Como Silicon Valley está a apagar a nossa individualidade

Aceitamos a omnipresença das grandes empresas de tecnologia como um facto consumado, aproveitamos a sensação de fazer parte de uma comunidade, damos até em troca a nossa privacidade. Terá chegado a hora de acabar com esse conformismo?

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Até há bem pouco tempo, era fácil identificar o que faziam as empresas mais famosas do mundo. Qualquer criança da primária saberia descrever a sua essência. A Exxon vende petróleo; a McDonald’s faz hambúrgueres; a Walmart é um sítio onde se compra coisas. Agora já não é assim. Os monopólios em ascensão querem abranger toda a existência humana. O nome Google deriva de “googol”, um número (1 seguido de 100 zeros) que os matemáticos usam para descrever quantidades inimaginavelmente grandes. Larry Page e Sergey Brin fundaram a Google com o objectivo de organizar todo o conhecimento, mas isso revelou-se demasiado limitado. Agora, apontam a produzir carros que se guiam sozinhos, fabricar telemóveis e desafiar a morte. A Amazon, que chegou a considerar-se “a loja de tudo”, hoje produz programas de televisão, é dona da Whole Foods e alimenta a “cloud”. O homem que arquitectou a empresa, Jeff Bezos, é até dono do Washington Post.

Estas duas empresas juntam-se à Microsoft, Apple e Facebook na corrida para se tornarem no nosso “assistente pessoal”. Querem acordar-nos de manhã e fazer com que o seu software de inteligência artificial nos guie pelos nossos dias, sem nunca deixar de estar presente. Aspiram a tornarem-se o repositório dos nossos detalhes mais preciosos e privados, dos nossos calendários e contactos, das nossas fotografias e documentos pessoais. A sua intenção é que nos viremos instintivamente para elas quando procuramos informação ou entretenimento, ao mesmo tempo que catalogam as nossas intenções e aversões. O Google Glass e o Apple Watch preconizam o dia em que essas empresas irão implantar a sua inteligência artificial nos nossos corpos. Brim já disse que “talvez no futuro possamos anexar uma pequena versão do Google aos nossos cérebros.”

Mais do que qualquer outro anterior círculo empresarial, os monopólios das empresas de tecnologia aspiram a moldar a humanidade à imagem das suas visões. Pensam ter a oportunidade de completar a ponte entre homens e máquinas – e assim redireccionar a trajectória da evolução da humanidade. E como é que eu sei isso? Em discursos e encontros anuais, os Pais Fundadores destas empresas fazem constantemente declarações grandiloquentes sobre a natureza humana – e pretendem que todos nós concordemos com essa visão. Page acha que o corpo humano não passa de um código básico: “Os algoritmos dos seus programas não são assim tão complicados”, diz a quem o ouve. E se os humanos funcionam como os computadores, porque não apressar o dia em que nos tornamos completos cyborgs? E não devemos esquecer a grandiosa teoria do criador do Facebook, Mark Zuckerberg, que já exclamou a sua vontade em libertar a humanidade da falsidade e assim acabar com a desonestidade dos segredos.

“É provável que os dias de as pessoas terem uma imagem diferente para os amigos ou colegas de trabalho e para as outras pessoas que conhecem estejam a acabar rapidamente”, já chegou a afirmar. “Ter duas identidades é um exemplo de falta de integridade.” Claro que estas declarações são não só uma manifestação de idealismo mas também uma elaborada justificação para o modelo de negócio do Facebook.

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Mural na sede do Facebook em Menlo Park, California Kim Kulish/Getty Images

Há frequentemente uma ideia redutora sobre a visão que os tecnólogos têm do mundo. Assume-se que Silicon Valley é dominada pelo libertarianismo, o que não é totalmente mentira: encontram-se por lá muitos proeminentes devotos de Ayn Rand [escritora e filósofa norte-americana criadora do Objectivismo, corrente filosófica-base das principais teorias libertárias]. Mas se ouvirmos atentamente os titãs da tecnologia, torna-se claro que as suas visões do mundo são algo quase diametralmente oposto à veneração libertária do indivíduo, heróico e solitário. Pelo contrário, as grandes empresas de tecnologia acham que nós somos fundamentalmente seres sociais, e que a nossa existência é intrinsecamente colectiva. A sua fé é investida na rede, na sabedoria das massas, na colaboração. Sentem um profundo desejo pela concretização da promessa de um mundo atomista [teoria sociológica que assenta na noção de que o indivíduo é a unidade-base de análise de todos os componentes da vida social]. “O Facebook significa aproximarmo-nos e construirmos uma comunidade global”, escreveu Zuckerberg num dos seus muitos manifestos. Querem curar os males do mundo unindo-o num só.

Retoricamente, as empresas de tecnologia apontam para a individualidade – para o empoderamento do “utilizador” –, mas a sua visão do mundo, na realidade, esmaga-a. Até a ubíqua invocação de “utilizadores” é reveladora disso, uma descrição passiva e burocrática da nossa existência. Estas grandes empresas (a que os europeus começaram a chamar GAFA – Google, Apple, Facebook, Amazon) estão a estilhaçar os princípios que protegem a individualidade. Os seus programas e sites destroem a privacidade e, com a sua hostilidade para com a propriedade intelectual, desrespeitam o valor da autoria. No plano económico, justificam os seus monopólios sugerindo que a competição só atrasa a resolução dos problemas importantes, como derrubar as barreiras linguísticas ou construir cérebros artificiais. Como o investidor do Facebook Peter Theil diz, as empresas devem “transcender a brutal luta diária pela sobrevivência.”

Quando se trata do princípio mais central do individualismo – a livre vontade – as empresas de tecnologia têm a sua própria maneira de ver as coisas. Esperam poder automatizar as escolhas que fazemos, tanto as grandes como as pequenas, enquanto flutuamos pelo dia. São os seus algoritmos que sugerem as notícias que lemos, os bens que compramos, os itinerários que escolhemos, os amigos que convidamos para nossos círculos.

É difícil não nos maravilharmos com estas empresas e as suas invenções, que muitas vezes tornam a vida infinitamente mais fácil. Mas já passámos demasiado tempo maravilhados. Chegou a altura de pensarmos nas consequências destes monopólios e reafirmarmos o nosso papel na determinação do caminho da evolução humana. Se ultrapassarmos certas linhas – se transformarmos totalmente os meios de comunicação e as editoras, se abandonarmos completamente a privacidade – não é possível voltar atrás, não conseguiremos reclamar a nossa individualidade perdida.

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Loja da Apple em Tóquio na véspera do iPhone 5S ser posto à venda Toru Hanai/reuters

"Guardiões” do acesso à informação

Ao longo das gerações, já passámos por revoluções como esta. Há muitos anos, deleitámo-nos com a maravilha que era jantar em frente à televisão e com os inovadores alimentos que de repente encheram as nossas cozinhas: fatias de queijo envolto em plástico, pizzas recheadas que emergiam de um bloco de gelo, caixas de petiscos crocantes. Pareciam invenções revolucionárias na história humana. Tarefas demoradas, como comprar ingredientes, preparar uma receita chata ou ter de lidar com um monte de panelas e frigideiras, passaram repentina e milagrosamente à história.

A revolução na culinária não foi apenas fascinante. Foi transformacional. Os novos produtos incorporaram-se profundamente na vida quotidiana, de tal maneira que demorou décadas a percebermos o preço que pagámos pela sua conveniência, eficiência e abundância. Os alimentos processados foram conquistas tecnológicas, é certo – conquistas tecnologicamente concebidas para nos engordar. O seu sabor delicioso exige quantidades maciças de sódio e de açúcar, o que reconfigurou os nossos paladares e tornou difícil saciar a fome. É preciso uma grande quantidade de carne e de milho para fabricar esses pratos, e o aumento da procura transformou completamente a agricultura americana, com custos ambientais terríveis. Surgiu um novo sistema de agricultura industrial, regido por multinacionais que se digladiam por todos os cêntimos, e que para isso estão dispostas a encher frangos de antibióticos e a empilhá-los em compartimentos a abarrotar e cobertos de fezes. Quando finalmente fomos capazes de entender as consequências dos nossos novos padrões de consumo, os danos já eram visíveis nas nossas cinturas, na nossa longevidade, nas nossas almas, e no nosso planeta.

É algo como a revolução alimentar de meados do século passado que está hoje a reordenar a produção e o consumo do conhecimento. Os nossos hábitos intelectuais estão a ser misturados pelas empresas dominantes, que se tornaram nos mais poderosos “guardiões” do acesso à informação que o mundo já conheceu. O Google ajuda-nos a ordenar a Internet, providenciando um sentido de hierarquia da informação; o Facebook usa os seus algoritmos e o seu intrincado conhecimento dos nossos círculos sociais para filtrar as notícias que encontramos; a Amazon alia a edição de livros ao seu domínio avassalador desse próprio mercado.

Tal domínio dota estas empresas da capacidade de reformularem os mercados que controlam. Tal como os gigantes da indústria alimentar, as maiores empresas de tecnologia deram origem a uma nova ciência, que visa construir produtos que satisfaçam os gostos mais básicos dos seus consumidores. Ao contrário das pesquisas de mercado e das audiências televisivas do passado, estas empresas têm acesso a uma quantidade infindável de dados, adquirida à medida que acompanham as nossas viagens pela Internet e armazenam cada fragmento sobre os nossos hábitos, na esperança de que possam vir a ser úteis um dia. Fazem um retrato íntimo da psique de cada utilizador – um retrato que esperam explorar de modo a nos puxarem para uma espiral compulsiva de clicks e visualizações. E funciona: em média, cada utilizador do Facebook gasta 6,25 % do seu dia no site.

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Campus da Google em Los Angeles, desenhado pelo arquitecto Frank Gehry LUCY NICHOLSON/reuters

Mentes de colmeia

Na esfera do conhecimento, monopólio e conformismo são riscos inseparáveis. O perigo é que estas empresas usem inadvertidamente o seu domínio para suprimirem a diversidade de opiniões e de gostos. A concentração leva à homogeneização. À medida que os meios de comunicação se tornaram cada vez mais dependentes do Google e do Facebook para gerar tráfego – e consequentemente receitas –, a sua preocupação passou a ser produzir conteúdos que floresçam nessas plataformas. Isso levou a uma nunca antes vista multiplicação de notícias copiadas, com dezenas de sites pela Internet a debruçarem-se sobre as mesmas indignações diárias. É assim que a imagem de um vestido de cor misteriosa gera incontáveis artigos e que imensos sites oferecem o seu sumário da “Guerra dos Tronos”. Cada contribuição para o mesmo género adiciona muito pouco, a não ser clicks. Os media antigos também tinham uma mentalidade de manada, mas a Internet prometia-nos algo muito diferente. E a prevalência de tanta informação torna ainda maior a tentação de satisfação básica e imediata.

O mesmo acontece na política. A nossa era é marcada pela polarização, pela disputa entre grupos ideológicos antagónicos que não cedem um milímetro. Mas a divisão, contudo, não é a causa da impraticabilidade do nosso sistema. Há muitas razões, mas um dos principais problemas é o conformismo. O Facebook alimenta em nós duas “mentes de colmeia” [hive minds no original, termo que designa uma mentalidade colectiva desprovida de identidade e livre arbítrio], cada qual residindo num ecossistema informativo que produz apenas acenos de cabeça em concordância e rejeição das visões divergentes. Foi a este fenómeno que o empresário e escritor Eli Pariser celebremente chamou de “Filter Bubble” [O Filtro Invisível, na tradução da edição brasileira do livro com o mesmo nome] – a maneira como o Facebook explora os dados que tem sobre nós para nos dar as notícias e a informação que queremos ler, criando assim um círculo de feedback que nos empurra cada vez mais para as profundezas das nossas verdades universais.

