Da “descrispação” à “misericórdia”, passando pelo “erro de percepção mútuo”
Da “descrispação” ao “paiol” e ao “erro de percepção mútuo”, foram várias as palavras e expressões que nos mereceram atenção (e irritação), semanalmente, no caderno P2 do PÚBLICO. Com a ajuda de dicionários, descodificámos ainda “poder”, “medo” e “soberba”. Fomos forçados a definir “incêndio”, mas também “resiliência”, com a “floresta” no pensamento. Cinquenta e uma semanas de “Palavras, expressões e algumas irritações” para revisitar
JANEIRO
Descrispação
8 de Janeiro
É difícil de pronunciar, quase ao nível dos “três tristes tigres”, mas seria esta palavra, “descrispação”, que o Presidente da República escolheria para resumir o ano de 2016.
Ficámos a sabê-lo depois de a Porto Editora informar que “geringonça” tinha sido eleita como Palavra do Ano por milhares de portugueses. “Eu escolheria ‘descrispação’. Acho que o ano de 2016 foi o ano da descrispação”, disse Marcelo. “Mas escolhe quem pode.”
Na verdade, ninguém podia, pois o vocábulo não estava a votação nem está registado. Nem tinha de estar. Não se pode esperar que os dicionários reproduzam todas as derivadas por prefixação de negação.
Traduzindo: “des” é um elemento de formação de palavras, de origem latina, que exprime as ideias de “negação”, “falta” e “acção contrária” (desumano, desaconselhável, desleal). Quando se junta “des” a “crispação”, nega-se esta última, que significa “acto ou efeito de crispar, de se enrugar uma superfície por acção do frio, do vento, do calor” ou “contracção muscular, acompanhada de espasmo, geralmente de origem nervosa”.
Certamente que Marcelo não estaria a referir-se a condições atmosféricas ou espasmos faciais, mas a situações de “tensão” e “agressividade” — os sentidos figurados de “crispação”.
Traduzindo: agora a Presidência da República dá-se bem com o Governo e as esquerdas dão-se bem umas com as outras. Tudo bons rapazes (com algumas raparigas).
Há outra palavra com o prefixo latino “des” que se vulgarizou nos meios comerciais e financeiros. A saber: “descontinuado”. Uma maneira suave (e irritante) de se dizer que algo foi interrompido ou já não existe mesmo.
Poderíamos importá-la para o cenário político: será que a oposição foi “descontinuada”?
Obrigado, obrigada e… obrigados
15 de Janeiro
No sentido de “agradecimento”, é raro a palavra “obrigado” surgir em títulos de jornais. Mas na semana que passou foram vários os cronistas que a usaram e os jornalistas que a reproduziram da voz dos políticos. Disseram-na em homenagem ao ex-Presidente da República Mário Soares, durante as cerimónias fúnebres.
A “gratidão” expressa reportava sobretudo à conquista da liberdade e da democracia.
“O meu obrigado pelo que fez por mim” é uma das frases que o dicionário escolhe para ilustrar este substantivo masculino, que também pode ser adjectivo. Aí a expressão sugerida é: “Estou-lhe muito obrigado pela gentileza.”
Palavra de origem latina (obligatu) e particípio passado do verbo obligare, quer dizer “ligar, empenhar, comprometer”. Como se explica no Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, “perante um favor, fica-se obrigado(a), sem que ninguém obrigue ninguém”.
Emprega-se interjectivamente “obrigado” ou “obrigada”, “muito obrigado” ou “muito obrigada”, de acordo com o sexo de quem profere. As mulheres dirão “obrigada”, os homens dirão “obrigado”.
Nesta linha, também se pode formar plural com dois géneros, “obrigados” e “obrigadas” (que se vulgarizou, mas soa forçado). “Obrigados” utilizado por um grupo de falantes do sexo masculino ou feminino e masculino. “Obrigadas”, por um grupo de falantes do sexo feminino.
Há uma expressão bonita para expressar reconhecimento, mais usada a norte, “bem haja”. Em Trás-os-Montes, “obrigado” também signifca o “indivíduo que arremata o fornecimento de carnes verdes”.
Descobrimos que existe o Dia Internacional do Obrigado, aparentemente com origem nas redes sociais. Assinalou-se na quarta-feira, 11 de Janeiro. Coincidências.
Tomada de posse
22 de Janeiro
“Tomar posse” corresponde a “ser formalmente investido num cargo ou função”. Na sexta-feira, realizou-se a “investidura e cerimónia correspondente” de Donald Trump no cargo de Presidente dos Estados Unidos da América.
Deu-se notícia da presença de 800 mil pessoas frente ao Capitólio para assistir ao juramento do 45.º homem eleito para ocupar a Casa Branca. Também estiveram presentes convidados sem grande apreço pelo (agora) político.
As comparações com as “tomadas de posse” de Barack Obama foram inevitáveis, nomeadamente quanto aos índices de popularidade nesses momentos. Numa sondagem da ABC News e do Washington Post ficou a saber-se que “apenas 40% dos americanos vêem Donald Trump favoravelmente”.
Sondagens equivalentes “deram a Obama 79%”. Havia muita expectativa em relação ao discurso de Trump, que se pode resumir na frase: “A América primeiro.”
O Presidente quer devolver aos EUA “a força”, “a prosperidade”, “o orgulho”, “a segurança”. Isto é, “a grandeza”. Trump incitou a “comprar americano, contratar americano” e disse: “Não estamos apenas a transferir o poder de uma Administração para outra, de um partido para outro, mas de Washington DC para vocês, o povo.”
Mais: “Os políticos prosperaram, mas vocês não.” E prometeu erradicar o terrorismo islâmico radical da face da Terra.
“Tomar posse de” quer dizer “apropriar-se de alguma coisa” ou “invadir”.
Obama sentiu necessidade de fazer uma última declaração: “Nós fomos apenas, eu e a Michelle, o vosso homem e a vossa mulher da frente, mas isto nunca foi sobre nós, foi sempre sobre vocês.”
Terminou dizendo que “isto não é um ponto final, é uma vírgula na construção da América”. Mas o receio “tomou posse de” nós.
TSU e PEC
29 de Janeiro
TSU é uma sigla perfeita. Ou seja, a cada inicial corresponde uma palavra: T (taxa) S (social) U (única). Diz o dicionário sobre siglas: “Redução de uma palavra ou de um grupo de palavras às suas iniciais; forma reduzida de designar, por exemplo, partidos, clubes e associações.” Em matéria de perfeição, fica-se por aqui.
“Taxa” significa “contribuição mensal, percentagem, tributo”. No caso da taxa social única, que o Governo pretendia baixar do lado das entidades patronais e que o Parlamento não aprovou, surge a definição: “Contribuição mensal para a Segurança Social que incide sobre o salário de cada funcionário e que deve ser paga por este e pela empresa onde trabalha.”
Em 2012, a proposta era: aumentar de 11% para 18% os descontos dos trabalhadores e reduzir de 23,75% para 18% a parte dos empregadores. E o povo saiu à rua. A ideia não passou.
Em 2017, a proposta foi: reduzir a TSU das empresas de 23,75% para 22,5% como moeda de troca para o aumento do salário mínimo nacional — de 530 para 557 euros. E o povo ficou em casa. Mas a ideia não passou.
Para compensar a desdita, recuperou-se outra sigla, PEC (pagamento especial por conta). Em rigor, um acrónimo, que o dicionário traduz por “sigla ou amálgama pronunciada como uma palavra corrente”.
NATO é um acrónimo, já que, quando a referimos, não dizemos “ene, á, tê, ó”. Também não falamos em “pê, é, cê”, mas sim em PEC. Será este o acrónimo salvador da pátria e de Costa, por cem euros à cabeça. Uma redução de 850 para 750 em Março, abrangendo 122 mil empresas. Com a promessa de ser extinto em 2019.
A TSU foi chumbada pela amálgama “pê, cê, pê + bê, é + pê, esse, dê”, todos contra o “pê, esse”.
O povo percebeu a ideia. Segue novo capítulo, com as siglas UGT e CGTP. Perfeitas.
FEVEREIRO
Eutanásia
5 de Fevereiro
“Morte serena e sem sofrimento.” Esta é a primeira definição do dicionário e a última vontade de todos nós. De origem grega, euthanatos desdobra-se em eu (bom) e thanatos (morte). Ou seja, “morte boa” ou “morte santa”. Esta expressão usada mesmo por quem não acredita no Além.
Outra explicação: “Prática pela qual se procura antecipar ou provocar a morte de um doente incurável ou terminal, para lhe abreviar a agonia ou para o poupar a um sofrimento excessivo.”
A “eutanásia” foi debatida no Parlamento. Segundo a Associação Europeia de Cuidados Paliativos, deve distinguir-se “eutanásia” de “sedação paliativa” do doente terminal. Nesta, “o objectivo é aliviar o sofrimento, através da utilização de fármacos sedativos ministrados para controlo do sofrimento perante sintomas refractários”; naquela, “a intenção é tirar a vida do doente, administrando-se um fármaco letal”.
Para o presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, Manuel Luís Capelas, há “o perigo” de o doente procurar “a fuga mais fácil para resolver o seu sofrimento”.
A poeta Ana Luísa Amaral perguntou: “Tal como o direito a uma vida de paz e digna, vida de viver, deveria ser um direito a todos comum, não deve haver também direitos para quem deseja, em paz, pôr termo a uma vida que deixou de ter dignidade de vida vivida?”
Francisco Rodrigues dos Santos, da Juventude Popular, considerou “uma fraude” a utilização “do termo ‘morte assistida’”.
Da parte dos cidadãos, não houve grande interesse na questão da morte, preocupados que andam com as suas vidinhas. Têm esse direito. Também encontrámos “morte doce e fácil”. Assim seja.
Jogo
12 de Fevereiro
Palavra rica em significados e que também pode resultar em ficar-se rico. Lícita ou ilicitamente. A semana começou com irregularidades no “jogo”, leia-se apostas, à volta do “jogo”, leia-se desafio de futebol. No caso, Feirense-Rio Ave.
Diz o dicionário: “Actividade física ou intelectual que é sentida por quem nela participa como uma diversão, um passatempo, uma brincadeira.” Continuando: “Essa actividade, mas sujeita a regras e em que os participantes ganham ou perdem.” Exemplo final descrito: “Fazer batota ao jogo.”
Bastante sensibilizados para o assunto da “batota”, os seis partidos representados no Parlamento aprovaram juntos, numa rara unanimidade, três projectos de lei na generalidade, em que se prevê uma pena de prisão de um a oito anos para “o corruptor passivo — o jogador, treinador ou dirigente — que aceitar vantagem para um qualquer acto ou omissão destinada a alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva”.
Bem jogado. Infelizmente, a semana terminou com um episódio triste numa outra competição da mesma modalidade. “Angola: pelo menos 17 mortos em jogo do campeonato de futebol”, noticiou-se.
Os adeptos terão forçado a entrada no estádio do Uíje. O presidente do clube culpa a polícia e começa o “jogo do empurra”, que se traduz por “atitude de se esquivar à responsabilidade, remetendo o caso a outrem que, por sua vez, adopta o mesmo procedimento”.
Há várias expressões com este substantivo masculino, ora no singular ora no plural, e que são muito claras: “jogo limpo”, “jogo sujo”, “jogo de palavras”, “jogos amorosos”, “fazer o jogo de alguém”, “jogo duplo”, “jogos de bastidores” ou “jogos de influências”. Lícitos ou ilícitos.
Erro de percepção mútuo
19 de Fevereiro
Podia ser uma frase de reconciliação conjugal, numa semana em que muito se falou de amor. Mas não é de mensagens de São Valentim que se trata nem da chegada a um entendimento entre apaixonados.
Este “erro de percepção mútuo” terá decorrido de “falhas” de comunicação, sob várias formas de comunicação (perdoe-se o pleonasmo), entre o ministro das Finanças, Mário Centeno, e o ex-presidente da Caixa Geral Depósitos António Domingues.
Conversas, cartas, sms, emails e notificações não teriam sido suficientemente claros para firmar o compromisso de que a direcção da Caixa Geral de Depósitos não seria obrigada a apresentar as declarações de rendimento e património ao Tribunal Constitucional.
Já a informação sobre a alteração do estatuto do gestor público parecia mais límpida (pois garantiria a outra). “Erro”, nesta acepção, significa “engano”, “equívoco”, “falso juízo”. Mas tendemos a inclinarnos para “erro de palmatória”, que é “um erro grave, que merece castigo, severa repreensão”.
No entanto, o protagonista foi salvo pelo défice. Parece que Centeno “falha” menos na matemática do que nos acordos. No cálculo, “erro” traduz-se por “valor absoluto da diferença entre o valor exacto e o calculado ou registado por observação”.
Entre a ética e a matemática, António Costa fez a sua escolha. Marcelo Rebelo de Sousa, também. Como nas relações amorosas, o Presidente sentiu-se traído (terá sido o último a saber...) e divulgou uma nota acintosa.
Era uma vez a “descrispação”. Se os casais justificam a não ruptura em nome da felicidade da prole, a preocupação do Governo e da Presidência foi toda “para os portugueses”.
Ainda assim, o Dia dos Namorados, terça-feira, amanheceu com o fim do idílio.
Falhar
26 de Fevereiro
“Não funcionar ou funcionar mal.” É a quinta explicação que o dicionário oferece para o verbo “falhar”. E dá um exemplo: “O motor está a falhar.” Algo também terá “falhado” no controlo das transferências para offshores em 2014, algo como 10 mil milhões de euros. Coisa pouca.
“Problemas nos procedimentos e nos mecanismos informáticos” foi uma das justificações. O montante terá sido comunicado aos bancos e à Autoridade Tributária e Aduaneira, mas ter-se-á perdido no fisco. E, afinal, as “lacunas” viriam já de 2011.
“Falhar” também quer dizer “deixar de cumprir ou de atender a uma obrigação”. Como a de publicar estatísticas que envolvem os “paraísos fiscais” ou de explicar o motivo por que tal não aconteceu. Paulo Núncio, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, diz não ter tido conhecimento do não tratamento de dados.
“Falha” de comunicação, de memória? O substantivo feminino “falha” quer dizer “omissão” e “falta”. Como na expressão “se a memória não me falha...”.
Em geologia, corresponde a uma “fenda”, ou seja, “fractura das camadas geológicas, acompanhada por deslocamento dos blocos separados”. Dá para belas metáforas de separação e ruptura. “Não corresponder às expectativas” também é uma forma de “fracassar”.
Exemplo do dicionário: “A nossa estratégia falhou.” Também se pode “não acertar no alvo”, e aí vem outro exemplo: “O tiro falhou o pombo.” Não sabemos se terá sido erro táctico ou de pontaria, mas houve vários “falhanços” nesta história mal contada.
Quem não falha há 18 anos é o Correntes d’Escritas da Póvoa de Varzim, que voltou esta semana a encher a cidade de escritores e leitores. Um encontro literário internacional pioneiro no país. E onde as histórias são sempre bem contadas.
MARÇO
Carrancudo
12 de Março
Todos saberão o que é um “carrancudo” e nem precisam de sair do universo da Presidência da República para identificar um ou outro. “Que tem semblante caído como carranca medonha e feia”, “que denota mau humor”, eis como os dicionários descrevem este adjectivo masculino.
Não escolhemos o rosto que nos saiu em sorte, mas sim o uso e expressão que fazemos dele. O actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, escolheu ser sorridente e afectuoso. Uns gostam, outros não.
“Não está escrito que tinha de ser carrancudo”, disse o cientista político António Costa Pinto sobre o seu desempenho no primeiro ano de presidência. “Este é o meu estilo, com este Governo ou com outro”, disse Marcelo. Acredita-se. Afinal, é um político de carreira e, com o alargado tempo de antena que sempre teve, os portugueses já o vão conhecendo.
Na linguagem popular, “trombudo” também é sinónimo de “carrancudo”. Neste primeiro ano como Presidente, houve só duas vezes em que o vimos realmente com “cara de poucos amigos”. Foi no caso Domingues/Centeno/Costa/Caixa Geral de Depósitos e no do cancelamento da conferência de Jaime Nogueira Pinto na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
“O Presidente da República é o guardião dos direitos constitucionais. Entre eles, a liberdade de expressão. Por isso, para mim, é incompreensível uma decisão daquelas por parte de uma instituição pública, como é uma faculdade pública”, declarou esta semana sobre o assunto.
Mesmo quando a questão é grave e séria, não podemos dizer que Marcelo surja com ar “cenhoso”, isto é, mostrando “rosto severo”.
Em situação normal, nada tem de “antipático”. Uns gostam, outros não. Vai uma selfie?
Marquês
19 de Março
Substantivo masculino que corresponde a “título de nobreza entre o de conde e o de duque”. Ainda que não se lhe reconheça qualquer título nobiliárquico, desde 2014 que, quando se fala em “marquês”, o pensamento vai imediatamente para José Sócrates, a que se associa de pronto a palavra “operação”.
A Polícia Judiciária, sempre imaginativa nas designações dos seus trabalhos (Apito Dourado, Remédio Santo, Irmãos Metralha, Tupperware, Carta Fora do Baralho), chamou Operação Marquês à investigação sobre Sócrates. Logo na altura, mesmo sabendo que a expressão decorria da proximidade do apartamento do ex-primeiro-ministro à rotunda lisboeta,
Rui Tavares escreveu: “É um nome muito mal escolhido — e só não é pior porque talvez só os historiadores dêem por isso. Houve de facto, há 230 anos, um célebre ‘processo do Marquês’.”
Para concluir perto do final do artigo: “Sócrates não é Pombal. E sobretudo porque o processo do Marquês, há 230 anos, foi o epítome do que este não deveria ser: uma amálgama de sentimentos, arrogância de um lado e desejo de vingança do outro, divisão do país em duas metades incomunicáveis que se foram guerreando, sob diversos disfarces, nas gerações seguintes. O país não saiu regenerado, nem melhor. Pombal nem bem condenado, nem inocentado.”
Um dicionário antigo e amarelecido oferece-nos mais informação sobre “marquês”: “Senhor que, antigamente, comandava a guarda das marcas ou fronteiras de um Estado.” Terão os envolvidos na Operação Marquês passado das marcas? Fronteiras transpuseram — e estamos só a falar de geografia.
Sabia o leitor que se chama “marquês” a uma “casta de uva preta do Minho”? Este “nobre”, sim, garantem-nos que é honesto.
Metáfora
26 de Março
“Figura de estilo que consiste em alterar o sentido habitual de uma palavra, aplicando-a a uma outra realidade, através de uma relação de semelhança, de uma analogia implícita.”
Exemplo do dicionário: “Esta miúda é uma flor de estufa.” Exemplo do líder do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem: “Não posso gastar o meu dinheiro todo em copos e mulheres e depois ir pedir a vossa ajuda. Este princípio vale para o nível pessoal, local, nacional e também europeu.”
O político diz que usou uma “metáfora” para explicar ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung “a relação entre os países do Norte e os do Sul da Europa”. Foi infeliz, no mínimo.
Dijsselbloem afirmou ter “um estilo directo”, lamentou “se alguém se sentiu ofendido” e justificou-se com a “rigorosa cultura holandesa”. Esqueceu a “tradição festiva” de Amesterdão (isto é uma metáfora).
O Governo português pediu o seu afastamento. António Costa reagiu: “Estas declarações são absolutamente inaceitáveis. São também muito perigosas, porque demonstram bem qual é o perigo do populismo e que o populismo não está só naqueles que têm coragem de assumir que o são. Está também naqueles que aparecem com pele de cordeiro, porque fazem discursos que são racistas, xenófobos e sexistas.”
Segundo a Reuters, o ministro das Finanças holandês declarou: “Percebo que isto não seja bem compreendido e apreciado noutros lugares na Europa.” Vá lá, percebeu o disparate.
Com tal nível de discurso, soubera o “metaforista” mais sobre expressões idiomáticas e não hesitaria em usar a frase portuguesa que termina em “vinho verde” e ressurgiu nas redes sociais por estes dias. Também infeliz da nossa parte.
“Metáfora” vem do grego metaphorá (“transporte”). O conhecimento a nascer no Sul.
ABRIL
Explosão
9 de Abril
Substantivo feminino que significa “reacção química rápida e violenta, acompanhada de forte libertação de energia, manifestando-se sob forma mecânica, sonora e luminosa”. O dicionário dá um exemplo: “A explosão de uma bomba.”
Foi uma semana cheia de explosões. Por esta ordem: em São Petersburgo (Rússia, no metropolitano), em Lamego (Portugal, numa fábrica de pirotecnia) e em Shayrat (Síria, numa base aérea).
Com “explosivos” de natureza e proporção diferentes, assim como intenções diversas (terrorismo ou retaliação) ou irresponsabilidade (falhas de segurança), o resultado é sempre o mesmo: destruição e morte. Para quem escapa, tristeza e revolta.
Em Estocolmo, os “explosivos” encontrados no camião usado como arma não chegaram, felizmente, a produzir efeito.
Escreveu Domingos Lopes no PÚBLICO: “O terrorismo no Ocidente é brutal e hediondo; o mesmo ocorre em S. Petersburgo ou em Moscovo. Onde quer que aconteça. Nenhum tem qualquer espécie de justificação e as condenações devem assumir as mesmas dimensões políticas, éticas, religiosas, emocionais e psicológicas.” E alertava para o tratamento mediático diferenciado quando as vítimas não são “bem as nossas”.
Num sentido mais metafórico, “explosivo” tem estado o ambiente no desporto (melhor dizendo, no futebol), pela violência entre jogadores, contra árbitros e entre adeptos e polícia. Exemplo maior, o do jogador do Canelas 2010 Marcos Gonçalves, que partiu o nariz ao árbitro José Rodrigues. Agora, o “Orelhas” é ex-jogador e arguido.
Pena que tais agressões aconteçam numa das modalidades que mais proporcionam “explosões de alegria”. E o mundo (também) precisa disso.
Paixão
16 de Abril
Palavra de origem latina, passione, que se traduz por “acção de suportar”, “acção de sofrer”. Na religião católica, grafa-se com maiúscula e o icionário atribui-lhe três significados: “Sofrimento e humilhação impostos a Jesus Cristo, antes da sua morte”; “relato da Paixão de Cristo nos Evangelhos (‘A Paixão segundo S. Mateus’); obra artística, dramática ou musical que tem por tema a Paixão de Cristo”.
Hoje é domingo de Páscoa, que corresponde justamente à “festa cristã para celebrar a paixão, a morte e a ressurreição de Cristo”. Os judeus comemoram nesta altura “a saída do Egipto”.
Num registo mais antigo, logo denunciado pela linguagem, “paixão” surge como “conjunto de tormentos que Jesus padeceu desde que foi preso no horto até que expirou na cruz”.
Fora do contexto religioso, espera-se que todos saibam o significado de uma “paixão” (e que a tenham já experimentado): “Sentimento de amor muito intenso, que cria obsessão em relação ao objecto de desejo e perturba a lucidez da razão.” Exemplo: “A paixão de Pedro e Inês.”
Quando é “levada aos extremos”, diz-se “assolapada”. Noutro sentido, inclinação ou preferência desordenada por alguma coisa”, o mesmo que “loucura”. Exemplo: “A paixão pelo jogo levou-o à ruína.” Ou ainda “aquele ou aquilo que é objecto de grande amor ou afeição”, “enlevo”, “entusiasmo”.
Mais um exemplo: “Ele foi a grande paixão da sua vida.”
Descobrimos um significado inesperado por terras de Aveiro, “cada uma das estacas em que se arma o botirão”, que é um utensílio para a pesca da lampreia.
É por isso que a nossa “paixão” pelas palavras continua.
Vacina
23 de Abril
Diz um dicionário enciclopédico que “vacina” é um “produto biológico preparado pelo homem com a finalidade de dar protecção aos indivíduos contra doença infecto-contagiosa”. Já sabíamos, mas quisemos confirmar.
Um dicionário comum diz mais: “Substância preparada com microrganismos patogénicos, mortos ou atenuados, que se introduz no corpo de uma pessoa ou de um animal para provocar a produção de anticorpos contra determinado agente infeccioso.” Era mais ou menos o que se previa encontrar ali. Já o exemplo parecia encomenda: “Tomar a vacina contra o sarampo.”
Por estes dias, soube-se que, em Portugal, mais de 95 mil crianças e jovens não estarão vacinados contra o sarampo e que haveria 21 casos de contaminação com esta doença. Pior foi a informação da morte de uma jovem de 17 anos não imunizada por ter feito alergia grave a outra vacina durante a infância. “Terá sido contagiada por um bebé de 13 meses, que também não estava vacinado”, noticiou-se.
Integrada no Plano Nacional de Vacinação, a vacina contra o sarampo é ministrada em conjunto com a imunização contra a parotidite (papeira) e contra a rubéola – uma tríplice identificada pela sigla VASPR.
“A doença, que estava praticamente desaparecida em Portugal desde 1994 e cuja eliminação tinha sido reconhecida pela Organização Mundial da Saúde no Verão do ano passado, está agora a reaparecer”, informou-se.
E fica-se pasmado com a decisão de alguns pais de não vacinarem os filhos, pondo-nos a todos em perigo, desprezando anos de investigação científica e milhares de mortos ao longo de séculos. Negligentes? Ignorantes? Alternativos?
Poderão sempre alegar que são “maiores e... vacinados”. Graças aos pais, que os imunizaram no tempo certo.
MAIO
Forte
1 de Maio
Só na quarta entrada do dicionário para “forte”, conseguimos chegar ao sentido que queríamos partilhar aqui. Ei-lo: “Obra de terra, alvenaria, cimento, betão armado, etc., rodeada ou não de fossos, de canhões e de metralhadoras em casamatas ou cúpulas couraçadas, e destinada a proteger uma cidade, um passo, a dominar uma posição para impedir o avanço do inimigo.”
Pensamos no “forte” de Peniche, que em rigor se designa “fortaleza”. E se a definição remete para um inimigo exterior, a memória remete para um inimigo maior lá dentro.
Ficou a saber-se esta semana que aquele espaço se transformará no Museu Nacional da Resistência contra a Ditadura (nome provisório), sendo o 15.º da Direcção-Geral do Património Cultural. “O museu e a valorização da fortaleza, onde ficará instalado, viram ser-lhes atribuída, num Conselho de Ministros especial, uma verba de 3,5 milhões de euros para a recuperação de todo este monumento nacional e para o respectivo projecto museográfico”, noticiou-se.
“Forte” também significa “firme”, “valoroso”, “corajoso”, “ousado”. Características que podem ser atribuídas aos presos políticos que conheceram a fortaleza nas piores circunstâncias das suas vidas. Alguns continuam “corajosos”, já que aceitaram revisitar as celas que em tempos ocuparam, guiando governantes no dia em que se comemoraram 43 anos da libertação dos últimos presos políticos de Peniche, 27 de Abril.
Um deles, Gaspar Barreira, só há poucos anos deixou de ter pesadelos em que continuava preso. Ainda assim, disse: “Não gostava que isto fosse uma coisa dos coitadinhos, um muro das lamentações.” Defendendo que se tornasse um “lugar vivo”. É preciso ser-se “forte”.
Debate
7 de Maio
Um “debate”, segundo o dicionário e também a nossa expectativa, corresponde a “análise de um tema, assunto ou problema, que pressupõe uma discussão durante a qual os participantes apontam os seus pontos de vista”.
Mas o que se passou esta semana no “frente-a-frente” entre os candidatos Marine Le Pen e Emmanuel Macron à presidência francesa, que se decide neste domingo, correspondeu mais a outros sentidos para o mesmo vocábulo: “altercação”, “contenda”, “peleja”.
“Nunca houve um debate assim em França, tão agressivo”, escreveu-se, a partir das palavras de Bruno Cautrès, investigador do Instituto Sciences Po. Para os comentadores políticos, “foi difícil de ver”. Para quem não quer deixar de acreditar na humanidade civilizada e na democracia, a “discussão” levou a sentimentos de vergonha e desconsolo. Demasiados insultos e mentiras (soube-se depois) e nada mediados pelos jornalistas presentes.
Bárbara Reis escreveu — no artigo de opinião “Debater ou não com a extrema-direita, eis questão” — que “Marine Le Pen não pode ser subestimada. E não deve ser deixada a falar sozinha”. Tem razão.
O especialista em assuntos internacionais Jorge Almeida Fernandes intitulou o seu texto sobre o debate “Merci, Marine Le Pen”, como uma possível e sincera homenagem dos seus adversários, já que, afirma, a candidata “assumiu brutal e agressivamente um rosto de extrema-direita” e “destruiu em duas horas o que levou anos a trabalhar: a sua estratégia de ‘desdiabolização’”. Também tem razão.
Macron foi mais contido e saiu-se bem melhor, o que não faz dele um santo. Espera-se um verdadeiro “debate” sobre os seus planos um pouco mais adiante.
Tolerância
14 de Maio
De origem latina (tolerantia), este substantivo feminino significa “condescendência”. Desenvolvendo um pouco, “acto ou efeito de tolerar, de suportar excessos com paciência e indulgência”.
Muitos discursos recorrem à palavra “tolerância” como se se tratasse de um sentimento nobre e sinónimo de “aceitação”. Não nos deixemos enganar. Se atentarmos bem no que significa, “tolerância” pressupõe sobranceria de quem “tolera” sobre quem é “tolerado”.
O verbo “tolerar” clarifica melhor esta ideia, já que se traduz por “suportar”, “consentir”, “deixar passar”. O adjectivo “tolerável”, também. Sinónimo: “sofrível”.
Há vários tipos “oficiais” de “tolerância”: a civil (“permissão concedida por um governo para uso de cultos que não são os do Estado”), a religiosa (“condescendência em virtude da qual se deixa a cada um a liberdade de praticar a religião que professa”), a eclesiástica ou teológica (“condescendência em virtude da qual se consentem todas as opiniões que não sejam abertamente contrárias à doutrina da Igreja”).
Falta só falar da “tolerância de ponto”, de que alguns portugueses beneficiaram na sexta-feira porque o Governo não quis ser “insensível” à visita do Papa Francisco para celebrar o centenário das “aparições de Fátima”. Mas a própria Igreja, pela voz do bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, considerou que “era desnecessário”.
Tolerância de ponto corresponde à “faculdade conferida aos funcionários públicos de não comparecerem ao serviço, em dias úteis, em virtude de qualquer festa ou comemoração oficial”. Resumidamente, “possibilidade concedida a alguém de faltar ao trabalho num dia útil”.
Exemplo do dicionário: “A função pública goza algumas tolerâncias de ponto, no decorrer do ano.” Já tínhamos dado por isso.
Se se aliar essas faltas a uma greve, como os médicos fizeram por estes dias, torna-se ainda mais difícil “tolerar” a “tolerância”. Ficou a saber-se que serão precisos dois meses para recuperar as consultas e cirurgias adiadas. Isto a contar que não haja mais paralisações.
Se vai precisar de usar o Serviço Nacional de Saúde brevemente, aproveite a maré beatificante no país. Se tem fé, reze; se não tem, reze também.
Canção
21 de Maio
“Composição poética de carácter lírico, por vezes com refrão, própria para ser cantada.” Eis um dos significados de “canção”. E anda meio mundo a trautear a mesma. É essa, sim. A vencedora do Festival Eurovisão da Canção, Amar pelos dois.
A parte do mundo que anda a tentar esquecê-la tem alguma dificuldade. Aconteceu o que Salvador Sobral reclamava de outras músicas: “Atiram-lhes [na rádio] com uma canção 16 vezes ao dia e obrigam-nas a gostar dela.” Ainda assim, preferimos ouvi-lo a vê-lo. Trejeitos e pinotes distraem-nos do essencial, como o fogo-de-artifício.
O dicionário descreve vários tipos de canção: a de embalar, “que tradicionalmente se canta para adormecer crianças de colo”; de protesto, “aquela cuja letra exprime sentimentos de revolta, denúncia de injustiças e de combate contra uma ideologia ou sistema”; a ligeira, “que tem uma estrutura simples, é muito divulgada pelos meios de comunicação social e toda a gente sabe cantar” (lá está); a popular, “que tem origem no folclore, ou é de autor desconhecido e vai passando de geração em geração”.
O adjectivo “festivaleiro” reza assim: “Diz-se das canções próprias de um festival ou que produzem melhor efeito num festival pelo seu ritmo vivo e alegre.” Mas também pode ser substantivo, “que ou quem participa num festival”. Gostem ou não, os irmãos Sobral são “festivaleiros”. De boa qualidade, é certo. Mas não justifica o “espasmo nacionalista” (expressão de Pacheco Pereira) que despertaram.
O mais comovente será a feliz relação que transpareceu entre os irmãos, Luísa e Salvador. Ora se apaga um ora outro, para que ambos brilhem. Belo trabalho familiar de respeito mútuo. Quem tem irmãos sabe que se trata de amar por dois, por cinco ou por dez...
Em sentido pejorativo, “canção” significa “argumentos ou explicações repetitivos”, “conversa”, “história”, que conduzem à expressão: “Já estou farta de ouvir a mesma canção.” Também se diz “farta da mesma cantiga”.
Há ainda a prática de “tentar convencer ou enganar alguém, através de uma conversa hábil”. O mesmo é dizer: “Cantar a canção do bandido.” Que meio mundo também conhece.
Burla
28 de Maio
Palavra com origem castelhana, “burla” traduz-se por “acto ou efeito de burlar, de enganar para tirar proveito ou benefício”. Em direito, corresponde a “crime que consiste em enganar alguém para lhe extorquir quaisquer valores ou para obter lucros”.
Assim, “burlar” é o mesmo que “ludibriar”, “trapacear”. O dicionário dá exemplos de frases como “burlar um cliente” (acontece às vezes) e “burlar os eleitores” (acontece muito).
Por estes dias, a propósito do BPN e da sentença de Oliveira Costa (14 anos de prisão), o juiz Luís Ribeiro considerou ser esta “a maior burla da história portuguesa”. Explicando tratar-se de um conjunto de crimes graves, com início em 2001, e que levaram à ruína da instituição financeira.
“Burlão” ou “burlador” são nomes aplicáveis a quem “burla”. Neste caso, os “acusados de burla, financiamento ilegal aos accionistas e de falsificação de contabilidade” foram 15. Há “trapaças” que exigem engenho e arte, pelo que só se conseguem em grupo e em teia.
Assim, “Oliveira Costa e os seus colaboradores mais directos terão forjado ‘documentos’ e alterado ‘registos contabilísticos de forma a ocultar e a justificar as suas actuações de apropriação de fundos e de obtenção de ganhos, em particular ocultando o seu benefício e a utilização de contas junto do Banco Insular e do BPN Cayman”, escreveu-se. Os já familiares… paraísos fiscais, onde se multiplicavam as sedes de sociedades, ajudavam a esconder o rasto do dinheiro.
Num sentido mais antigo, “burlar” também significa “fazer troça”, “escarnecer”, “zombar”. E é essa a sensação que fica de cada vez que alguém fala nas dificuldades dos bancos e na necessidade de os financiar.
Logo nos ocorre uma outra palavra pouco actual no uso mas não na prática: “embuste”.
JUNHO
Clima
4 de Junho
Explica um dicionário enciclopédico que “clima” corresponde ao “conjunto de fenómenos meteorológicos que caracterizam um determinado lugar, região ou país pela influência que exercem sobre os seres organizados”. Acrescenta ainda ser o mesmo que “ambiente”, “meio”.
Um dicionário comum oferece definições que vão para além das “condições meteorológicas”, falando também em “atmosfera social, psicológica e moral”.
O clima não anda bom. Nem na atmosfera nem nas relações internacionais. “Trump tira EUA do Acordo do Clima, por ser ‘um mau negócio’” foi o título de uma notícia de quinta-feira, em que se explicava: “Presidente diz que quer voltar a negociar um pacto climático, ‘mais justo’ para os contribuintes norte-americanos. O resto do mundo critica a acção unilateral.”
O Acordo de Paris pode não ser perfeito nem inteiramente justo (não pelos motivos invocados por Donald Trump), mas é o melhor compromisso que temos para ir travando o aquecimento global.
A Organização Meteorológica das Nações Unidas informou que “a retirada dos EUA do acordo climático de Paris poderá significar, no pior dos cenários, um aumento de 0,3 graus Celsius das temperaturas globais até ao final do século”.
Alguma esperança nasceu com a “aliança climática”, assinada pelos estados da Califórnia, Nova Iorque e Washington, que vão continuar a respeitar os limites previstos por Paris.
Será que a responsabilidade dos poderosos pelo retrocesso de compromissos que nos afectam a todos não poderá ser considerada “crime contra a humanidade”?
O dicionário regista ainda a frase “música ambiente para criar clima”. Um exemplo de definição feliz: “Estado de coisas ou ambiente humano favorável.” O mundo precisa disso.
Electricidade
11 de Junho
“Forma de energia que manifesta a sua acção através de fenómenos mecânicos, térmicos, caloríficos, luminosos, químicos, etc.”, começa por explicar o dicionário. E logo acrescenta: “Essa forma de energia aplicada ao consumo doméstico ou industrial.” A que se seguem as frases “pagar a factura da electricidade” e “cortar a electricidade”.
Falemos de pagamentos. “Os portugueses pagam uma das electricidades mais caras da Europa”, já se escreveu várias vezes. Uma possível explicação para tal foi divulgada recentemente: “A EDP [Electricidade de Portugal] ganhou no mínimo 46,6 milhões de euros a mais do que aquilo que era suposto com a prestação de serviços que são pagos através da factura da luz.” Pois.
Falemos de cortes. Um aviso prévio de 20 dias basta para que se proceda à interrupção do fornecimento de electricidade por falta de pagamento da factura, informa o Portal do Consumidor de Energia. Para interromper o fornecimento de lucros milionários à EDP, 365 dias não chegam. “O Estado está há um ano para cortar 46 milhões aos ganhos da EDP.” Pois.
Depois de uma denúncia anónima, o Ministério Público abriu um processo-crime com base em antigos acordos de compensações financeiras celebrados entre o Estado e a EDP. Poder-se-á estar perante “factos susceptíveis de integrarem os crimes de corrupção activa, corrupção passiva e participação económica em negócio”. Resultado: vários arguidos, incluindo António Mexia.
O presidente da EDP deu uma conferência de imprensa sobre o assunto e escudou-se na legalidade dos procedimentos (o habitual). Mas, como lembrou Francisco Teixeira da Mota, “se lermos os mais diversos jornais nacionais e, mesmo as televisões, constatamos muitas vozes e de diferentes sectores de opinião que não ficaram satisfeitas com as explicações dadas na conferência de imprensa, apontando a profunda irracionalidade que representam as elevadas rendas pagas à EDP pelo Estado e manifestando a expectativa que da investigação surja algo de mais substancial”.
Esperam, portanto, “que se faça luz”.
Incêndio
18 de Junho
Regista o dicionário: “Fogo que lavra e devora.” Poder-se-ia estar a falar de fogos florestais, que não tardarão por aí e são igualmente graves, mas o “incêndio” a que queremos referir-nos foi urbano, ocorreu em Londres na quarta-feira e provocou pelo menos 58 vítimas mortais.
O que se foi sabendo sobre esta “queima” num prédio de 23 andares e 200 apartamentos tornou-a ainda mais chocante. “O edifício, construído em 1974, não tinha aspersores e os moradores disseram que não ouviram alarmes de incêndios. A comissão de moradores tinha alertado para estes perigos e para a existência de obstáculos que dificultavam a aproximação de carros de bombeiros, caso houvesse um fogo”, escreveu-se.
Dizem os especialistas que os revestimentos usados, Reynobond PE, tinham componentes de plástico, o que é proibido, por exemplo, na Alemanha em torres com mais de 22 metros há quase 40 anos. Isto porque agravam a propagação de incêndios e só devem ser utilizados em edifícios que permitam que os bombeiros consigam chegar até ao topo com a escada de emergência totalmente distendida a partir do solo, explicou-se nas notícias.
“O chefe dos bombeiros de Frankfurt, Reinhard Ries, afirmou-se horrorizado”, segundo o Guardian. Disse que “as regras rígidas de segurança contra incêndios em prédios impossibilitam que, na Alemanha, um acontecimento do género aconteça”. O mesmo para a construção americana.
Em Portugal, “não será habitual a utilização destes materiais”, disse o bastonário da Ordem dos Engenheiros, Carlos Mineiro Aires. E acrescentou: “A legislação nacional é muito exigente nesta matéria.”
Ainda segundo o Guardian, “fornecedores admitem que revestimento da torre de Londres era o mais barato e inflamável”.
Não admira, tratava-se de habitação social. E é sabido que as vidas não valem todas o mesmo.
“Calamidade”, conclui o registo no dicionário.
Floresta
25 de Junho
“Grande extensão de terreno coberto de árvores” é a definição simples para a complexidade de “floresta”. Um dos dicionários consultados acrescenta “mata”, “bosque”, para rematar com frases que nos habituámos a ouvir há muito, mas que nos últimos dias não param de ser repetidas. Uma positiva: “Protecção da floresta.” Duas negativas: “O fogo devastou uma parte da floresta” e “destruição da floresta”.
Uma enciclopédia geográfica, editada em 1989, oferece-nos explicação mais completa: “Superfície espontaneamente arborizada, contínua e extensa, agrupando uma grande variedade de espécies animais e vegetais distribuídas por estratos.”
Antes de transcrevermos o que se segue, repetimos o ano de edição da enciclopédia, 1989: “Em Portugal, o assunto está em discussão devido à devastação da floresta por fogos e à necessidade de ocupar esses terrenos com novas espécies resistentes ao fogo, rentáveis e que não criem desequilíbrios com os solos.” Foi (só) há 28 anos.
Depois dos incêndios dramáticos que começaram no fim-de-semana passado, Pacheco Pereira lembrou, com pertinência, que “na maioria das calamidades (não todas) é a natureza artificial que conta, porque há muito que a natureza natural, perdoe-se o pleonasmo, já não existe. E se é obra humana, artificial, remete para uma cadeia de responsabilidades de todo o tipo”.
Rui Tavares realçou, também com pertinência, a profusão de “especialistas instantâneos em incêndios por estes dias” e a necessidade de ouvir os “que se deram mesmo ao trabalho de estudar e pensar prolongadamente sobre um determinado tema”.
Em sentido figurado, “floresta” significa “confusão” e “labirinto”. E ainda “colecção variada de narrativas”. Muitas por escutar. Privilégio de quem continua vivo.
JULHO
Apoiar
2 de Julho
O verbo transitivo e intransitivo “apoiar” explica-se por “dar apoio ou usar como apoio” e significa “ajudar”.
Nesta semana, contabilizou-se o “auxílio” dos portugueses às vítimas do incêndio de Pedrógão Grande: mais de 13 milhões de euros.
Sabe-se que cinco milhões foram recolhidos pela banca e que o concerto solidário Juntos por Todos angariou 1,153 milhões de euros. Mas a “ajuda” chegou de várias outras origens.
Agora é o momento de as instituições se organizarem para que a distribuição do dinheiro seja eficaz e para que não haja motivos de desconfiança da parte de quem se solidarizou.
“Como vão ser aplicados os mais de 13 milhões de euros reunidos para ajudar as vítimas dos incêndios? Depende: o Governo criou um ‘fundo de solidariedade’, que congregará vários dos donativos, mas a União das Misericórdias Portuguesas e a Cáritas de Coimbra avançam sozinhas na aplicação do dinheiro”, noticiou-se no sábado.
Informou-se ainda que será o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social a liderar a utilização do fundo, em articulação com as autarquias e instituições particulares de solidariedade social locais.
Só em prejuízos na agricultura a estimativa é de cerca de 20 milhões de euros. Segundo o ministro Capoulas Santos, em “perdas com plantações (vinhas, pomares, por exemplo), equipamentos ou explorações agrícolas”.
Palavra com vários sinónimos, o que mais nos agrada é “amparar”. O dicionário exemplifica: “Perdeu o emprego, mas os amigos ampararam-no.”
“Apoiar” também se traduz por “usar como base ou fundamento”. E regista-se: “Apoia a sua defesa em argumentos sólidos.” É o que está a faltar na justificação para a tragédia de Pedrógão.
Paiol
9 de Julho
Palavra que por estes dias se tornou familiar aos portugueses, “paiol” é uma “construção destinada ao armazenamento e conservação de pólvoras, explosivos e munições, de forma a evitar o perigo de explosões”, descreve um dicionário enciclopédico. Já o perigo de assalto, esse, não evita.
Na noite de terça-feira foi retirado ilicitamente material bélico de três paióis de Tancos. O desconhecimento do tipo de armamento levado e a perplexidade perante o episódio fez com que as primeiras notícias falassem em “furto”, as seguintes em “roubo” e por último em “assalto”. Em crescendo…
A informação com a listagem do material roubado veio de Espanha. O primeiro-ministro, não.
Excerto de notícia divulgada pelo El País: “[Os assaltantes] chegaram num camião, romperam a vedação e foram para os paióis, [embora] só tenham visitado aqueles que tinham o material de que necessitavam (1500 balas, 150 granadas, 40 lança-granadas, explosivos e gatilhos para estes), deixando tudo o resto.”
De Espanha, veio também a palavra “paiol”. O primeiro-ministro, não.
Via catalão, pallol significa “soalho do fundo do navio”. No universo náutico, traduz-se por “parte do navio onde se guardam as munições; depósito de provisões alimentares ou bagagens”.
Chama-se “paioleiro” ao guardião do paiol, que no Norte do Brasil significa “compartimento para nele se guardarem os géneros da grande lavoura”. Em linguagem popular, é sinónimo de “estômago” e “ventre”.
Mas não vamos incomodar o leitor com minudências. Deixe-se estar aí em Palma de Maiorca a tomar um cocktail fresco e colorido ao som do Despacito. Férias são férias.
Icebergue
16 de Julho
Explica uma enciclopédia geográfica (1989) que um “icebergue” é uma “grande massa de gelo flutuante que se separou de um glaciar ou barreira de gelo”, acrescenta que se desloca “sob a influência de correntes e ventos e pode tornar-se perigoso para a navegação”. Remete ainda para o avistamento de um grande icebergue, no oceano Pacífico, em 1959, com 335 km de comprimento e 97 km de largura.
Nesta semana, um “icebergue gigante desprendeu-se na Antárctida”. Descrição divulgada no PÚBLICO: “São quase seis mil quilómetros quadrados de gelo que estão à deriva, depois de se terem desprendido da plataforma Larsen C, na Antárctida ocidental. O desprendimento de uma área gelada superior à do território de países como o Brunei, Cabo Verde ou o Luxemburgo foi confirmado nesta quarta-feira por cientistas, através de imagens recolhidas por satélite.”
Com responsabilidades “repartidas” entre causas naturais (dinâmica das plataformas dos glaciares) e acção humana (alterações climáticas — desde 1950, a temperatura média anual do ar subiu cerca de três graus Celsius na Península Antárctica), o resultado inevitável será a subida do nível do mar.
Do norueguês ijsberg; do alemão Eisberg e do inglês iceberg, o significado original traduz-se por “montanha de gelo”. E muito usada é a expressão “ponta do icebergue”: a “parte do gelo visível, do bloco de gelo total”, 10%. Em sentido figurado, associa-se à “parte que está à vista ou que é conhecida de problema complicado ou situação difícil”.
O dicionário dá um exemplo que extravasa a ciência e a geografia: “Isto é a ponta do icebergue: a fraude é muito maior.” Mas hoje não queremos falar da Galp, nem da Altice ou da PT, nem de cativações, nem do SIRESP, nem das PPP, nem da banca, nem… nem…
Turismo
23 de Julho
A palavra “turismo” vem descrita assim num dicionário comum: “Actividade que consiste em viajar por razões de lazer ou de descanso ou com fins culturais.” Exemplo: “Fazer turismo na Europa.”
Segundo o Instituto Nacional de Estatística, Portugal vai receber mais de 21 milhões de turistas durante este ano. Até Abril, foram ultrapassados os 5,3 milhões, sem se contabilizar ainda o “turismo religioso” que a visita do Papa Francisco em Maio dinamizou.
“Turismo” também se define por “conjunto dos serviços profissionais, económicos, culturais e outros relacionados com essa actividade”. Por cá, comemora-se os dez anos do Turismo de Portugal, que em 2007 passou a agregar os vários organismos relacionados com este importante sector económico. No final de Junho, assinalou-se em Coimbra a primeira festa prevista para 2017, com mais de duas centenas de profissionais a desenhar um logótipo vivo da instituição.
Nesta altura do ano, também são muitos os portugueses que “fazem turismo”, ou seja, tornam-se “turistas”. Os mais snobs, no entanto, preferem intitular-se “viajantes”. Mas a definição não é muito diferente: “Pessoa que viaja, por gosto ou por necessidade, para locais mais ou menos distantes.”
No ano passado, visitaram Portugal 19,1 milhões de turistas. A secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho, disse ao Diário de Notícias: “O objectivo é crescer 10% em relação a 2016. Neste momento, estamos a crescer acima da meta estabelecida na Estratégia Turismo 2027, na qual tínhamos definido um crescimento anual de 8%.”
Nem a todos os “indígenas” agrada a presença de tantos turistas estrangeiros ao longo do ano, sobretudo em Lisboa e Porto. Se é um desses portugueses, “fuja” de vez em quando para a região Centro, que bem necessitada está de um impulso de economia. E de vida. Boas viagens.
Lista
30 de Julho
Só ao quarto significado é que o dicionário nos ofereceu o que procurávamos, descodificando assim a palavra “lista”: “Relação escrita de nomes de pessoas ou de coisas, rol.” Não fala em mortos, mas falamos nós. Não por querermos ser mórbidos, mas justos.
O pedido de divulgação por parte do Ministério Público dos nomes das vítimas mortais do incêndio de Pedrógão Grande pode não ter tido a mais idónea das origens, mas as reacções que se seguiram também não engrandecem quem se pronunciou.
Podia ser uma lista de 64+1 ou de 64+2, de número superior ou inferior. O que realmente importa é que a cada algarismo corresponde uma vida que se perdeu e que se multiplica por outras que se modificaram e por outras ainda que nunca chegarão a existir.
Pouco importa se a causa foi fogo, fumo ou fuga (amarga ironia num país que adora efes). Menos ainda se foi indirecta. Directa foi a consequência: morte. Estas pessoas já não estão cá e ainda agora respiravam.
Bem podem os notáveis invocar a ditadura e contrapô-la à democracia, que se felicitam por praticar e por isso alegam que tudo mostram, contam e esclarecem. Tanto malabarismo verbal e emocional já não colhe junto dos mais informados nem dos menos afortunados.
É sabido que a falta de empatia é própria de quem padece de distúrbios de comportamento. No extremo, os psicopatas e os serial killers. Sugere-se um rastreio à classe política (de todas as ideologias, se ainda as houver) e uma acção de formação em que cada um exercite a situação de se “pôr no lugar do outro”.
Imaginem que perderam um filho, um dos pais ou um irmão encurralado num incêndio. Nem é preciso ser demasiado realista na descrição do medo, do calor, da voz, da dor. Depois de o cenário estar bem interiorizado, digam-lhe: “A sua mãe não conta. Ela morreu, mas foi por causa indirecta.” E não se esqueçam de acrescentar: “Já está tudo esclarecido.”
AGOSTO
Manipular
6 de Agosto
O primeiro registo da palavra “manipular” fala de práticas manuais. “Mover ou utilizar com as mãos, manobrar, manejar, manusear.” Exemplo: “Para abrir, basta manipular uma alavanca.” Outro sentido positivo, digamos assim: “Confeccionar manualmente juntando os vários ingredientes.” Exemplo segundo: “Observava a cozinheira a manipular os alimentos.”
Só mais um, enquanto nos vamos aproximando do sentido pejorativo: “Ter autoridade e controlo sobre.” Exemplo terceiro: “O gestor tem de manipular recursos materiais e humanos.” Agora é que é: “Controlar, condicionando a opinião ou o sentido, manobrar.” Exemplos quarto e quinto: “Mais do que informar, certos órgãos visam manipular o público” e “o vício de manipular as estatísticas”.
Na quarta-feira, ficou a saber-se que na Venezuela, nas eleições para a Assembleia Constituinte, convocadas por Nicolás Maduro, “a diferença entre a participação real e a anunciada pelas autoridades é pelo menos de um milhão de votos”. Quem o declarou foi Antonio Mugica, fundador da empresa Smartmatic, que gere sistemas de voto electrónico em vários países e ali desde 2004.
“Sabemos sem qualquer dúvida que a participação na eleição recente para a Assembleia Constituinte foi manipulada”, afirmou o empresário, explicando que o sistema foi concebido para “detecção imediata e muito fácil” em caso de manipulação dos resultados.
A oposição boicotou a votação por entender que esta assembleia pretende entregar a Maduro todos os poderes, “pelo que os 545 delegados eleitos pertencem às fileiras bolivarianas”. Nesse sentido, a participação era a principal medida do sucesso das eleições. O Conselho Nacional Eleitoral assegurou que tinham votado 8,1 milhões de pessoas (mais do que os 7,5 milhões que a oposição diz terem participado numa consulta contra a eleição), os restantes partidos apontam para não mais de 2,5 milhões.
A União Europeia afirmou que “não pode reconhecer a Assembleia Constituinte”. O ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, assumiu posição idêntica, dizendo que a votação foi um “passo negativo” para a resolução da crise política no país. O PCP emitiu um comunicado que, segundo Elíseo Estanque, “é um hino a Maduro, exaltando este ‘acto de afirmação democrática’ contra ‘o ataque ao povo venezuelano pelos Estados Unidos e União Europeia’”.
A líder do Bloco disse: “O BE nunca confundiu a democracia com o acto formal de voto.” Mas estamos com alguma dificuldade em escutar daqui a voz de Catarina Martins. Ou temos problemas auditivos ou o BE sobre este assunto fala mais baixinho.
Fúria
13 de Agosto
O dicionário, que tudo sabe, escreve de imediato sobre o substantivo feminino “fúria”: “Acesso violento de agressividade, de agitação.” E logo dá um exemplo: “As fúrias de um louco.” Lembra-se de algum (ou de alguns)?
Nos últimos dias, deram-se conta de várias “fúrias”, que a psiquiatria define como “designação genérica dos estados de brusca exaltação, em geral colérica, com violentas exteriorizações verbais”.
Donald Trump e Kim Jong-un protagonizaram algumas, como sintetizou Jorge Almeida Fernandes no artigo “Fazer guerra ou aprender a coexistir com 'Kim nuclear'?”: “Estalou uma ‘guerra de palavras’ num tom que até agora parecia exclusivo de Kim Jong-un. Este ameaça os EUA, Donald Trump contra-ameaça com uma resposta de ‘fogo e fúria’, Kim sobe a parada declarando que pode atacar Guam.”
Outro registo para “fúria”: “Procedimento precipitado, sem ponderar as consequências.” Não será prática exclusiva de loucos, mas assusta mais quando essa “cólera”, “ira”, “sanha” e “raiva” provém dos que detêm poder sobre o mundo.
“Furioso” ficou também, noutra escala e consequências, Isaltino Morais, por o tribunal não viabilizar a sua candidatura às autárquicas como independente à Câmara de Oeiras. E também os sempre insatisfeitos e quase sempre privilegiados médicos, que se dizem cansados e mal pagos desde que os conhecemos.
Também se denomina “fúria” a uma “mulher desgrenhada” e a certa “divindade infernal pagã”. Mas as fúrias mais preocupantes são as que o dicionário assim define: “Força extraordinária, ímpeto.” E exemplifica com “a fúria do mar” e “o vento soprou com fúria”. Este último, um fenómeno bem presente em dias de muitos e tristes incêndios.
Queda
20 de Agosto
Objectivamente, uma “queda” é o “acto ou efeito de cair”. Assim regista o dicionário na primeira acepção para este nome feminino. E rapidamente envereda por sentidos figurados, como “decadência”, “ruína”, “perda de influência, de poder, de supremacia”. Mas queremos centrar-nos no sentido literal.
Neste triste mês de Agosto, entre fogos, atentados, inundações e até uma marcha nacionalista e racista, a força da gravidade lembrou-nos a sua existência da pior maneira e em dois momentos que deveriam ser de festa no território nacional.
“Queda do maior andor do mundo faz sete feridos em Lousada”, noticiou-se, dando-se conta de que os feridos eram homens que transportavam o andor em ombros, na procissão da romaria da Senhora da Aparecida, em Vilar do Torno. Tudo se passou a 14 de Agosto.
No dia seguinte, nova notícia, bem mais trágica, sobre uma outra “queda”, numa outra festa, também religiosa: “Uma árvore de grande porte caiu em cima de dezenas de pessoas no Largo da Fonte, nos jardins do centro da freguesia do Monte, pouco antes da saída da procissão em honra da padroeira da Madeira, a Senhora do Monte.”
Tratava-se de um carvalho centenário e provocou 13 mortos e mais de 50 feridos.
O que se seguiu, na assumpção de responsabilidades, foi bastante triste (e continua a sê-lo). “Desde terça-feira, a Câmara do Funchal e a paróquia da Senhora do Monte têm apresentado versões contraditórias sobre a posse do terreno onde se encontrava a árvore”, escreveu-se.
“Queda” também significa “descrédito”, “culpa”, “falta”. Depois de inquéritos, peritagens interrompidas, desconfiança e insensibilidade, a credibilidade nas instituições e governanças já não consegue contrariar a força da gravidade. Aproxima-se cada vez mais do chão.
Poder
27 de Agosto
Já nos detivemos nesta palavra, “poder”, em Outubro de 2015. Então, tratava-se de eleições em Portugal e de saber quem seria, afinal, indigitado primeiro-ministro. Foi por alturas do nascimento da “geringonça”.
Agora, é Angola que nos faz recordar este substantivo masculino, mas também verbo transitivo, intransitivo e auxiliar.
Enquanto verbo, “poder” significa “ter possibilidade ou autorização para”, “dispor de autoridade”, “ter influência para”. Como substantivo, significa “domínio”, “posse”, “império”, “soberania”.
Tudo a fazer lembrar José Eduardo dos Santos e o seu “reinado” de 38 anos, que esta semana terminou. Ou talvez não. Dos resultados provisórios (99,66% dos votos contados) ficou a saber-se que o MPLA, o seu partido, desceu 10% em cada eleição (Assembleia Nacional e Presidente), perdendo 25 deputados. A UNITA teve um resultado histórico, conseguindo eleger 51 deputados.
Para António Filipe, deputado do PCP, as eleições, em que participou como observador, foram “um exemplo de maturidade democrática” e deu conta de que todas as mesas de voto que observou “integravam delegados de, pelo menos, três partidos”.
Um dicionário de 1940 regista “direito de mandar” e “ter fôrça para” (assim mesmo, com acento circunflexo) quando explica “poder”. Num outro mais recente, escreve-se “manda quem pode” e ainda “o Governo de um país e as respectivas instituições”. Há uma frase exemplificativa: “O poder foi legitimado pelo voto.”
“Aguentar” também é sinónimo de “poder”. Veremos como se irá aguentar Angola com o baixo preço do petróleo e o alto valor da corrupção. Para os cidadãos comuns, nem sempre “querer é poder”.
SETEMBRO
Medo
3 de Setembro
A origem desta palavra é latina, como muitas das que os falantes de português usam todos os dias. E noites. “Metus” derivou para “medo”. Sente-se por aqui e por outras geografias.
Uma definição possível: “Fenómeno de inquietação súbita e violenta provocado pela consciência de ameaça ou perigo, real ou imaginário, em geral acompanhado de reacções fisiológicas.”
Pede o mundo aos cidadãos (ocidentais…) que não se deixem tolher pelo “medo”. Incentivam-nos a viajar, a assistir a concertos e outras iniciativas colectivas e a não fugir das multidões. Mas não se pode evitar o “amedrontamento”.
Olhando para o estado do mundo, fica-se sem saber se se há-de ter “receio” em maior grau de terroristas anónimos ou de malfeitores conhecidos. Como é que se hierarquiza o “pavor” entre cintos de explosivos, carros armadilhados, atropelamentos em massa e mísseis intercontinentais? Acresce ainda o “temor” das alterações climáticas, entre secas aqui, inundações ali, tufões acolá, tsunamis mais além.
Voltemos ao conceito de “medo”: “O que assusta, fantasma, alma do outro mundo.” E registam-se expressões como: “O papão, o homem do saco e outros medos infantis.” E não conseguimos deixar de pensar em (pelo menos) dois poderosos a desafiar-se com brinquedos perigosos como duas crianças, no que de mais assustador pode ter a infância, no sentido da disputa e irresponsabilidade.
O que é de realmente “meter medo” — enquanto “provocar susto ou receio, amedrontar, assustar” — é o facto de estarmos em presença de dois líderes mundiais (Trump e Kim Jong-un) desequilibrados e imprevisíveis. Nunca saberemos o que lhes passa pela cabeça. Além daqueles penteados.
Vento
10 de Setembro
“Deslocação do ar atmosférico, resultante da diferença de pressão entre dois pontos, deslocação que se dá das altas para as baixas pressões, junto da superfície terrestre.” Assim se define “vento” num dicionário comum.
Conforme a velocidade desta deslocação de ar e a dimensão da área afectada pela sua influência, podemos estar perante uma tempestade tropical, um tornado, um ciclone, um tufão, um furacão e até um “supertufão”, como foi considerado o Haiyan, que soprou a 8 de Novembro de 2013 nas Filipinas e atingiu 300km/h. O que corresponde a um furacão 5, valor máximo na classificação de Saffir-Simpson, seguida pelos serviços meteorológicos dos Estados Unidos.
Por estes dias, foi o Irma que chegou a esse topo da escala, provocando grande destruição nas Caraíbas. Na sexta-feira, o furacão baixou para categoria 4. No entanto, a notícia era a seguinte: “Autoridades avisam que tempestade pode ‘devastar’ a Florida ou outro estado vizinho.”
A preocupação do governador republicano daquele estado era bem nítida nas suas declarações em conferência de imprensa: “Não posso insistir mais nisto: não ignorem as ordens de evacuação. Podemos reconstruir a vossa casa, mas não a vossa vida. Levem aquilo de que precisam, mas apenas aquilo de que precisam.”
Não se pode afirmar com total garantia que estes fenómenos destruidores (cada vez mais frequentes no Atlântico) tenham que ver com alterações climáticas. Mas certo é que cada um de nós pode tentar o mais possível poupar o planeta e o seu aquecimento. Não custa assim tanto. Esta é uma mensagem que é preciso espalhar “aos quatro ventos”.
Calendário
17 de Setembro
Um calendário é um “sistema de divisão do tempo em anos, meses, dias, baseado em fenómenos astronómicos”. Há o calendário “lunar”, “que se baseia no ciclo de fases da Lua”, e o calendário “solar”, “que assenta no período de revolução da Terra, em volta do Sol” (leia-se “revolução” como “movimento realizado por um corpo celeste em volta de outro” e não como “revolta”).
Calendário “civil” é o “que actualmente se utiliza em todo o mundo”. Sendo do tipo solar, resulta do “aperfeiçoamento do calendário romano”.
O dicionário esqueceu-se do calendário “eleitoral” e do calendário “desportivo” (nomeadamente o da Liga Portuguesa de Futebol Profissional), por isso não arriscaremos definir segundo que órbitas e ciclos se organizam. Certo é que às vezes coincidem ou, se se preferir, colidem.
No dia 1 de Outubro, há eleições autárquicas e vários desafios de futebol, incluindo um clássico Sporting-Porto e uma ida do Benfica à Madeira.
Excertos de notícias sobre o tema: “João Paulo Rebelo lembrou que as recomendações da Comissão Nacional de Eleições para que não haja coincidência de espectáculos desportivos em dias de eleições ‘não têm sido atendidas’”; “António Costa não gostou da marcação, pela Liga de futebol, de vários jogos para o dia das eleições autárquicas (…) Considerando-se de mãos presas por não ter como proibir, está a estudar uma alteração ao regime jurídico das federações desportivas”.
“Insulto” (aos portugueses), “infantilização” (dos eleitores), “inutilidade” (da medida de proibição) foram algumas das palavras que emergiram na discussão. Tudo porque se teme que a abstenção tenha mais um pretexto para crescer.
Já o substantivo “calendarização”, remete-nos para os enfermeiros. Significa “marcar algo no calendário”, como uma greve, a próxima para os dias 3, 4 e 5 de Outubro. O dicionário fala ainda em calendário “gregoriano ou novo”, eclesiástico” e “escolar” (que agora se inicia).
Felizmente que ninguém se lembrou de que 1 de Outubro é Dia Mundial da Música e há concertos por todo o lado. Haverá certamente tempo para irmos primeiro às urnas. E também gostamos de bola.
Discurso
24 de Setembro
Vindo do latim, discursu, significa “exposição de ideias, em geral solene e prolongada, proferida por um orador perante uma assembleia”. Poder-se-ia dizer que é o oposto de um tweet. Sim, vamos falar de Donald Trump e do seu primeiro “discurso” na Assembleia das Nações Unidas.
“Perante os líderes mundiais e uma audiência de milhões de pessoas, o Presidente Donald Trump admitiu, de forma inédita, destruir a Coreia do Norte se ela ameaçar os Estados Unidos ou os seus aliados. Foi a parte mais sonora do discurso e que imediatamente ocupou as manchetes das edições online da imprensa mundial. Mas não a mais relevante. Esta diz respeito à reafirmação da palavra de ordem ‘America first’, a primazia dos interesses nacionais americanos, convidando os outros países a seguir o exemplo”, escreveu-se. Um claro incentivo a “todos contra todos”, numa casa que se espera promotora da paz.
Quando se fala em “discurso”, está-se perante um “enunciado superior à frase” (lá está, mais longo e reflectido que um tweet). Há os que ficam para a História pela sua qualidade, originalidade e verdade e os de que a História não reza. No La Repubblica, o jornalista Vittorio Zucconi sentenciou que este “será esquecido como tantos outros feitos na ONU”. Pode até ser, mas, enquanto nos lembrarmos, foi triste. E perigoso.
Falando de política doméstica (leia-se nacional), é bom que o leitor e eleitor se vá vestindo de paciência para o “palavreado” (sinónimo de “discurso”) que aí vem. As campanhas das autárquicas costumam ser férteis em “sermões” e “arrazoados” (palavras equivalentes).
É natural que também se escutem algumas “dissertações” “cujo conteúdo se fecha entre um início e um final reiterados e idênticos”. São os chamados “discursos redondos”. Normalmente envolvem gente quadrada.
OUTUBRO
Silêncio
1 de Outubro
“Estado de quem se cala, se abstém ou é impedido de falar.” Assim surge no dicionário a primeira definição de “silêncio”.
Escolhemos esta palavra porque hoje, dia de eleições autárquicas em Portugal, não podemos falar de certas coisas. Nem nós nem eles, os protagonistas a escrutinar.
E é tão bom este “sossego”, que também significa “ausência completa de ruído ou barulho”. Uma bênção (poderíamos acrescentar ao dicionário).
Estamos portanto, desde ontem, em “período de reflexão” eleitoral, que “corresponde à véspera e ao próprio dia da eleição até ao encerramento das urnas”, explica a Comissão Nacional de Eleições.
Concretizando: “Nesses dias, a Lei de Sondagens proíbe tanto a divulgação, como a análise, o comentário ou a projecção de resultados de sondagens.” Calados, que o respeitinho é muito bonito.
“Silêncio” é também o nome de um belo festival, que decorreu por estes dias em Lisboa, no Cais do Sodré, e que hoje termina. Chamam-lhe a Festa da Palavra, já que a celebram como “símbolo de comunicação e de expressão”, representando “relações entre os indivíduos e a comunidade”. Apropriado, pensando em concelhos e proximidade.
Também se chama “silêncio” ao “toque de corneta que, nos quartéis, assinala a ordem de recolher e a proibição de fazer barulho.” Seria assim em Tancos?
“Silêncio” quer dizer ainda “pausa no discurso ou numa sequência musical”. Aproveitemo-la o melhor que pudermos, já que, a partir das 20 horas deste domingo, voltará, na voz de vencedores e vencidos, o “ruído”, o “barulho”, a “vociferação”, o “estardalhaço”, o “chinfrim”, a “tagarelice”. Tudo antónimos de “silêncio” e de “paz”.
Até lá, chiu! Votem em silêncio.
Perseguição
15 de Outubro
Todos saberemos o significado de “perseguição”, mas é sempre bom consultar os dicionários para provar que estamos certos. “Acto ou efeito de perseguir, de ir atrás de alguém para o apanhar.”
A forma verbal “perseguir” tem, entre outras, as explicações “seguir os passos, procurar com insistência” e “causar incómodo, seguir obsessivamente, acossar, atormentar”. Frase exemplificativa: “Figuras públicas que os jornalistas e os caçadores de autógrafos perseguem.”
Fosse José Sócrates a editar os dicionários e acrescentaria “Ministério Público e direita”.
Se em Março de 2013, em entrevista à RTP1, o ex-primeiro-ministro se concentrava na “perseguição” da direita, alegando que esta apresentava “uma narrativa única, sem contraditório e sem oposição”, na entrevista de sexta-feira ao mesmo canal, Sócrates focou-se no “perseguidor” Ministério Público, que o acusa de 31 crimes. “Isto nunca foi uma investigação a um crime, foi a perseguição a um alvo”, disse.
Antes como agora, regressa o socialista a uma palavra com que até simpatizamos, “embuste”, que significa “mentira ardilosa”. Palavras de Sócrates: “Nego que seja meu o dinheiro. É um embuste segundo o qual tinha uma fortuna na Suíça. Com base em que fundamento é que o Ministério Público pode fazer uma acusação dessas?”
Também gostamos das palavras “narrativa” e “fábula”, esta surgiu agora a propósito da relação deste acusado com outro, Ricardo Salgado: “Nunca fui ao banco do dr. Salgado. Nunca fui a casa dele. Nunca me encontrei para almoçar fora. O problema é a fábula.”
Continuando no léxico literário, a defesa usou a frase “romance vazio de factos e de provas” para classificar o processo, a que o advogado João Araújo acrescentou “atascanço de vilipêndios”. Quanta elegância.
Resiliência
22 de Outubro
Foi a palavra mais procurada no dicionário online da Priberam nos anos de 2014, 2015 e 2016, considerando as buscas por falantes de português a partir de vários países. “Resiliência” voltou recentemente a ter protagonismo por declarações de Constança Urbano de Sousa depois dos incêndios do fim-de-semana passado.
Na segunda-feira, quando ainda ocupava o cargo de ministra da Administração Interna, disse: “As comunidades têm de se tornar mais resilientes às catástrofes. Infelizmente numa era de alterações climáticas que estamos a viver, as catástrofes de grande dimensão são uma realidade por todo o mundo.”
Na Física, “resiliência” significa “propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou deformação” e “capacidade de resistência de um material ao choque”.
Transpondo para os comportamentos humanos, pode traduzir-se por “capacidade de superar, de recuperar de adversidades”. Ainda assim, nunca se regressa à “forma original”. Vem à memória o exercício a que alguns professores recorrem para falar de bullying aos jovens. Pedem-lhes que amarrotem uma folha de papel e a atirem para o chão. Depois, recolhem-na, desdobram-na e tentam alisá-la. Perguntam então se lhes parece que a folha alguma vez será como antes.
A reacção mais certeira que encontrámos às declarações da ex-ministra veio de Helena Roseta: “Quando as pessoas desamparadas, um pouco por todo o Norte e Centro do país, tentavam apagar as chamas com baldes e enxadas e acabavam a chorar os seus mortos, não se pode dizer-lhes que sejam resilientes.”
Também o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, foi infeliz e insensível nas declarações à SIC Notícias, afirmando que não podemos ficar “à espera que apareçam os bombeiros e que apareçam os aviões para nos resolverem o problema”.
Disse ainda que as comunidades têm de ser “proactivas” — uma palavrinha irritante que fica para explorarmos noutro dia. Quando os motivos forem menos tristes.
Soberba
29 de Outubro
Não é uma palavra que se escute com muita frequência, mas de tempos a tempos a “soberba” aparece na voz dos políticos. (No comportamento, também.)
Na terça-feira quem a pronunciou foi Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, dirigindo-se a António Costa, na primeira ronda de perguntas à líder do CDS-PP, Assunção Cristas, depois da apresentação de uma moção de censura ao Governo.
O social-democrata acusou o primeiro-ministro de “incompetência, soberba e insensibilidade” na resposta aos incêndios deste Verão.
Lê-se no dicionário: “Que se julga mais elevado que outro, que revela altivez, arrogância.” Exemplo: “Era visível a soberba com que tratava as pessoas.”
Não é a primeira vez que esta palavra é atirada contra António Costa. No início da legislatura, em 2015, Paulo Portas (na altura, líder centrista) acusava-o de “soberba” e “altivez” por ignorar que a política de recuperação dos rendimentos só era possível graças às medidas de austeridade e sacrifícios das famílias.
E lembramo-nos de uma frase popular que fala em “roto” e “nu”.
Também de “soberba” se queixou Javier Cercas, no El País de 26 de Julho, a propósito do referendo na Catalunha. “Durante as suas mais de duas décadas de poder incontestado, Pujol contribuiu decisivamente para devolver o orgulho aos catalães. O problema é que nas mãos dos seus filhos esse orgulho transformou-se em soberba, senão mesmo em estupidez. (...) Soberba, ou estupidez, é decidir que nós, os catalães, vamos decidir por todos os espanhóis.” O resultado já é conhecido.
Divertido é o som da palavra que significa “aquele que é um tanto soberbo e tem ares de soberba” — “soberbete”.
NOVEMBRO
Violência
5 de Novembro
Substantivo feminino que significa “qualidade de violento” e “facto de obrigar alguém pela força ou pela intimidação a praticar actos que de outro modo não praticaria”.
Não é uma palavra (nem uma prática) nova, mas nesta semana fomos obrigados a pensar nela mais do que uma vez, pois assistiu-se por aí a muita “brutalidade” e “fúria”.
Em Nova Iorque (Manhattan), em Coimbra (Solum) e em Lisboa (Urban Beach), por motivos diferentes e todos deploráveis, a “desumanidade” saiu à rua. Por terrorismo, ajuste de contas ou racismo.
Mas a “crueldade” ficou em casa também, como nos foi recordado pelo processo de violência doméstica da mulher agredida pelos ex-namorados no Porto e pelo caso que envolve o ex-ministro Manuel Maria Carrilho e a apresentadora de televisão Bárbara Guimarães. E nem vamos falar das penas (não) atribuídas.
Não é a primeira vez que escrevemos sobre “violência”. Em Maio de 2015, o que nos mobilizou foi um rapaz esbofeteado por colegas de escola, um homem agredido por polícia em frente aos filhos depois de um jogo de futebol, um jovem de 17 anos que matou outro de 14 e ainda a “desumanidade” de migrantes à deriva ao largo da Indonésia. De cada vez que os barcos tentavam aproximar-se de terra, eram rebocados de novo para alto-mar. O mundo não melhorou.
“Acto desumano”, diz o dicionário. E bem. Também se refere a “acto de violentar”. Aqui, podemos derivar para outro tema da actualidade: assédio sexual. A julgar pelas recentes denúncias, bastante vulgar nalgumas profissões.
Mas é preciso ser-se cauteloso e nada ingénuo. Não confundir as vítimas verdadeiras e sofridas com as estrategas de insinuação e sedução. Já todos assistimos a promoções completamente alheias à competência profissional. Não é, meninas (e meninos)?
Aplicação
12 de Novembro
O primeiro sentido que, por estes dias, nos ocorre perante a palavra “aplicação” é tão-só o décimo… (e último) registado num dos dicionários consultados (edições em papel): “Programa que realiza tarefas específicas, diferentes das executadas pelo sistema operativo.”
Em dois dicionários online, remete-se para “informática” e, num deles, surge em oitavo lugar, traduzindo-se por “programa ou grupo de programas que executam tarefas no computador”; no outro, aparece em quarta posição e significa “programa informático que visa facilitar a realização de uma tarefa num computador ou num dispositivo móvel”.
Numa semana de agitação, investimento e deslumbramento à volta da Web Summit, que se realizou de novo em Lisboa, sentimos vontade de explorar um conceito que na origem significa, apenas, “acto ou efeito de aplicar, colocação ou sobreposição”. E os exemplos registados nada têm de tecnológico ou virtual: “Parafusos para aplicação do tampo à mesa” e “modo de aplicação da tinta”. Tem graça.
A startup vencedora da cimeira inventou um minifrigorífico inteligente que cabe na palma na mão e guarda medicamentos a temperaturas reduzidas.
Chama-se Lifeina e criou também uma “aplicação” que avisa o utilizador, através do seu smartphone, sobre quando tem de tomar a medicação, informa-o do estado dos medicamentos e avisa-o quando a caixa é aberta. Boa ideia e bem aplicada…
No Brasil, fala-se de “aplicativo”. Cá e lá também significa “arte de passamanes”. Isto é, “fitas ou galões entretecidos de fios de ouro, prata ou seda, com que se adornam móveis, peças de vestuário, etc.”. Haver “aplicações” para tudo não é só de agora. Tem graça.
Lembram-se da moda dos sapatinhos com “aplicação”?
Professor
19 de Novembro
“Aquele que ensina uma arte, uma actividade, uma ciência, uma língua” é um “professor”. Pode ser bom ou mau, ensinar há muitos anos ou nem por isso. Pode trabalhar perto de casa ou a quilómetros de distância, ter ou não ter horário completo. Dar uma disciplina ou várias. O dicionário não entra nestes detalhes.
Também não diz que é alguém importante nas nossas vidas, que avalia, mas por norma não gosta de ser avaliado nem que há actualmente dez escalões no modelo de progressão das suas carreiras: começa com um vencimento ilíquido (antes de impostos) de 1518,63 euros (1.º escalão) e termina com 3364,29 euros (10.º escalão).
A palavra “congelamento” surge muitas páginas antes, associada a salários, mas não necessariamente a “docentes”.
Numa semana em que os professores fizeram greve e em que os governantes não souberam o que fazer, os “peritos” (sentido figurado para “professores” e, talvez, para “sindicalistas”) ganharam.
Vão recuperar os salários de “nove anos, quatro meses e dois dias de tempo congelado” (nesta legislatura e na próxima). Mas continuarão alerta. “Se hoje [sexta-feira] não houvesse este compromisso, estaríamos aqui a anunciar uma grande manifestação de professores para o próximo sábado, dia 25. Não o fizemos, porque temos este compromisso, mas sábados é o que não falta, há pelo menos um por semana”, disse Mário Nogueira, da Fenprof. Não sabemos que disciplina ministra.
