A Fábrica da Rua da Alegria: deve o Porto perder este património?
Muitas companhias de teatro transportaram as suas vidas, mudaram todo o material e fazem agora o luto do processo, procurando cada qual uma solução viável para a sua sobrevivência.
Quando, em 2005, um grupo de ex-alunos do curso de Teatro solicitou ao diretor da ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo), Francisco Beja, falecido esta semana, permissão para ocuparem o edifício contíguo à escola, uma antiga fábrica de meias, propriedade do Instituto Politécnico do Porto (IPP), para aí ensaiarem os seus projetos, este não teve dúvidas em dizer-lhes que sim.
O Porto, cidade de malha urbana densa e com grande quantidade de edifícios devolutos, padecia, como ainda hoje padece, pese embora a sua tradição teatral, de espaços adequados e acessíveis ao desenvolvimento dos processos de criação e ensaios. Para os jovens recém-diplomados nas escolas de Teatro, essa era uma dificuldade acrescida.
A volumetria, a área útil e sobretudo as condições de liberdade e usufruto necessárias ao desenvolvimento continuado de projetos de natureza profissional não são compatíveis com espaços onde não se possa criar cenicamente. A construção de um espetáculo implica a presença de um coletivo coeso, dotado de iniciativa e paixão, que requer meios técnicos e logísticos vários, e se desdobra em tarefas o tempo todo, para reinventar vezes sem conta os espetáculos com que presenteia o público nas salas de espetáculo, depois. Esse é o processo de produção; não há como fugir a ele.
Numa cidade com quatro escolas de Teatro, geradoras de novas companhias e coletivos artísticos, há que pensar então em “onde” e “como” criar as condições para o exercício da atividade teatral.
E o Francisco Beja sabia disso. Vinha ele próprio da primeira geração de profissionais de teatro, do pós-25 de Abril, e pensava o desenvolvimento desta atividade no contexto de um Portugal avançado, livre e capaz de se desenvolver em autonomia, mas com o imprescindível suporte público. O seu cosmopolitismo e inserção nas estruturas de ensino artístico, que em redes, formais ou informais, funcionavam como barómetro do sector e dai aferiam da empregabilidade dos seus diplomados, permitiam-lhe a visão e, sobretudo, a coragem política de assumir riscos. Autorizar um condomínio livre, em autogestão articulada com a ESMAE, para fazer as coisas andarem para a frente e não tão devagar.
Evidentemente, o quadro de receitas próprias de pequenas estruturas de teatro, sobretudo as que iniciaram a sua atividade no contexto da crise que assolou Portugal desde então, a par da decisão camarária de encerramento do Teatro Municipal Rivoli, espaço-charneira da cidade, foram determinantes para a perceção de que, ainda que modestamente, era preciso dar alguma segurança ao teatro no Porto.
Por altura da Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, a criação de espaços de ensaio foi equacionada, quer num quartel, quer no Antigo Matadouro Municipal, quer no Cace Cultural do Porto, mas tal solução não avançou, fruto do caráter efémero da iniciativa e sobretudo do pouco legado assumido posteriormente por Rui Rio face à cultura.
Estas foram as razões, a par do facto de o edifício da Fábrica da Rua da Alegria estar desocupado, para que a ESMAE tivesse dado a permissão de tornar a Fábrica num polo, feito de um conglomerado de ideias e práticas artísticas diversas no campo do teatro, do circo, das marionetas, da dança e da música.
Ateliers, ensaios, espetáculos, workshops, conferências, festivais, encontros, reuniões, de tudo um pouco teve a Fábrica da Rua da Alegria. De tal maneira que, ao longo dos anos, a adesão de novas companhias foi tal que o espaço ganhou força de “marca”. De marca da Rua da Alegria, de marca da ESMAE, de marca do IPP, que a acarinhou ao longo destes anos, e de marca para franjas de espetadores expectantes com o que de lá vinha e com o que lá se fazia.
Dezenas de novos espetáculos foram ali criados, espetáculos esses que circularam e circulam na esfera local, nacional e internacional e que garantem a existência de teatro no Porto, a profissionalização de muitos atores, técnicos, produtores, cenógrafos, figurinistas, encenadores e a fruição de muitos públicos, com as mais diferentes motivações culturais. Uma cidade também é isso e essa economia também importa.
Naturalmente, toda as partes envolvidas no processo sabiam e aceitavam o facto de que o projeto “Fábrica” não seria nunca o destino final daquele edifício antigo. No contexto do crescimento da ESMAE e do aumento significativo do número de cursos e alunos, a escola viria a necessitar de aumentar instalações, no dia em que existissem condições financeiras para o fazer.
Doze anos passaram, até que felizmente a hora da requalificação do edifício chegou. Envolvido que estava no processo, o novo executivo camarário mostrou-se favorável a uma solução de criação de uma alternativa, evitando assim o fim do projeto. Nesse contexto, foi cedido ao IPP, pela autarquia, a antiga Escola Primária José Gomes Ferreira, para que aí fosse instalada a Fábrica. De acordo com o coletivo de “operários”, a mesma deveria ter o nome de FICA (Fábrica de Intervenção e Criação Artística).
Surpreendentemente, e de forma inexplicável, o IPP decidiu mudar a missão e a orientação estratégica do projeto, inscrita já em contrato com a CMP, tendo comunicado às companhias a intenção de desenvolver um outro, designado “Porto Performing Arts Center”. O mesmo não contempla o acolhimento dos grupos por mais de um ano e, de acordo com declarações da presidente do Instituto, Rosário Gambôa, ao jornal PÚBLICO de 2/02/18, seriam privilegiados projetos inovadores e experimentais. Esta situação acarreta a exclusão das companhias da Fábrica, que justamente procuram soluções minimamente estáveis de continuidade.
As companhias, à data estabelecida pelo instituto, transportaram as suas vidas, mudaram todo o material e fazem agora o luto do processo, procurando cada qual uma solução viável para a sua sobrevivência. Estamos a falar de 12 companhias e de muitos profissionais, que desenvolvem a sua profissão em articulação de sinergias, porque só dessa forma é possível sobreviver às dificuldades de subfinanciamento público do sector.
Porque a Fábrica se tornou uma espécie de laboratório, por um lado, e centro de recursos, por outro, porque as valências eram partilhadas e as vivências solidárias, pela Fábrica passaram mais de 35 estruturas ao longo de mais de uma década.
Tendo a Fábrica cumprido até agora a missão que o Francisco Beja, antigo dirigente da ESMAE, bem anteviu como necessária, porque as companhias têm poucos recursos e porque o número de salas de ensaio disponíveis na cidade é exíguo, uma pergunta se impõe: deve o Porto perder este património? A minha opinião é que não. Não mesmo.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico