Ai Catalunha
É difícil interpretar os acontecimentos da Catalunha. O que impressiona é a vontade de auto-engano de quase metade dos catalães. É usual falar num “nacionalismo infeliz” que se alimenta das derrotas históricas, reais ou imaginárias. Porém, não explica tudo.
A sucessão dos últimos acontecimentos dá vertigens. No dia 1 de Outubro, é o “referendo”. No dia 10, o president Carles Puigdemont declara e logo suspende a independência. No dia 26 está prestes a convocar eleições autonómicas. A Esquerda Republicana (ERC) de Oriol Junqueras ameaça abandonar o govern e Puigdemont recebe tweets que o tratam de “judas” e “traidor”. Volta atrás. E, no dia 27, o parlament aprova, por 70 votos em 135, a proclamação de independência. O Senado responde votando a intervenção estatal, o Artigo 155. Mariano Rajoy destitui o govern e convoca eleições autonómicas. No domingo 29, há a segunda manifestação de Barcelona pela unidade dentro da Espanha.
Previa-se que o 155 “incendiaria a Catalunha” e, com surpresa, assistiu-se ao desmoronamento de um castelo de cartas. O chefe dos Mossos (polícia catalã) aceita a destituição. Carme Forcadell, presidente do parlament, respeita a intervenção. Os partidos independentistas entram em pânico e logo decidem concorrer às eleições autonómicas, o que significa reconhecer a legalidade nacional e dar por nulos o referendo e a proclamação da independência.
Da epopeia ao ridículo
Faltava o pior. Na segunda-feira, os consellers (ministros) tinham previsto ocupar os seus gabinetes na Generalitat e continuar a governar. Esperavam que a polícia espanhola os fosse expulsar, em confronto com uma multidão nacionalista e perante as televisões mundiais. A ideia era criar um tal caos que a Europa seria forçada a intervir. Só um conseller o fez até que os Mossos o convidaram a sair. Na segunda-feira de manhã, foi emitida por uma televisão uma entrevista de Puigdemont em que dizia continuar em funções. Era uma cortina de fumo. De facto, estava a viajar para Marselha, onde apanhou um avião para Bruxelas, acompanhado por vários consellers (ministros).
À derrota segue-se o ridículo da fuga. Puigdemont deixa os outros acusados nas mãos da Justiça espanhola. Ele foi a cara do êxtase que arrastou meia Catalunha para a aventura. Os independentistas sentem-se perplexos e não percebem. Morreu a epopeia.
A tragédia anunciada redundou em ridículo. Dizia Josep Tarradellas, o president que veio do exílio para restaurar a Generalitat em 1977: “En política es pot fer tot, menys el ridícul.” (“Em política pode fazer-se tudo, menos o ridículo.”)
Mas o filme não acabou. A prisão dos oito consellers muda de novo o cenário. É simples: pode transformar as eleições de 21 de Dezembro num “plebiscito” contra o Estado espanhol. O dilacerado campo nacionalista tenta recuperar a coesão, já não em torno da independência mas da repressão. A par disto, está aberta uma brecha entre o Supremo Tribunal e a Fiscalía (Procuradoria), com o Supremo a manifestar uma atitude mais ponderada e garantista. É caso para dizer que também a Justiça “pode fazer tudo, menos o ridículo”.
A nova “revolução burguesa”?
O que mais impressiona no procés independentista é que “metade da Catalunha” seguiu o canto das sereias e aceitou sem críticas as mais descaradas falsificações — porque convinha aos sentimentos. Diziam perseguir o “sonho”, mola mais poderosa do que a razão. Quiseram acreditar na miragem mesmo quando o isolamento internacional era total e os bancos e empresas fugiam da Catalunha. Junqueras justificou a fuga das empresas pela “repressão espanhola” no dia do referendo. Quem queria acreditar acreditou. Hoje, fala-se na “decepção dos independentistas de boa fé”. Foram eles, no entanto, que elegeram os líderes que vendiam os “sonhos inebriantes” e em que, muito provavelmente, voltarão a votar no dia 21 de Dezembro.
Não se trata de “incultura”. Com os números na mão, resume o politólogo Kiko Llaneras: “Há mais partidários do ‘não’ [à independência] entre desempregados, reformados e pessoas que se declaram de rendimento ‘baixo’ ou ‘médio baixo’. O independentismo ganha, em compensação, entre os trabalhadores do sector público. E tem também mais êxito entre pessoas com estudos universitários ou pós-graduações, que é um indicador de classe e indicia rendimentos altos.” E os jovens são a força de choque.