“Professor” também significa “sectário (de um sistema ou doutrina)” e “que ou aquele que professa uma religião ou uma crença”. Mesmo quando não dá para acreditar.
Forças policiais, magistrados e militares são os fregueses que se seguem. Má sorte para quem não é funcionário público e continua no “congelador”.
Água
16 de Novembro
Todos sabemos o que é “água”. Mas pensamos mais nela quando não cai do céu. “Líquido incolor, transparente, inodoro e insípido, composto por moléculas formadas por dois átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio, quando quimicamente puro”, regista o dicionário. Mais adiante, fala em “chuva”.
A meio deste mês, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera divulgou em comunicado: “Quase todo o território está há cerca de cinco a seis meses consecutivos em situação de seca severa e extrema, não se tendo verificado um desagravamento no início do Outono como seria normal e se tem verificado em outras situações de seca.”
Em Fevereiro de 2012, a “palavra da semana” que escolhemos foi “seca”, descrevemo-la como “período extenso em que não chove” e “estiagem”. Também por essa altura a água não caía do céu. E custa muito aceitar as informações sobre o desperdício deste bem essencial, como revelou recentemente a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos: “Pelo menos em 25 municípios, mais de metade da água escapa-se pelos buracos das condutas e por infiltrações e outros 29 não estão muito melhor: perdem entre 40 e 50%. Apenas 15 conseguem ter perdas inferiores a 10%.”
Se o cidadão deve poupar água em casa, no carro ou no jardim, os municípios têm obrigação de acautelar que não há desperdício.
E se “águas passadas não movem moinhos”, é tempo de rever a eficácia da rede de distribuição, esperando que os autarcas não tentem “sacudir a água do capote” (recusar responsabilidades) nem deixem o esforço dos cidadãos “ficar em águas de bacalhau” (gorar-se).
Mesmo que seja dificíl, nos dê “água pela barba”, é indiscutível a necessidade urgente (e já vamos tarde) de mudança de hábitos. “Claro como água.”
DEZEMBRO
Desaparecimento
3 de Dezembro
É um substantivo masculino e significa, em primeiro lugar, “acto ou efeito de desaparecer”. Também se pode traduzir por “ausência”, “descaminho” e “morte”.
É sobre “morte” que queremos falar, mas faltou-nos a coragem de a chamar para título. Por isso, escolhemos “desaparecimento”, um sinónimo eufemístico.
A semana que passou levou-nos duas personalidades que será raro o português que as desconheça: Belmiro de Azevedo e Zé Pedro. “Desapareceram” dois homens cuja junção num mesmo texto contraria todos os cálculos probabilísticos. Mas o calendário fê-los “deixar de existir” em dois dias consecutivos: quarta e quinta-feira.
Um empresário e um músico. O primeiro fundou o PÚBLICO; o segundo, os Xutos & Pontapés. Dois lugares de liberdade.
A jornalista Ana Sá Lopes recorda no Sol um episódio a que também assistimos: “(…) Belmiro é chamado a uma comissão parlamentar e impõe aos deputados uma reunião às oito da manhã. Discutia-se na redacção que se o Público fosse um jornal livre teria coragem para dizer mal do patrão que estava a ser indiscutivelmente populista. Eu disse que escrevia a dizer mal do patrão. Escrevi. Como qualquer visado em textos de opinião, Belmiro de Azevedo mandou uma carta ao director de então, José Manuel Fernandes, a protestar com o que considerava uma injustiça. Apenas. Não se passou mais nada. Não fui prejudicada na minha vida profissional no Público (...)”
Vítor Belanciano descreve Zé Pedro: “(...) Quando os Xutos & Pontapés nasceram, a sua guitarra destacou-se de imediato. E a sua personalidade também. Por um lado personificava o signo do músico rebelde e empenhado com o colectivo, mas ao mesmo tempo o que expôs desde sempre foi generosidade e humanismo. Existem outros músicos do rock feito em Portugal igualmente influentes ou relevantes, mas com o seu magnetismo é pouco provável (...)”
A economia e a cultura perderam carisma. Lamentamos. Bastante.
Embaixada
10 de Dezembro
A explicação que se lê no dicionário para “embaixada” é a seguinte: “Representação diplomática do governo de um país junto de um país estrangeiro, chefiada por um embaixador.” Também se pode traduzir por “residência ou local de trabalho do embaixador”. Para que tudo fique claro, registe-se também a definição de “embaixador”. Trata-se do “representante de um chefe de Estado junto de outro”.
Resolveu Donald Trump transferir a embaixada norte-americana de Telavive para Jerusalém. Justificação do Presidente dos EUA: “Decidi que é tempo de reconhecer oficialmente Jerusalém como capital de Israel.”
O mundo não gostou e “virou-lhe as costas”. Excerto de notícia de quarta-feira: “O secretário-geral da ONU, António Guterres, falou de um momento de ‘grande tensão’, o Presidente francês, Emmanuel Macron, declarou que a acção do seu homólogo norte-americano foi ‘lamentável’. Egipto e Jordânia dizem que a declaração ‘não tem validade’. A Turquia foi mais longe: o discurso ‘é uma clara violação da lei internacional’, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros.”
A “raiva” soltou-se em Jerusalém, Cisjordânia e Faixa de Gaza, provocando quatro mortos e vários feridos. “A decisão dos EUA inflamou vários países no Médio Oriente e na Ásia, como a Indonésia, a Malásia, o Paquistão e o Afeganistão”, noticiou-se na sexta-feira.
Há um significado inesperado para “embaixada” que um dicionário de origem brasileira nos deu a conhecer: “Virtuosismo do jogador que domina plenamente a bola. Podendo fazer inúmeras jogadas sucessivas, sozinho, sem deixar que ela vá ao chão.”
Mas a longa disputa pela cidade santa não é como um jogo de futebol e já fez muitos homens cair por terra. Demasiados.
Dinheiro
17 de Dezembro
Todos sabemos o que é “dinheiro”, mas o dicionário esclarece-nos com rigor: “Meio de troca, sob a forma de moedas ou notas, usado na aquisição de bens, na compra de serviços, de mão-de-obra, ou noutras transacções financeiras, emitido pelo governo de cada país.”
Mais nos ensina, que é um substantivo masculino que provém do latim denariu, “moeda de prata que valia dez asses”. Um “asse” correspondia a “uma moeda de cobre e unidade de medida de peso, entre os romanos”.
Há um sinónimo de origem popular, “guito”, que esta semana foi recuperado através da divulgação de emails de Paula Brito e Costa enquanto presidente da associação Raríssimas e a propósito da contratação de Manuel Delgado como consultor: “Como sabes, estive com o Dr. Manuel Delgado, e ele aceitou ir para a Casa dos Marcos [...]. Vai custar-nos 200 mil, é muito, mas eu sei que ele põe a casa no mapa do mundo e a fazer dinheiro!!!! Ele diz que o guito há-de aparecer.”
Há duas expressões que se adequam a este caso: “dinheiro fácil” — o que “se obtém geralmente por meios desonestos, sem esforço” — e “atirar/deitar dinheiro à rua”, que significa “gastar sem critério, esbanjar”.
Também a “riqueza” de Isabel dos Santos teve tempo de antena por estes dias, ao noticiar-se que a empresária transferiu 238 milhões de euros da Vidatel no BPI para contas pessoais, sete horas antes de a conta ser congelada.
“Dinheiro como milho”, diz o dicionário, ou seja, “muito dinheiro”. O oposto de “dinheiro de sardinhas”, isto é, “o que se recebe em pequenas prestações como pagamento de uma dívida”.
Remetendo para tempos anteriores ao papel-moeda, a expressão “vil metal” continua válida. Porque se acredita (e verifica) que o “dinheiro corrompe”. Mesmo se obtido através de donativos.
Correio
24 de Dezembro
Visitando o passado, “correio” significava “pessoa que, antigamente, corria o território, para entregar mensagens, notícias, ordens e despachos”. O mesmo que “mensageiro” ou “estafeta”.
No plural, “correios”, traduz-se por “serviço público, no sector das comunicações, que se ocupa da recepção, transporte e distribuição de correspondência e encomendas postais, bem como da emissão e venda de selos e outros valores”.
O dicionário de onde se retirou a definição é de 2006, pelo que não poderia adivinhar a participação privada nos correios portugueses nem antecipar as recentes actividades bancárias (o Banco CTT começou a transaccionar em 2016). Menos ainda antever a notícia “CTT cortam 800 postos de trabalho e fecham balcões”.
Mais informação: “A partir de 2020, a empresa liderada por Francisco Lacerda quer ter mais 45 milhões de euros nos resultados operacionais.”
Dicionário: “Em 1520, começou a funcionar em Portugal o correio por terra, em 1881 o correio marítimo e em 1934 o correio aéreo.”
Visitando o presente, sabe-se que “correio electrónico” significa “sistema de transmissão de mensagens escritas de um computador para outro computador, via Internet ou através de outras redes de computadores, email”.
Entre passado e presente, há uma palavra maior, “carteiro”. Um “funcionário que tem a seu cargo a distribuição ao domicílio da correspondência”. Em qualquer geografia.
E foram fundamentais na procura de pessoas nos incêndios deste Verão. “Os carteiros têm sido o nosso GPS, pelo conhecimento profundo que têm daquela zona e de quem lá vive em cada habitação”, escreveu-se no PÚBLICO sobre Pedrógão Grande.
Existe o verbo “correar”, que significa “prender com correia”, “cingir”. Ao que parece, alguém quer “correar” os “correios”.
Por aqui, vamos continuar a prática de enviar cartas e postais em papel. Mais ainda no Natal. A greve pode atrasá-los, mas nunca chegarão tarde para o que queremos demonstrar e desejar. Boas Festas!
Misericórdia
31 de Dezembro
Sentimento de compaixão perante a desgraça alheia, que leva a prestar ajuda ou apoio aos que sofrem”, assim se explica de imediato a palavra “misericórdia”.
Só ao quarto significado é que o dicionário fala da “instituição de caridade, de inspiração religiosa, fundada em 1498 pela rainha D. Leonor com o objectivo de assistência a pobres, doentes, etc., e à semelhança da qual se formaram outras por todo o território nacional.”
É a esta matriz que se refere António Bagão Félix, antigo ministro da Segurança Social, quando se pronuncia sobre a entrada de capitais da instituição no Montepio. “Pegar em 200 milhões para uma actividade acessória é ter uma visão desproporcional dos fins da Misericórdia, é arredar-se do fim principal”, disse à SIC.
Por estes dias, foi-se esquecendo o “misericordioso” ministro Vieira da Silva, que além de “assistir” à Raríssimas parece ter estado na origem de mais este negócio de “caridade” social.
O esquecimento deve-se a actos de “compreensão” entre os partidos que aprovaram a nova lei do financiamento partidário. “Resolveram uns aos outros os problemas de cada um”, nas palavras de Margarida Salema, ex-presidente da Entidade das Contas. Um momento bonito de “complacência” entre a classe política.
Num processo algo clandestino, uns demarcam-se agora do que ajudaram a aprovar e outros justificam-se com “inverdades”. Espera-se que o Presidente faça o seu papel. Não por questões de inconstitucionalidade, mas de imoralidade.
Outros sinónimos: “clemência”, “graça”. Também se traduz por “o que contribui para atenuar ou pôr fim a uma situação insustentável”.