Se os ricos ficarem cada vez mais ricos, alguma coisa há-de sobrar para os outros

Trump conseguiu a sua primeira grande vitória no Congresso. Os americanos acabarão por conseguir, mais tarde ou mais cedo, dar a volta.

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1. Hoje é um daqueles dias em que é difícil escolher um tema, mesmo que haja muitos, por cá e pelo mundo mas que dispersam a nossa atenção. Donald Trump conseguiu a sua primeira grande vitória no Congresso, desde que está na Casa Branca, com um novo código para os impostos que tem implicações profundas para os americanos. Regressa à velha doutrina da “trickle down economics”, que vem do tempo de Reagan e que se resume facilmente: se os de cima tiverem as condições para ganhar cada vez mais, alguma coisa há-de cair para os de baixo. Reagan praticou-a, com a sua revolução conservadora, mas noutras circunstâncias. Ignorou o défice, impossível de compensar com os cortes nas políticas sociais, mas conseguiu animar a economia americana. A sua grande tarefa, hoje desnecessária, foi a desregulação da economia, deixando a tarefa aos mercados.

Quando chegou à Casa Branca, George Bush (pai), que lhe chamava “economia vodou”, lamentou-se várias vezes de não ter dinheiro para financiar devidamente as forças democráticas que emergiam na Europa de Leste e a transição na União Soviética, liderada por Gorbatchov, por causa do défice que Reagan lhe deixara. Bill Clinton, que se fartou de denunciar, na sua primeira campanha, esta doutrina, como injusta e pouco eficiente, deixou um enorme excedente orçamental ao seu sucessor, aproveitando o crescimento económico, sem deixar de reformar o Estado social. Bush (filho) acabou rapidamente com ele, por causa das guerras que travou. Obama, que herdou uma crise próxima da Grande Depressão e que teve de injectar 700 mil milhões de dólares na economia para salvá-la do pior, também conseguiu reduzir o défice, quando a economia começou a dar sinais de vida, na altura da sua reeleição. Salvou a indústria automóvel. Regulou os mercados financeiros de forma a tentar prevenir uma nova debacle.

Com Trump voltamos ao passado. As enormes reduções fiscais dirigem-se aos empresários e aos ricos em geral; a classe média, já bem “espremida” pelos anos do neoliberalismo e da globalização, continuará mais ou menos na mesma. Os pobres ficarão pior porque são inevitáveis os cortes nos programas sociais. A parte dos republicanos que tradicionalmente não gosta do défice nem da dívida teria dificuldade em negar a Trump esta vitória solitária, depois de ter passado bastante tempo a recusar as iniciativas da Casa Branca, incluindo o Obamacare. O problema é que o Presidente americano, com a sua defesa do proteccionista, vai destruindo os acordos comerciais com os grandes e pequenos blocos económicos, correndo o risco de prejudicar as exportações americanas, mesmo que justifique os cortes drásticos nos impostos com a necessidade de aumentar a competitividade da economia.

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2. Os americanos acabarão por conseguir, mais tarde ou mais cedo, dar a volta. Já o mesmo pode não acontecer com a sua política externa, capaz de destruir a ordem liberal que os EUA construíram, com um custo muito mais pesado para o mundo. Há uma nova dimensão da política externa americana que, muitas vezes, não valorizamos devidamente, que é a saída de cena de qualquer referência que se aproxime da defesa dos direitos humanos no mundo. Rex Tillerson avisou que eles não fariam parte da sua política. Trump não consegue ver a diferença entre a democracia americana e o regime de Putin, como ele próprio afirmou ainda durante a campanha. Este abandono acaba por contagiar as outras democracias, tornando o mundo num espectáculo cada vez mais penoso de ver. E não é só porque a China ocupa cada vez mais espaço deixado vazio pelo Ocidente, sendo que os direitos humanos não fazem parte do seu vocabulário. Putin soma e segue no seu apoio a qualquer torcionário que se lhe apresente.

A Europa, ainda a vencer a crise que a ia matando e a tratar das reformas que lhe podem garantir um futuro num mundo cada vez mais adverso, também anda bastante distraída. Há 15 dias, a CNN foi à Líbia e filmou (com câmaras escondidas) os novos mercados de escravos (não é exagero de linguagem) que funcionam a céu aberto, atirando os imigrantes e os refugiados para uma condição sub-humana vergonhosa e intolerável. Os europeus, incluindo a imprensa, só começaram agora a reagir. Foi apenas há três dias que Jean-Claude Juncker falou no assunto para prometer resolvê-lo. Não se vê como. Foram os europeus, e bem, que ajudaram a derrubar Kadhafi, perante a iminência de um massacre em preparação. Hoje, a sua obsessão passou a ser estancar a torrente dos que atravessam o Mediterrâneo em direcção à Europa. A solução que preferem é mantê-los longe da vista, na Líbia e noutros países de passagem, e avaliar aí a sua condição. Ninguém diz que as respostas sejam fáceis, mas o mínimo que lhes cabe fazer é garantir a sua segurança e a sua dignidade.

Na Síria foi o que foi. No Yemen, “ a guerra que o mundo ignora” à qual a Economist dá esta semana a capa, a mortandade é insuportável. De um modo geral, a indiferença prevalece. Tem de haver uma solução equilibrada, que não é, certamente, ceder à extrema-direita para não perder votos. Qualquer reforma da política externa não pode abdicar desta dimensão da sua relação com o mundo, que é inerente aos seus valores e que faz parte integral do combate ao nacionalismo que mina as suas democracias. Na semana passada, também não demos grande importância à chamada cimeira dos “16 mais 1” (lançada em 2012), reunindo a China com os países da Europa de Leste e dos Balcãs, muitos deles membros da União Europeia, para captar investimento que Pequim tem a rodos e sem qualquer exigência moral. A deriva dos países de Leste para soluções nacionalistas parece alastrar-se ao domínio das relações externas, com “aliados” (Putin e Xi) que sonham em dividir a Europa ou aumentar a sua influência política. Se a Europa, às vezes, andou distraída com os seus problemas, isso não explica a sua deriva autoritária nem justifica qualquer reivindicação.

3. Se regressarmos por um momento à pátria, a eleição de Mário Centeno para a presidência do Eurogrupo (deve ser confirmada amanhã) é uma daquelas coisas sobre as quais não há forma de enganar. Deixo o significado político interno para melhor altura, enquanto o bota-baixismo dá largas à sua imaginação. O que Centeno tem de fazer, já o explicou Sérgio Aníbal no PÚBLICO de sábado, num texto que convém ler. Limito-me ao que significa do ponto de vista da Europa. Em Berlim, pode querer dizer uma nova preocupação em sarar as feridas abertas pela crise da dívida e do euro, que deixaram uma divisão profunda entre o Norte e o Sul, por vezes com laivos de xenofobia. Como António Vitorino costumava dizer numa simples frase, a Europa não sobreviverá a uma realidade em que haja “perdedores” e “ganhadores”, sobretudo se forem sempre os mesmos. É por isso que tanto se insiste na necessidade de completar a reforma da União Económica e Monetária. Merkel tem tido a grande vantagem de aprender depressa as lições que a realidade lhe apresenta, reconhecendo o mérito do actual Governo, recebido na Europa há dois anos com duas pedras na mão. Wolfgang Schäuble já tinha feito o mesmo em relação a Mário Centeno. Como dizia António Guterres, o que é preciso é que as nossas propostas consigam ser boas para nós e boas para a Europa. O resto fez António Costa, com o seu “europeísmo pragmático”, como me dizia um embaixador europeu em Lisboa. Abriu portas e criou pontes que pareciam intransponíveis. A primeira das quais foi perceber que Merkel também tem razões para o que faz e que ganhar a sua confiança era a coisa mais importante. Basta ler o seu discurso de Bruges.

4. Não tenho nada a acrescentar aos textos dos meus colegas sobre o que o jornal deve a Belmiro de Azevedo. Tenho a sorte imensa de ter cinco netos que mudaram completamente a minha forma de olhar a vida. Escutar uma das suas netas dizer-lhe que não se preocupasse, que os netos tratariam da avó e dos pais, foi a coisa mais bela da cerimónia de despedida. Afinal Belmiro não foi apenas um grande empresário.

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