Ver Almada e Amadeo em Madrid com a ajuda de um “íman” chamado Pessoa
Fernando Pessoa é bom a chamar público para as artes plásticas? O Museu Rainha Sofia pôs a ideia à prova e parece que está a funcionar.
Não há os clássicos chapéus pretos nas cabeças dos visitantes como se viu no dia da inauguração da exposição Pessoa: Toda a arte é uma forma de literatura, que abriu no princípio do mês no Museu Rainha Sofia, em Madrid. Não há mesmo pessoas, porque é terça-feira de manhã e o museu está encerrado. Mas como estamos na semana da feira de arte contemporânea ArcoMadrid, tudo é possível e o subdirector do Rainha Sofia, o português João Fernandes, consegue encaixar uma visita guiada para o PÚBLICO na sua agenda mais do que preenchida.
“É uma semana completamente doida, porque chegam 500 convidados profissionais a Madrid”, explica o subdirector, que vem a correr para mostrar esta exposição que tem como objectivo revelar as vanguardas visuais portuguesas aos espanhóis através do poeta Fernando Pessoa. João Fernandes já esteve num brunch em casa de um coleccionador privado, onde participou na apresentação de um livro de artista da brasileira Fernanda Gomes, cuja obra acompanha desde Serralves, o museu de que foi director no Porto. À tarde vai participar no encontro à porta fechada que a ArcoMadrid organiza, todos os anos, entre os directores dos museus do mundo latino-americano.
Fernando Pessoa (1888-1935), que nasceu sete anos depois de Picasso, um dos nomes marcantes das vanguardas do século XX (o ex libris do Museu Rainha Sofia é a sua Guernica), é o fio condutor de uma exposição que junta 160 obras de arte, de cerca de 20 artistas, entre pinturas de José de Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso, Eduardo Viana, Sonia e Robert Delaunay. Mas também telas de Mário Eloy ou de Júlio, a segunda vaga do modernismo português, ou ainda um filme do realizador Manoel de Oliveira, Douro Fauna Fluvial (1931), de que Pessoa terá lido uma crítica. Há muita documentação, principalmente revistas, como a Orpheu ou a Presença, que actuaram como caixa de ressonância das ideias das vanguardas portuguesas.
O ponto de partida é o poeta e os seus heterónimos, os seus múltiplos, Pessoa como um intérprete de excepção da crise do sujeito moderno e das suas certezas. Encontramos logo à entrada a segunda versão do célebre retrato de Pessoa feito por Almada, assim como os três desenhos em que deu corpo aos heterónimos principais (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos). Os quatro trabalhos pertencem à Gulbenkian, que emprestou 56 das obras expostas.
Arte e silêncio
É a uma nota assinada pelo heterónimo Álvaro de Campos, publicada na revista Presença no Verão de 1936, já depois da morte do poeta, que os comissários, o próprio João Fernandes e a espanhola Ana Ara, vão buscar o título da exposição. “Toda a arte é uma forma de literatura, porque toda a arte é dizer qualquer coisa. Há duas formas de dizer – falar e estar calado. As artes que não são literatura são as projecções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda a arte que não é literatura a frase silenciosa que ela contém.” Nas artes visuais, continua Pessoa, esse silêncio expressivo ou frase silenciosa faz-se de linhas, planos, volumes, cores, justaposições e contraposições, “fenómenos verbais dados sem palavras”.
A tese da exposição, ou o que procura dizer, como preferiria Álvaro de Campos, talvez o mais vanguardista dos seus heterónimos, é que tanto Pessoa como estes artistas conhecem e interessam-se pelo cubismo ou pelo futurismo, ou pelas vanguardas europeias, mas optam por fazer um caminho próprio, sem aderirem definitivamente a nenhuma das correntes predominantes dos séculos XIX e XX. Não foram miméticos das inovações sugeridas em Paris, como aconteceu noutros contextos periféricos.
