Na cidade de Puigdemont, o bairro de Vila-roja fartou-se e agora é Espanha

“Bem-vindos a Espanha”, aqui acaba a república catalã. Aqui é Girona mas nem parece. Aqui é um bairro pobre de gente que se fartou. “De noite alguns puseram-se a trabalhar, de manhã estávamos em Espanha”.

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Carles Puigdemont em Girona, no sábado, a sua cidade Robin Townsend/EPA

Maria de Jesus Ballen é quase a única habitante que a esta hora anda pelo bairro e não está pelas bandas do café Bar Cuellar, que não é o único de Vila-roja, mas é como se fosse, ninguém se lembra que o outro existe. É mais ou menos como ninguém se lembrar que vive em Girona. “Dizemos sempre que vamos à cidade, que vamos às compras a Girona”, conta Jesus.

Percebe-se que Jesus e os vizinhos tenham de ir fazer compras a Girona. Vivem umas 1200 pessoas aqui e para além do Cuellar há o café Córdoba, mesmo à entrada do bairro, sem esplanada e sem clientes, como se ninguém o visse porque o bairro, na verdade, só começa mais ao cimo da rua que sai da estrada e o atravessa. Parece que não há mais nada, olhando com atenção descobre-se a loja de Tabaco fechada e um armazém de venda a grosso abandonado.

Há um autocarro que entra no bairro, sobe até ao cruzamento e volta a descer, e duas escolas, a primária e a do campo relvado, onde se estuda até ao 9º ano. De resto, umas três ruas largas com prédios de cores escuras, mais umas ruas estreitas, com casas pequenas de um só andar.

A melhor casa do bairro é a da família Ballen, vivenda de dois andares, uma varanda no segundo, bandeira espanhola orgulhosa hasteada, à entrada um pequeno terraço que Jesus está a lavar, esfregona em punho, impecável nas suas calças e ténis pretos, T-Shirt da mesma cor com o contorno da cabeça do rato Mickey em lantejoulas douradas, pequenos brincos de ouro, óculos escuros presos na cabeleira loura que sol não há.

“Isto é triste e eu acho que ainda vamos pagar pela ousadia, mas entretanto sempre nos rimos. Olha, ontem uma vizinha dizia-me de manhã, ‘vê lá tu como estão as coisas, Jesus, abri o frigorífico e tinha a tortilha a atirar uma batata ao creme catalão’”, conta a filha de pais sevilhanos, “mas sevilhanos mesmo”.

A ousadia de Vila-roja tem uma semana. No dia a seguir ao parlamento autonómico da Catalunha ter aprovado em resolução “a proclamação da República”, sexta-feira, 27 de Outubro, “acordámos e estávamos em Espanha”, diz Mariana, 58 anos, sentada como não podia deixar de ser numa das mesas da esplanada do Cuellar.

Foi mais ou menos assim. Num bairro de salários baixos e muito desemprego, onde se enraizou a prática de organizar colectas, para funerais, casamentos ou para o que tiver de ser, não terá sido difícil reunir o dinheiro para comprar as 60 bandeiras de Espanha espalhadas pelas casas mais duas faixas que atravessam a rua principal. “De noite alguns puseram-se a trabalhar, e pronto, de manhã estávamos em Espanha”.

“Bem-vindo a Espanha”, lê-se na faixa mais larga. “Vila-roja Espanha”, escreveu-se a negro na outra. “Gostaste da minha bandeira?”, pergunta Pablo. “Fui eu que a pintei, eu e um amigo”. A bandeira do Pablo é a do muro, logo à entrada no bairro. Pablo é pintor, lá está. Dani, que está a tomar café com o amigo, também. Roupa de trabalho, vieram comer uma sandes e estão quase de saída para o turno da tarde.

O fim da estrada

Não há muitos empregos disponíveis por aqui. Na estrada que nos traz do centro, da verdadeira Girona, mesmo antes da grande morgue que é o único motivo para o resto dos habitantes se aproximarem de vez em quando, há uma série de pavilhões com pequenas empresas. Vendem-se pneus, loiça sanitária, pavimentos para interiores, há garagens e a bomba da Repsol.

É como uma pequena cintura industrial daquelas que rodeiam ou assinalam o fim de tantas cidades. Aqui, marca a passagem da cidade para Vila-roja. Passada a grande morgue e a Obra Social Sagrada Família, quando se chega à rua que entra no bairro avista-se em frente, a menos de 50 metros, a placa que assinala o fim de Girona. Estamos no limite leste da cidade, famoso por um pequeno conjunto de bairros pobres e de má fama.

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A bandeira colocada no bairro de Vila-roja Sofia Lorena

Vila-roja, onde é difícil encontrar habitantes que não sejam andaluzes ou filhos de andaluzes; Mas Ramada, que também tem muita gente vinda de outras partes de Espanha; e Font de la Pólvora, “o bairro onde se concentra a população cigana”, explica Mariana, eleita porta-voz entre os que estão neste início de tarde na esplanada do Cuenca. “Somos marginalizados, ninguém se importa connosco, nem consegues arranjar trabalho quando dizes que és daqui.”

Mariana trabalhou num restaurante da cidade, “era gente que já me conhecia há muito tempo”. Os três filhos não conseguiram até agora melhor do que “um turno de três horas a servir almoços na cantina da universidade”. O mais velho chegou primeiro “e conseguiu meter os outros dois”, explica.

Visitas em campanha

Vila-roja sente-se um bairro abandonado, sempre foi assim. Bairro de Girona, orgulhosa cidade independentista que viu nascer o ilustre Carles Puigdemont, que antes de ser presidente da Generalitat, proclamar a independência e fugir para Bruxelas, era presidente da câmara. “Aqui só nos visitam antes das eleições. Aí é vê-los aparecer, nenhum candidato falta. De resto, nem se lembram que existimos”, diz Mirian, 40 anos, sentada na mesa ao lado de Mariana, desempregada nem se lembra há quantos anos, a viver “de um pequeno subsídio”.

Bem, Puigdemont, garantem-nos, nunca aqui pôs os pés. “É que dizem tantas mentiras, sabes? Eu no outro dia ia partindo a televisão. Estava a ver a TV3 [canal público catalão], uma reportagem sobre a Polícia Espanhola e a Guardia Civil”, conta Mariana. “Em na noite do referendo nem dormi.”

O referendo sobre a independência, a 1 de Outubro, teve características próprias em Vila-roja. “De madrugada começaram a aparecer com as urnas. Claro que não íamos deixar”, descreve Pablo. “O que nos salvou foi a Guardia Civil”, diz Mariana. Como assim? “Os Mossos [d’Esquadra, polícia da Generalitat, agora sob as ordens de Madrid, como todas as instituições catalãs] já estavam a pôr as luvas e quando os Mossos põem as luvas, já sabemos o que vem lá”, conta Dani. “Acredita em mim, o meu primo é Mosso”.

Pára um carro à porta do Cuellar, ornamentado com uma bandeira espanhola, como vários dos que se vêem por aqui. O dono pega na chave e prepara-se para trancar a porta. “Ó homem, deixa-te disso, aqui ninguém te rouba que isto é Espanha!”, diz Pablo. “Assim espero”, responde-lhe o condutor.

Trair a teta da mãe

“Sabes o que é mais triste? As famílias divididas. Telefonei ao meu irmão e ele disse-me que tinha ido votar. Fiquei atónita. Depois ia começar, ‘sabes, aos catalães tratam-nos…’. Desliguei. Como é que ele pode trair assim a teta onde mamou?”, indigna-se Mariana, filha de pai catalão e mãe andaluza. “Eu sou catalã nascida em Espanha”, descreve-se, antes de contar que à namorada do filho mais novo lhe chamam “cadela facha” no trabalho.

Jesus não quer ser fotografada porque trabalha com uma catalã e não se mete em política. Não é que ela não seja catalã, sente-se é mais andaluza. “A dança da Catalunha, meu Deus, a sardana, que coisa mais triste, passito para um lado, passito para o outro, dá-me sono. Nós somos mais vivaços”, diz. “Isto é um bairro bom, gente trabalhadora, tratamo-nos todos por vizinhos, partilhamos tristezas e alegrias. Com mais de 50 anos nasceu quase tudo na Andaluzia, os mais novos já são daqui”.

Na casa de Jesus foi o filho, 16 anos, que se lembrou da bandeira, não veio da colecta geral. “Nós achámos bem, claro. Na família pensamos todos da mesma maneira, menos o meu primo que tem uma namorada independentista e decidiu armar-se em tonto, deixou de ter vontade própria.”

A bem-disposta Jesus às vezes pára e põe-se a pensar. “Eu sei lá o que isto nos vai custar. Se até agora mesmo para termos uma equipa de futebol éramos nós que tínhamos de pagar”, diz. Não sei o que nos podem fazer, mas lá que não gostaram da nossa proclamação espanhola, disso tenho a certeza”.

Na autarquia, desde que saiu Puigdemont, está Marta Madrenas, independentista com alma de poeta, que tem vivido este processo de forma muito emotiva. Nos últimos dias andou preocupada com outro tema. Roubaram a bandeira espanhola da fachada da câmara municipal, assim denunciou Madrenas à polícia. Foi logo depois da declaração de independência, estava ela no parlamento em Barcelona.

Madrenas tinha era planos de retirar a bandeira num acto solene, guardando-a em seguida no Museu de História da cidade da ponte de pedra, arquitectura medieval e bairro antigo ainda dentro de muralhas. Ninguém sabe onde está. “Aqui não é”, garante Jesus. “Não é nenhuma das nossas.”

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