Sim, vivemos num país profundamente corrupto
Já é hora de deixar de acreditar no Pai Natal e enfrentar a triste realidade: a cunha, o arranjinho e o amiguismo são a regra em Portugal.
No momento em que as suspeitas de corrupção atingem o Tribunal da Relação de Lisboa, depois de terem chegado a um ex-primeiro-ministro de Portugal e a figuras de topo da banca e das grandes empresas, se calhar já vai sendo hora de admitir que o país tem um gravíssimo problema com a corrupção, e que combatê-la deveria ser uma prioridade absoluta do Estado e da sociedade no seu todo.
Aquilo que acabo de escrever pode parecer uma banalidade, mas infelizmente não é — e não é porque a crítica à corrupção portuguesa vem sempre acompanhada de uma série de ressalvas piedosas, que me parecem cada vez mais insuportáveis. Ressalvas como: “cuidado com o populismo; não sejamos sensacionalistas; convém não generalizar”. Ora, o meu ponto é precisamente este: convém generalizar. Mais: é fundamental generalizar. E é essencial não confundir a denúncia violenta da corrupção com uma qualquer cedência ao populismo.
O país tem de ser cada vez mais rigoroso nos seus códigos de ética exactamente porque o tráfico de influências é o pão nosso de cada dia. Quando o Ministério das Finanças é vasculhado pelo Ministério Público à procura de favores praticados por Mário Centeno em troca de dois bilhetes para a bola, tudo indica haver uma desproporção enorme entre a gravidade da busca e o ridículo do crime em causa. Eu junto-me àqueles que esperam que as autoridades judiciais tenham andado a explorar algo mais do que um par de assentos no camarote presidencial do Estádio da Luz. Mas isso não significa que Centeno tenha procedido bem. Na verdade, procedeu muito mal, e é crucial que todos tenhamos consciência — a começar pelo ministro das Finanças — de que o país necessita de estabelecer rapidamente um ring-fencing absoluto entre a política e o futebol.
A razão é óbvia: existe uma altíssima probabilidade de os negócios da bola envolverem dinheiro sujo e operações ilegais. Qualquer pessoa que acompanhe o futebol português com um módico de atenção sabe que nem Luís Filipe Vieira, nem Bruno de Carvalho, nem Pinto de Costa são personagens recomendáveis. As instituições a que presidem merecem todo o respeito institucional, mas as suspeitas que recaem, ou recaíram, sobre eles deveriam obrigar todos os políticos eleitos a manterem-se à distância.
Ainda esta semana, Paulo Macedo, presidente da Caixa, recordava uma declaração de 2016 de Subir Lall, antigo chefe de missão do FMI: “Os bancos, de forma geral, não se focam no lucro. Parecem estar muito mais concentrados numa actividade bancária assente nas relações.” Esta prioridade dada às relações deve ser extrapolada para quase tudo em Portugal, e certamente para as amizades entre presidentes de clubes, políticos, banqueiros e juízes.
Luís Filipe Vieira recebe zero euros de ordenado do Benfica, cargo que ocupa há 14 anos. A sua justificação: “O lugar de presidente do Benfica não é um cargo, mas sim uma missão que deve ser desempenhada em regime de voluntariado.” Explicação linda — mas que não convence nem a águia Vitória. Um empresário só pode estar há década e meia a trabalhar de manhã à noite por zero euros se as vantagens indirectas forem milionárias: influência, poder, crédito, ou, para citar Subir Lall, “relações”. Toda a gente sabe isto. Toda a gente vê isto. Já é hora de deixar de acreditar no Pai Natal, acabar de uma vez por todos com a conversa do populismo, e enfrentar a triste realidade: a cunha, o arranjinho e o amiguismo são a regra em Portugal. Não são a excepção.