Como as eleições americanas de 2016 ilustraram tão vivamente, uma “mente de colmeia” é uma mente intelectualmente incapacitada, com uma reduzida aptidão para distinguir realidade e ficção, e com uma fé inabalável na linha partidária. A Rússia percebeu bem isto, e foi por isso que foi tão bem-sucedida em espalhar “agitprop” de origem suspeita via Facebook. E foi também por isso que surgiram uma série de empresas – “Occupy Democrats”, “the Angry Patriot”, “Being Liberal” – que lucram com o “Filter Bubble” e que exploram a nossa susceptibilidade às notícias da pior qualidade possível, se é que podemos chamar-lhes notícias.

O Facebook representa um desvio perigoso na história dos media. Antes, as elites viam-se orgulhosamente como “guardiões”. Podiam ser snobs e subservientes ao poder, mas sentiam também o dever de elevar os padrões da sociedade e dos leitores. Os executivos de Silicon Valley consideram esses “guardiões intelectuais” os insípidos inimigos da inovação – acham-se mais neutrais, científicos e atentos às necessidades do mercado do que as elites que vieram substituir – uma perspectiva que turva o seu próprio poder e as suas próprias responsabilidades. E o resultado é que, em vez de moldarem a opinião pública, exploram as piores tendências do público: o seu tribalismo e paranóia.

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A Rússia "percebeu bem" como explorar "a nossa susceptibilidade às notícias da pior qualidade possível, se é que podemos chamar-lhes notícias", afirma Franklin Foer, autor de "World Without Mind: The Existential Threat of Big Tech" SHAWN THEW/reuters

Nas mãos do monopólio

Durante este século, temos tratado Silicon Valley como se fosse uma força fora do nosso controlo. Estabeleceu-se o consenso geral de que os governos, rígidos e morosos, nunca conseguiriam acompanhar o dinamismo da tecnologia: no momento em que um governo agisse contra um monopólio tecnológico, um qualquer miúdo numa garagem já estaria a aparecer com uma inovação prestes a transformar completamente o mercado. Ou, como disse uma vez Eric Schmidt, da Google, “a competição está a um click de distância”, afirmação que sugere que a própria estrutura da Internet desafia as nossas históricas preocupações com os monopólios.

Como indivíduos, aceitámos a omnipresença das grandes empresas de tecnologia como um facto consumado. Aproveitámos os seus produtos gratuitos e as entregas no dia seguinte apenas com aquela sensação irritante de que podemos estar a dar algo importante em troca. Tal despreocupação não pode continuar a ser sustentada. A privacidade não sobreviverá à trajectória actual da tecnologia – e com a sensação de se sentirem perpetuamente observados, os humanos irão tornar-se mais cautelosos, menos subversivos. Também os nossos pressupostos sobre a economia de mercado estão em risco. Sem perspectivas de poderem derrubar os gigantes, os empresários vão arriscar menos na criação de novas empresas, a fonte primária de empregos e de inovação. E a proliferação de mentiras e conspirações pelas redes sociais, a dissipação dos “factos” como uma base comum a todos nós, estão a criar condições favoráveis para os autoritarismos. Ao longo do tempo, a relação entre homem e máquina resultou em grandes benefícios para o homem. Mas estamos a entrar numa nova era, uma em que essa relação ameaça o indivíduo. Estamos a cair nas mãos do monopólio, do conformismo, das máquinas deles. Talvez seja tempo de voltarmos a ditar o nosso destino.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post. Tradução de António Domingos. O excerto do livro World Without Mind: The Existential Threat of Big Tech encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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