante. É uma lição de como um grupo de teatro profissional, com três atores, que se dedica de corpo e alma ao seu trabalho, vive sem pedir dinheiro, não incomoda a administração central.” De acordo com o PÚBLICO de dia 9, a mesma diretora regional, num comunicado do dia 8, diz que, “em circunstância alguma”, quis “pôr em causa o trabalho desenvolvido por todos os profissionais de teatro, independentemente das formas que encontram para financiar a sua actividade” e que quis “valorizar a forma” como o grupo Leirena Teatro “tem desenvolvido a sua actividade, sem necessitar de qualquer apoio financeiro da administração central, ao longo dos seus quase sete anos de existência”. Sobre esta matéria o ministro da Cultura terá dito que as declarações em causa não têm “a gravidade que lhes estão a atribuir”. “As declarações da senhora diretora, feitas num contexto que não era propriamente público, e como as explica, não me parece terem a gravidade que lhes estão a atribuir.” Na mesma notícia, refere-se que o PCP e o Bloco de Esquerda têm intenção de chamar a diretora regional de Cultura ao Parlamento e que “o Manifesto em Defesa da Cultura e vários artistas lançaram uma petição pública na qual exigem a demissão de Celeste Amaro”.
Até aqui, tudo de acordo com a pluralidade democrática — ou seja, perante declarações (infelizes) da diretora regional da DRCC, houve diferentes reações. O que já não parece muito democrática é a forma como Rui Matoso, no Esquerda.net, também no dia 9, diz que é “indispensável” a “exoneração de Celeste Amaro”. Rui Matoso, tal como eu e tantos e tantas pessoas comprometidas com a importância das políticas culturais, argumenta no seu texto a favor do apoio público às artes. Sobre isso estamos de acordo. Ao contrário do que alguns querem fazer crer, não existe uma “esquerda” que defende a Cultura e uma “direita” que detesta a Cultura (e está ultrapassada a forma como ainda se demarca os campos ideológicos na política partidária). Convém não esquecer que o atual Governo do PS, apoiado pelo PCP e pelo BE, depois de todas as críticas feitas ao orçamento da Cultura entre 2011 e 2015, em 2016... diminuiu o orçamento da Cultura!
Quando Rui Matoso refere Celeste Amaro como “ex-deputada do PSD”, “reconduzida no cargo em Dezembro de 2013”, “por Jorge Barreto Xavier”, no “Governo Passos Coelho”, apesar de referir factos, distorce a realidade. É que, sem o dizer (intencionalmente ou não), esta forma de referir esta dirigente da administração pública sugere que a mesma é um agente político, nomeada de acordo com uma lógica clientelar. Tendo sido nomeada por mim, seria no quadro de uma família política que tal nomeação teria ocorrido, pois, seguindo ainda Rui Matoso, as declarações de Celeste Amaro são parte de um “discurso manipulador da opinião pública, ancorado na direita portuguesa”.
Joaquim Norberto Pires, no passado dia 10, no Diário das Beiras, vai mais longe: “É [...] totalmente incompreensível que, tendo sido nomeada pelo Governo de Pedro Passos Coelho para a DRCC, o atual Governo a tenha mantido no lugar nos últimos dois anos.”
A maioria dos dirigentes da administração pública na tutela da Cultura que nomeei durante o XIX Governo Constitucional eram militantes ou simpatizantes do PS, PCP e BE. Tais nomeações geraram críticas em parte do PSD. Não deixa de ser irónico que se tenha sugerido antes — de forma expressa — que fiz nomeações favorecendo a esquerda e agora, de forma subtil, que as fiz favorecendo a direita. No fundo, não surpreende — o raciocínio clientelar é o dominante, e o que me orientou nas nomeações foi o do mérito.
De formas diferentes, Rui Matoso e Joaquim Norberto Pires dizem que Celeste Amaro tem de se ir embora, não só pelo que disse, mas por ser do PSD.
Em democracia, cada governo, independentemente da sua cor política, está legitimado para cumprir o seu programa e é dever dos funcionários públicos, independentemente da sua cor política, dar-lhe cumprimento, desde que o mesmo não seja contrário à Constituição e à lei. Ao mesmo tempo, a cor política dos funcionários não pode ser a bitola para o seu recrutamento, nem para a sua exclusão — fazê-lo, de forma direta ou indireta, reforça a confiança das clientelas dominantes, mas fragiliza a segurança da administração, que deve estar orientada para o serviço público e valorizar o mérito e não a apropriação do aparelho estatal numa lógica partidária. Esse tipo de apropriação fragiliza a democracia e distancia-nos de um modelo de país equilibrado nos meios e nos fins que se usa para deter/manter o poder.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico