O Prémio Sonae Media Arte está mais estranho
Segunda edição do prémio tem cinco finalistas e inclui videojogos, pinturas cubistas interactivas e um cemitério digital. Os novos media chegaram ao Museu do Chiado.
Wolfanddotcom, de André Sier, é um videojogo ambiente. Memorial Feed, de André Martins, uma projecção vídeo de um projecto online. Samarra, de Nuno Lacerda, uma instalação interactiva com projecção vídeo e rato óptico. Estivador de Imagens, de Rodrigo Gomes, uma escultura audiovisual. Por último, GOD, de Sofia Caetano, é uma instalação multimédia.
Os cinco projectos finalistas do Prémio Sonae Media Art 2017, revelados na exposição inaugurada ontem no Museu do Chiado, em Lisboa, “mostram nesta segunda edição um enfoque maior, uma maior precisão, nas questões da media arte”, diz ao PÚBLICO Emília Tavares, curadora da exposição e responsável pela área da fotografia e dos novos media na instituição.
“A ideia inicial do prémio foi começar a olhar para uma vertente muito nova, a relação da arte com a inteligência artificial, a realidade virtual, a cibernética. Quis apoiar a criação e fazer uma reflexão neste momento de transição do uso da tecnologia nos processos artísticos”, continua Emília Tavares. Já não se trata só de vídeo e do som, introduzidos pelas neovanguardas, mas de uma mescla de hardware mais complexa, que passa, como vimos aqui, pelos videojogos ou pela ligação à rede.
Os cinco finalistas foram escolhidos entre 123 candidaturas aprovadas, lembrou Catarina Oliveira Fernandes, directora de Comunicação e Marca da Sonae (grupo proprietário do PÚBLICO). Receberam, cada um, uma bolsa de 5000 euros para desenvolver uma peça inédita para esta exposição e concorrem agora a um prémio no valor de 40 mil euros.
Dedicado a “uma área um bocadinho estranha”, como alguns consideraram na altura em que foi lançado em 2014, este é o maior prémio artístico na área do multimédia, acrescentou a responsável da Sonae, e um dos mais relevantes na área da cultura. Será anunciado a 6 de Dezembro — a primeira edição distinguiu Tatiana Macedo em 2015, pois o prémio é bienal — numa escolha feita por um júri composto por Filipa Oliveira (directora artística do Fórum Eugénio de Almeida), Nuno Crespo (professor universitário e crítico do PÚBLICO) e Ramus Vestergaard (director do dinamarquês Digital Interactive Art Space).
Entre quatro homens e uma mulher, com idades que variam entre os 23 e os 40 anos (o limite etário dos concorrentes), os cinco artistas mostram trabalhos, quase sempre em espaços negros, que apostam na “interactividade” e na “imersividade” do espectador. “Como espectador tenho os mesmos comportamentos, peço as mesmas relações que tenho quando estou a jogar videojogos. Muitas vezes, aqui na exposição, perdemos a relação com o espaço em volta”, acrescenta Emília Tavares.
Em alguns dos trabalhos apresentados já há uma trama proposta pelos artistas, cabendo depois ao espectador construir a relação de imagens que quer, mas podemos perguntar de que forma é que, no futuro, “a inteligência artificial pode vir a competir com o artista e com o curador”. Aqui fica uma visita guiada pelo presente, acompanhando os cinco artistas pelo percurso do Museu do Chiado.
Entrar na pintura
Samarra, uma instalação interactiva com projecção vídeo e rato óptico, de Nuno Lacerda, 34 anos
Samarra, que dá título a esta instalação vídeo, é uma pedreira abandonada que fica perto da praia da Samarra, na zona de Sintra, começa por explicar Nuno Lacerda, um artista que também trabalha como monitor no serviço educativo do Museu Berardo. Samarra é uma paisagem que resulta da composição de vários vídeos, como se fosse “uma composição cubista, uma colagem de planos em vídeo”.
Embutidos, ou escondidos, nesta paisagem cubista estão vários vídeos que podem ser activados pelo visitante da exposição através de um rato que está poisado sobre um plinto no meio de uma sala a meia-luz. “O espectador é convidado a explorar e a entender a própria lógica da interacção, que não é tão linear quanto possa parecer, e a descobrir os vários vídeos escondidos.”
Descobrir os vídeos significa descobrir muitas memórias do artista. “Se passarmos aqui com o rato, descobrimos outro plano que é uma palmeira que não pertence àquele espaço. Estava no quintal dos meus pais, a morrer com a doença do escaravelho. Mas também apareceram uns gatos que tiraram o máximo partido dela. Tudo isto aparece conforme a interacção das pessoas.” Agora é a vez de surgir um cão da família, o último sobrevivente de uma matilha de cães que já foi muito maior.
Durante os cinco meses que tiveram para trabalhar no projecto, foram acontecendo coisas na vida de Nuno Lacerda, coincidências em relação àquele espaço, que acabaram por entrar na paisagem, como o internamento da avó num lar situado a três minutos de distância da praia. “O que procurava era projectar neste espaço uma espécie de limbo, de repositório de recordações entre a vida e a morte.” O resultado, nas suas palavras, é uma pintura que podemos percorrer.
Imagens em tempos de drones
Estivador de Imagens, de Rodrigo Gomes (26 anos), uma escultura audiovisual
Esta obra, que se chama Estivador de Imagens, é um simulador de bombardeamentos, que passa pelas memórias da Guerra Fria no Arizona ou pela utilização, mais recente, dos drones na guerra. A obra, tal como a anterior, fala da construção espacio- temporal de uma imagem. Trata-se de uma escultura audiovisual, dividida em vários planos, sobre a qual são reflectidas imagens de um território onde se simula uma batalha.
O primeiro plano, colado ao chão e composto por quatro espelhos, serve de base a outros dois planos, um mais opaco e outro mais transparente, que se sobrepõem. Se olharmos para o plano dos espelhos, explica o artista, “é quase como se entrássemos noutro espaço, que conserva temporalmente a imagem que é reflectida num segundo plano, que é o plano da projecção”. O plano da projecção mostra uma imagem topográfica da NASA, construída e reconstruída digitalmente, ao mesmo tempo que um interface de simulação de voo vai identificando certos pontos na imagem, recriando um cenário de guerra. A projecção emite disparos, acompanhada por sons.
“Um terceiro plano, o do acrílico transparente, introduz volatilidade, fazendo a imagem desvanecer-se”, reflectindo no espaço em volta, explica Rodrigo Gomes, a fazer um mestrado em Arte Multimédia na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Aí, passamos para um quarto espaço, que é onde circulamos, e já estamos no próprio tempo do observador.
O artista cita o filme War at a Distance (2003), de Harun Farocki: “A imagem não é mais usada só como testemunho, mas também como uma ligação indispensável num processo de produção e destruição.”
Arqueologia cibernética
Wolfanddotcom, um videojogo ambiente, de André Sier, 40 anos
O videojogo ambiente de André Sier — que na prática são duas projecções interactivas — mostra um futuro distópico, onde já não existe humanidade mas apenas animais. Estes animais, lobos, tentam recriar redes electrónicas entre eles para dar continuidade à vida no planeta. “O projecto levou-me um bocadinho a estudar a arqueologia das comunicações por computador, bem como a arqueologia da estrutura dos ficheiros no computador. Essa acaba por ser essa a minha paisagem”, explica o artista electrónico, também professor na Universidade de Évora.
Sob a forma de um jogo interactivo, essa paisagem é transposta para dois ecrãs duplos, que as pessoas podem manipular através de esculturas-assento em forma de lobo, onde acedem aos joysticks, ou através de uma aplicação de telemóvel. “Há um jogo estocástico [com variáveis aleatórias], onde os lobos habitam um terreno feito através da estrutura dos ficheiros de computador, a forma como os bytes estão encadeados uns nos outros. É um microuniverso da estrutura do computador e como os ficheiros lá dentro estão organizados. Esse tipo de padrões visuais são fractais e bastante interessantes.” A obra, tal como a de Nuno Lacerda, propõe-se como uma pintura dinâmica e interactiva.
Um cemitério para o Facebook
Memorial Feed, uma projecção vídeo de um projecto online, de André Martins (23 anos)
Este é um projecto online, um website, feito através da actuação aleatória de um web crawler. Um robô, explica André Martins, que dentro do Facebook procura contas memorializadas, a forma que a rede social arranjou para tratar das páginas das pessoas que morrem, depois de um pedido da família e do óbito comprovado. “Quando o robô encontra essas contas, indexa-as numa base de dados. A base, como obra, pode ser presenciada fisicamente como esta projecção no Museu do Chiado, onde as pessoas podem ver como esta grelha, este feed, vai crescendo ao longo do tempo, ou pode ser acedida através da página da Internet”, diz o artista, neste momento a fazer um mestrado em Antropologia na Universidade Nova de Lisboa. Memorial Feed já juntou 500 pessoas.
É na rede que podemos ver toda a informação que as pessoas partilharam em vida, desde que as páginas estejam públicas. “Este cemitério não tem um peso cultural local, pois é partilhado por pessoas de diferentes pontos do planeta. É um cemitério digital global.” É um cemitério sem hierarquias, desmaterializado, onde os perfis são captados por uma máquina. “O que quis foi evocar um espaço de reflexão sobre a morte.”
Interagir com Deus
GOD, uma instalação multimédia, de Sofia Caetano (30 anos)
Sofia Caetano, uma açoriana que vive em Pitsburgo, nos EUA, mostra uma instalação multimédia que recria o ambiente de uma nave espacial. Ao fundo da sala, numa espécie de altar em forma de retábulo a que se acede através de uma passadeira, é exibida uma montagem de filmes de 16mm, comprados no eBay, que recria a Criação do Mundo, conforme descrita nos Génesis.
Num botão com a palavra “God” inscrita, os espectadores podem activar os dias da Criação do Mundo, demonstra Sofia Caetano: “A ideia é que o espectador se depare com a questão de Deus, interaja, que despolete esta projecção de vídeo.” A obra contrapõe, explica a autora, espiritualidade e tecnologia, velhos media e novos media.