As democracias morrem lentamente
Vencer eleições a qualquer custo muitas vezes reverte o sentido da própria democracia.
Num livro publicado este mês, intitulado Trumpocracy: The Corruption of the American Republic, o conservador David Frum, que trabalhou com George W. Bush, escreve sobre o perigo que Donald Trump representa para a democracia americana. Segundo ele, o declínio do sistema democrático começou em países como a Rússia, a Hungria, a Turquia e a África do Sul e chegou ao mais improvável dos locais: os Estados Unidos. Em todos estes casos há uma linha comum: a destruição (ou tentativa de destruição) dos mecanismos de limitação do poder dos líderes, tais como as restantes instituições. Para Frum é o que se está a passar de forma discreta na América, acrescentando de modo significativo: “À medida que Trump e a sua família enriquecem, a presidência cai nas mãos dos generais e dos financeiros que o rodeiam”.
A presença constante de Donald Trump na nossa vida parece ter tido como efeito normalizá-lo. Uns acham que ele é o novo Reagan. Outros que ele até tem muitos elementos de continuidade com Obama. E muitos esqueceram um assunto de que tanto se falava há cerca de um ano: a ideia de que a democracia poderia estar em risco com a eleição de um populista para a Casa Branca. À primeira vista a política democrática norte-americana está bem e recomenda-se. Mas um olhar mais atento mostra-nos que dar isso como um dado adquirido é um erro que se pode vir a pagar caro.
A crise da democracia liberal passa por três temas fundamentais que até há relativamente pouco tempo não eram muito debatidos fora das portas das universidades: (1) a importância das instituições democráticas; (2) o papel fundamental dos partidos políticos; (3) a moral na política.
Quanto ao primeiro aspecto, a democracia norte-americana deve merecer-nos um grande respeito. Afinal, as grandes bandeiras eleitorais de Trump, que prometiam transformar o espírito dos EUA — liberal como o conhecemos — foram derrotadas. Os tribunais chumbaram as leis anti-imigração, o Congresso tem negado ao presidente mudanças estatutárias fundamentais como a substituição do Obamacare e os serviços de intelligence têm escrutinado de perto o seu poder e possíveis ligações ilegais à Rússia. Lembre-se que o próprio Donald Trump está sob investigação e já houve demissões de peso relacionadas com este caso.
Outros poderes, alguns sem rosto, têm desempenhado um papel importante: a quantidade de fugas de informação vindas da Casa Branca e de vários órgãos de poder; os republicanos internacionalistas no Pentágono, no Departamento de Estado e no Conselho de Segurança Nacional evitaram manobras mais desastradas; a própria opinião pública tem sido profundamente vigilante, cumprindo a missão que lhes era atribuída pelos Pais Fundadores.
O segundo tema – a ideia de que as mais importantes instituições democráticas são os partidos políticos – está muito bem abordado num estudo recentemente publicado por dois cientistas políticos de Harvard. A propósito dos Estados Unidos de hoje, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt fazem o duplo argumento de que, ao contrário de outros regimes, as democracias morrem lentamente e sem estardalhaço, especialmente quando os partidos políticos deixam de ter uma visão a longo prazo dos destinos do país e passam a despachar diariamente tendo em conta os seus interesses pessoais e/ou partidários de curto prazo. Vencer eleições a qualquer custo muitas vezes reverte o sentido da própria democracia: ganhar votos não significa necessariamente dizer ou fazer o que os eleitores querem ouvir ou ver feito, mas ter a certeza de que as medidas correspondem a visões de longo prazo que podem ser retomadas pela oposição, sem que para isso as questões ideológicas saiam feridas.
Nos EUA de hoje combate-se em muitas frentes: os Republicanos estão profundamente divididos no Congresso e em outras instâncias e os Democratas moribundos depois da presidência de Barack Obama. De parte a parte, criaram-se aversões que afinal foram uma das razões que explicam porque Trump chegou ao poder. E como dizia Lincoln, o herói da América polarizada, “uma casa dividida não pode permanecer em pé”. A polarização americana vai precisar de tempo – e enquadramento para todas as classes sociais – para serenar. E isso depende de uma responsabilidade social que até aqui não parecer ter grandes representantes.
Finalmente, chegamos ao terceiro tema. Diversos países democráticos enfrentam crises de corrupção altamente nocivas para o governo: veja-se o Brasil ou a África do Sul. Mas a ideia da moralização da política, ou da falta dela, tem maior alcance e pode colocar em causa o próprio regime. A ideia generalizada de que as elites perderam o sentido ético e se protegem umas às outras à custa da classe média é incompatível com a democracia representativa. A consequência é a ascensão de partidos e movimentos extremistas e populistas numa vasta geografia que vai dos Estados Unidos até à Europa de Leste. No caso da América, até já existe um novo conceito para traduzir o que se está a passar: populismo oligárquico.
Ainda que de forma diferente, David Frum, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamam a atenção para a necessidade de não tomar o nosso sistema e regime político por garantidos. Como escreveram os segundos, as democracias morrem lentamente e sem estardalhaço.
Professor na Nova FCSH e Investigador no IPRI