Ao contrário da história oficial das vanguardas, para a qual o Museu Rainha Sofia se preocupa em encontrar alternativas quando pensa a sua programação, João Fernandes vê nestes artistas “uma simultaneidade de linguagens fascinante”, sem a procura de criar um só estilo ou linguagem. Podemos chamar-lhe ecletismo, porque Amadeo num mesmo ano faz coisas muito diferentes: “Não sigo escolas. As escolas estão mortas… Sou impressionista, cubista, futurista, abstraccionista?” Podemos ver uma ambivalência entre o local e o internacional, com um gosto pelo popular, como tão bem observamos em Eduardo Viana ou nos Delaunay. O que mostra como certeza, como escreve Manuel Borja-Villel, director do Rainha Sofia, no catálogo, é que “o modernismo não é homogéneo”. Ou seja, Pessoa, defende a exposição e o catálogo, na sua liberdade e originalidade, “forneceu um modelo programático para os mais activos e inovadores artistas da sua geração”.
Alguns dos conceitos teóricos vanguardistas criados pelo próprio Fernando Pessoa, como o “paulismo” ou o “interseccionismo”, são repescados na própria exposição para agregar as obras de arte e separá-las por secções.
O “paulismo”, o primeiro dos ismos, serve para aglutinar o tríptico A Vida (1899-1901), de António Carneiro – a obra mais recuada da exposição e um exemplo do simbolismo nacional –, mas também o Orfeu nos Infernos (1917), de Santa-Rita Pintor. João Fernandes afirma que Pessoa dá conta de que o simbolismo é a raiz das vanguardas. “Ele percebe, por exemplo, que há uma derivação muito peculiar em Portugal do simbolismo que é o saudosismo, do [poeta] Teixeira de Pascoaes. Esse é o universo que enquadra uma obra simbolista como a de António Carneiro.” O tríptico A Vida, aponta, divide-se nas telas Esperança, Amor e, por último, Saudade.
Ao cubismo de Picasso Pessoa contrapõe o interseccionismo: “Porque o cubismo é uma gramática muito restrita para o Pessoa. E atenção que quando Pessoa fala de cubismo não fala do Picasso, nem do Juan Gris, mas fala de Blaise Cendrars, de literatura. Todas as artes para ele são consequentes da literatura. Daí o título da exposição.”
Inventar protagonistas
João Fernandes defende que Pessoa, tal como os artistas que lhe são contemporâneos em Portugal, cria movimentos em aberto. “Às vezes, quando não encontra protagonistas para eles, inventa-os. Os heterónimos são invenções para preencher um espaço que ele cria com os seus conceitos também.” Os seus “ismos” servem também para mostrar que é capaz de criar as vanguardas que quiser, sem seguir ninguém, dar-lhes nomes tão estranhos como “paulismo”, que significa “pântano”. O maior dos artistas, defende Álvaro de Campos, “será aquele que menos se definir a si próprio” e que for “capaz de escrever em todos os géneros, com mais contradições e discrepâncias”.
A historiadora Marta Soares, que tem um texto no catálogo, já defendeu, numa investigação anterior, aponta João Fernandes, uma aproximação entre o poema-manifesto do interseccionismo de Fernando Pessoa, Chuva Oblíqua, e os planos-paisagens que se cruzam na pintura A Chalupa, de Amadeo, ambos do mesmo ano de 1914.
“Estes artistas e Pessoa estão juntos nas revistas. Há uma contemporaneidade e uma co-presença nelas. Nós queremos que as pessoas vejam as obras em paralelo com o Pessoa. Mas não queremos explicar os conceitos de Pessoa com as obras. Isso seria impossível”, afirma João Fernandes, quando lhe perguntamos se estas obras serão o mais eficaz para falar da obra de Pessoa. O objectivo, sublinha, é o contrário, que Fernando Pessoa dê pistas para ler as obras destes artistas, quase desconhecidos em Espanha, e que o poeta funcione como íman.
Como escreveu o jornal El País quando a exposição foi inaugurada no início de Fevereiro pelo primeiro-ministro, António Costa, e pelos ministros da Cultura dos dois países, é Pessoa “como um embaixador cultural de Portugal”.
Pessoa: Toda a arte é uma forma de literatura, que fica até 7 de Maio, está a ser um sucesso de público, diz o Museu Rainha Sofia, que não dispõe de números específicos para as exposições temporárias.
A jornalista viajou a convite da ArcoMadrid