Vamos falar sobre islamofobia?
Quando se fala de islamofobia em Portugal – ‘islamo-quê?’ – parece que nos enganámos no lugar.
Marcou-se há dias, em Londres, o 20º aniversário da publicação Islamophobia: a challenge for us all, da Runnymede Trust que, conjuntamente com a declaração da Conferência Mundial contra o Racismo de 2001 e o relatório do Observatório Europeu do Racismo e Xenofobia de 2006, contribuiu para legitimar o conceito de islamofobia. Em Portugal, o termo entrou em uso após o 11 de Setembro e muito timidamente: alguns editores de texto ainda lhe franzem o sobrolho e o debate tende a desviar-se.
O conceito de islamofobia não é consensual: por um lado, temos leituras mais literais que procuram identificar estereótipos reveladores da aversão aos muçulmanos; por outro, abordagens que a entendem na longa história de relações globais, reflectida nas instituições modernas, que tem construído o Islão como um problema para o Ocidente e os seus auto-proclamados ‘valores universais’. Sigo aqui a definição de S. Sayyid, em A Measure of Islamophobia, que designa a islamofobia ‘como uma forma de governamentalização racializada. É mais que preconceito ou ignorância; é uma série de intervenções e classificações que afectam o bem-estar das populações designadas como muçulmanas’. Esta definição aponta para a dimensão política, e não só religiosa, cultural ou emocional, do ódio aos muçulmanos, assim como para a sua discriminação enquanto muçulmanos, e não como indivíduos que podem sofrer discriminação étnico-racial enquanto imigrantes, árabes ou negros.
Ora quando se fala de islamofobia em Portugal – ‘islamo-quê?’ – parece que nos enganámos no lugar. Muitos correrão a dizer que a questão sócio-demográfica (o pequeno tamanho da população muçulmana, estimada pela comunidade em 50 mil pessoas) explica a ausência de islamofobia. Este argumento pressupõe que um problema tem o tamanho da população que o enfrenta, confundindo o problema da discriminação com a população enquanto problema. Nessa lógica, como se explica o racismo contra a população cigana – hoje reconhecido, ainda que se dê voltas para justificar que é um ‘racismo legítimo’ –, quando esta é igualmente estimada em 50 mil pessoas? Outros virão dizer que a ausência de islamofobia se deve às características da população muçulmana, que está ‘perfeitamente integrada’ em Portugal – fazendo emergir a figura do bom muçulmano de M. Mamdani. Tais afirmações – que continuam a construir o Islão como estrangeiro em Portugal – escondem a multiplicidade de experiências, trajectórias e práticas islâmicas de uma população diversa: nos anos 1950-60 e após o 25 de Abril, proveniente sobretudo da Guiné-Bissau e Moçambique; nas últimas décadas, com uma maior variedade de origens (Bangladesh, Paquistão, Marrocos, Argélia ou Senegal), um estatuto menos privilegiado, e mais jovens muçulmanos portugueses.
São quase inexistentes os estudos empíricos sobre islamofobia em Portugal, mas um inquérito publicado no Relatório Europeu da Islamofobia de 2016, mostra a sua relevância: "Em 2011, quase metade da população de Portugal considerou que a cultura muçulmana e a cultura europeia não eram compatíveis (49,95%), mais de 25% que havia demasiados muçulmanos em Portugal, e 34,4% que os muçulmanos exigiam demasiado". Longe do apregoado paraíso. É interessante cruzar estes dados com os do Pew Research Center, publicados no inquérito Perils of Perception, de 2016, que mostram que a percentagem nacional de muçulmanos é amplamente sobre-estimada: em França, os inquiridos supunham que 31% da população fosse muçulmana, apenas 7,5% o é; nos EUA a estimativa era de 17%, apenas 1% é real; em Espanha, estimava-se 14% e só 2,1% são muçulmanos. Portugal não foi incluído no inquérito, mas avento que se sobrestime o tamanho dos 0,5% que constitui esta população e que se subestime o problema da islamofobia.
Quando analisamos a islamofobia em Portugal, três questões surgem como proeminentes: 1) Ofensas verbais em espaços públicos. A questão dos insultos quotidianos e uso de epítetos ofensivos não se encerra na sua indesejabilidade óbvia ou no ‘politicamente incorrecto’ – o pacote-base de um discurso conservador que mascara o seu privilégio. Por exemplo, chamar ‘bin Laden’ a quem ‘aparenta’ ser muçulmano aponta quer para a função de policiamento da linguagem (denotando quem não pertence), quer para a natureza racializada da categoria muçulmano; 2) Actos de vandalização de lugares de culto. A vandalização da Mesquita de Lisboa foi notícia duas vezes em tempos recentes, designadamente em 2015 e 2017. Em 2015, a inscrição ‘1143’ a azul (segundo a PSP, usada pela extrema-direita para simbolizar a independência de Portugal) lembra que a nossa relação com o Islão não é recente, nem uma questão de ‘vagas de imigração’; 3) Organização política contra o Islão. A petição lançada contra a construção da mesquita da Mouraria mostra que a islamofobia não é um mero discurso de ódio de pessoas que passam as noites online sem mais que fazer, revelando a capacidade de mobilização política em nome da suposta laicidade do Estado.
Quando perguntamos a um muçulmano se há islamofobia em Portugal, frequentemente a resposta é que se sente bem-acolhido e refere semelhanças culturais – como diz Hassane Mezine, em Paris: ‘Les portugais? Ils sont des arabes comme les autres.’ Mas quando a conversa se desenrola e abordamos a islamofobia a nível institucional, perguntando se os seus filhos têm a possibilidade de frequentar ensino religioso do Islão na escola pública ou se é respeitado o direito a usufruir dos seus feriados religiosos – ambos previstos da Lei da Liberdade Religiosa de 2001, mas com requerimentos que os impossibilitam na prática –, então a resposta é um encolher de ombros.
Designar um fenómeno como islamofóbico não é um mero exercício de ciência positivista; como nos diz S. Sayyid, "permite a junção de elementos díspares em formas reconhecíveis de crueldade e injustiça, que é a primeira tarefa para se reclamar a sua rectificação."
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