Eu quero Maria lembrada no Parlamento
Temos feito menos para encarar este problema de frente do que aquilo que fizeram outros países europeus. Talvez porque a indignação da comunidade ainda não se tenha ativado a sério.
Não sei o nome completo, nem sei o nome verdadeiro dela. No PÚBLICO chamaram-lhe Maria, assumindo que o nome fictício servia para proteger a identidade da vítima. Noutros órgãos de comunicação social chamaram-na de Laura, ignorando eu se era esse o verdadeiro primeiro nome dela.
Só sei que era uma concidadã minha, uma concidadã nossa, e que morreu assassinada pelo marido — de quem se encontrava separada — em 4 de novembro de 2015, em Valongo, no Porto. Maria foi assassinada 37 dias depois de ter feito queixa do seu marido ao Ministério Público por violência doméstica, tendo deixado claro que este lhe dirigia ameaças de morte (“vou-te matar!”, dizia ele). Passou mais de um mês até que Maria fosse chamada de novo a pormenorizar as suas queixas. Um mês em que Maria viveu no medo e durante o qual teve de ouvir novas ameaças, que de novo transmitiu ao Ministério Público: “rebento-te a cabeça se fizeres queixa de mim!”. Depois desse segundo testemunho, Maria voltou a casa. O marido desavindo estava escondido no quintal e matou-a à paulada. No dia seguinte, foi finalmente chamado ao Ministério Público e constituído arguido. Maria já estava morta e o Ministério Público não sabia. O corpo foi só encontrado três dias depois.
Como é que se costuma dizer? “O Estado falhou aos cidadãos”, não é? Pois é, o estado falhou a Maria. A justiça falhou a Maria. Deixou-a desprotegida durante mais de um mês. Deixou-a em pânico. A autópsia revelou que ela tomava tranquilizantes. É difícil, é desconfortável imaginar o medo em que esta mulher viveu durante um mês. Mas é necessário fazê-lo para que nos compenetremos da enormidade do nosso falhanço coletivo para com Maria e para com todas as vítimas de violência doméstica.
Sim, foi mais do que o eestado e o Ministério Público a falhar com Maria. Fomos todos nós a falhar. Somos todos nós a falhar. Continuaremos todos nós a falhar enquanto, como disse ao PÚBLICO o procurador Rui Carmo, não se “ativar a indignação da comunidade”. Ele tem razão. A indignação da comunidade tem de ser tal que não volte a passar pela cabeça ao Ministério Público reenviar para casa uma mulher sob ameaça de morte sem que lhe fosse atribuído o estatuto de vítima. A indignação da comunidade tem de ser tal que não passe pela cabeça aos políticos e a todos os governos, presentes e futuros, deixar a polícia e a justiça sem meios para proteger as vítimas de violência doméstica, em particular as que tiveram coragem para relatar que receberam ameaças de morte.
Portugal tem, como outros países, um problema crónico de violência doméstica, de que são vítimas quase sempre mulheres, muitas vezes crianças, às vezes homens também. E temos feito menos para encarar este problema de frente do que aquilo que fizeram outros países europeus. Talvez porque a indignação da comunidade ainda não se tenha ativado a sério. Talvez porque seja difícil lembrar as vítimas e porque seja tentador não olhar e seguir em frente. Mas esquecer as vítimas é uma indignidade que se paga caro — com mais vítimas.
Reitero a proposta que fiz nestas páginas há alguns meses. É necessário que, a exemplo do que se faz noutros parlamentos, a Assembleia da República lembre as vítimas de violência doméstica nas suas sessões plenárias, no momento em que estiverem presentes mais deputados. Será desconfortável para todos escutar, uma e outra vez, os nomes ou as circunstâncias das agressões muitas vezes fatais de que são vítimas tantas das nossas concidadãs. É precisamente por ser desconfortável que precisamos que os nossos representantes eleitos lembrem as vítimas como Maria de cada vez que for necessário. Porque aí pode ser que as leis melhorem, a ação seja mais eficaz e os meios aumentem, e que algum dia passe um ano inteiro ou mais ainda sem que a Assembleia tenha que ouvir que morreu mais uma vítima de violência doméstica depois de ter tido a coragem de relatar à justiça que estava sob ameaça de morte.