Anota noutro estudo o economista Luis Abenza: “O conservadorismo catalão concebeu historicamente a Generalitat como a sua coutada de caça privativa e aspirou historicamente a ter maior influência sobre as decisões políticas. E muitos grupos de interesses e intelectuais aspiram a ter uma maior quota de poder no novo Estado do que aquela a que poderiam aspirar em Madrid. A secessão é a estratégia revolucionária da burguesia catalã.” Foi “traída” pelos bancos cuja sobrevivência depende do Banco Central Europeu. Fora da UE “não há salvação”.
Há muitas interrogações. Por que estalou a tempestade nacionalista na Diada de 2012? Martín Alonso, professor de Economia na Universidade de Barcelona, pensa que a explosão tem mais que ver com os efeitos da crise económica do que com a querela do Estatuto. Lembra que, em 2010 e 2011, a Diada não mobilizou mais de 10 ou 15 mil pessoas. Em 2012 são centenas de milhares a proclamar “Catalunha, novo Estado da Europa”. Que se passou? A agenda social prevaleceu até 2012. “Aí, a indignação do 15-M foi desviada na Catalunha por via identitária”, patente na reconstrução mítica da derrota de 1714.
“Quando os problemas são formulados em termos identitários, a solução é muito difícil — porque põem em causa o sujeito que os defende.” Deixa de ser possível o debate e, muito menos, o diálogo. Os termos identitários favorecem os extremos. Em Madrid, fortalecem os sectores mais reaccionários e centralistas. Na Catalunha, estão a destruir o nacionalismo moderado. A derrapagem é simples de explicar. A Generalitat — a começar por Puigdemont — abdicou do seu poder e perdeu o controlo do processo. Ou seguia a CUP, a Òmnium e Assembleia Nacional Catalã, ou era acusada de traição.
Força ou fraqueza?
Sabemos que a “reinvenção” nacionalista da história produz mitos tóxicos, tanto na Catalunha como em Espanha. Não quero aqui resumir esse infindo debate histórico. Evoco uma nota do jornalista Enric Company em 2012: “O bloco social que se está a condensar politicamente em torno do independentismo não se expande impulsionado pela consciência da força da Catalunha, mas, ao contrário, pela certeza de uma fraqueza que ameaça a sua sobrevivência como nação.” É a ideia da Catalonia Infelix, título de um livro do hispanista britânico Edgar Alison Peers, escrito em 1937.
O independentismo torna-se, na expressão da socióloga Marina Subirats, numa “utopia de substituição”, no sentido em que passa a fundir todas as frustrações e o mal-estar da sociedade. “Não é racional, é visceral. É o desejo de sair de onde estamos.” Daí a sua potência emocional, mas também a sua debilidade política.
Um outro catalão, o poeta Gabriel Ferrater, interrogava-se, em 1967, sobre as razões que impediram a existência de uma tradição do grande romance, como a russa, a inglesa ou a francesa. Explicava que se devia ao temor de narrar os conflitos internos da sociedade. “Só podiam interpretar as discórdias sociais intercatalãs como uma discórdia entre a Catalunha e o resto da Espanha.”
Investigadores do Real Instituto Elcano publicaram há dias um relatório sobre o conflito catalão que se resume numa frase: “Não tem solução, é um problema com que temos de conviver, porque não há uma saída que possa contentar a todos os implicados.” É verdade que terão de “conviver”. Mas isto não esgota o problema.
As eleições de 21 de Dezembro, convocadas por Rajoy, tanto podem agravar a ruptura entre “as duas Catalunhas” como, paradoxalmente, dar aos nacionalistas a oportunidade para uma negociação a sério no terreno constitucional. O Estado espanhol não pode esquecer o que se passou nestes cinco anos. E os dirigentes catalães terão aprendido algo com o “banho de realidade”.
Se relerem Torradellas, perceberão que uma reforma nunca poderá satisfazer todas as aspirações. Ele explicou incisivamente: “O Estatuto da Catalunha não agrada a ninguém; nem aos deputados, nem aos senadores, nem a mim, nem a Adolfo Suárez.” É o segredo das boas negociações.
Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO