Catalunha: lições da transição espanhola
Ainda que com argumentos jurídicos, seria um erro monumental proibir os partidos separatistas de concorrer às eleições.
1. Quinta-feira, 26 de Outubro, era o dia certo para desatar o nó. Só havia uma maneira de o desatar: a Generalitat catalã, presidida por Puigdemont, convocava eleições. Esse dia foi a jorna de todos os avanços e recuos, com boatos e rumores, manifestações e “contra-manifestações”, até à declaração final de que a autonomia catalã não avançaria para eleições. Só se usou um argumento: se os dirigentes separatistas marcassem eleições regionais, ainda assim, o Governo de Madrid não dava a garantia de não accionar o art. 155.º da constituição. Este é o mecanismo, entretanto activado, que justamente prevê uma “dissolução” dos órgãos regionais e a sua substituição pelas entidades nomeadas pelo Governo central. Para já, não podemos saber, provavelmente nunca viremos saber, se a razão era verídica. Ou se foi apenas o pretexto encontrado para lidar com as divisões radicais que se fizeram sentir do lado dos separatistas. Era patente que o campo independentista estava fracturado entre os que aceitavam a estratégia das eleições e os que exigiam a declaração unilateral de independência. Não restam dúvidas de que a solução que mais facilmente abriria uma via futura de diálogo era a ida a eleições por iniciativa do governo catalão.
É ainda verdade, e isso não deve ser ocultado, que o Governo central estava também dividido quanto à estratégia a seguir, designadamente quanto à aceitação das eleições marcadas por iniciativa dos separatistas e ainda, e talvez mais importante, quanto aos efeitos a dar à activação do dito art. 155.º pelo Senado. Os mais ortodoxos queriam uma simples destituição das autoridades regionais com sub-rogação automática pelo Governo central. Os mais moderados preferiam a ida a eleições por iniciativa catalã, embora estivessem cientes de que era preciso garantir a absoluta transparência e imparcialidade do acto eleitoral (e isso talvez exigisse alguma intervenção central e uma invocação, ainda que minimal, do art. 155.º).
Uma coisa sabemos: Puigdemont e os seus aliados optaram pela via da declaração unilateral de independência, agora sem cláusula de suspensão. Esta opção não deixou a mínima margem ao Governo espanhol. Tudo se consumou no sábado com a destituição das autoridades da autonomia catalã.
2. A aplicação do art. 155.º, como se pôde ver no pouco auspicioso dia de ontem, levanta enormes dificuldades. Que autoridades devem ser substituídas, como garantir a obediência na cadeia hierárquica, que consequências jurídicas aplicar aos anteriores titulares de cargos automáticos, etc.? O número de questões é infindável e a ausência de precedente em nada ajuda.
Há, no entanto, que louvar o Governo de Rajoy e o entendimento político com o PSOE e com os Ciudadanos por convergirem na mais sensata das decisões: marcação de eleições regionais num prazo muito curto. Ao se fixar a data de 21 de Dezembro para as eleições autonómicas, dá-se um sinal de que a activação do art. 155.º é absolutamente excepcional, temporária e precária. E que se pretende devolver, tão depressa quanto possível, a situação catalã à normalidade institucional e política. Eis uma decisão que merece todo o aplauso.
3. Os acontecimentos de ontem já dão mais motivos de preocupação e deveriam levar os decisores espanhóis, em todos os tabuleiros institucionais, a recordar a sageza e o bom senso dos tempos conturbados da transição (1975-78) e do golpe de Tejero Molina (23 de Fevereiro 1981). A crise é política; não é nem legal nem jurídica. Nunca olvidar que o art. 155.º jamais foi aplicado e dá margem para interpretações diferenciadas, que podem temperar pulsões mais musculadas. Ver um Senado a aplaudir galhardamente a instauração do regime do art. 155.º não mostra sageza. Uma aprovação discreta, em luto, quase contrariada, daria um sinal mais positivo. Ver manifestações pró-unidade, muito vocais, com cartazes revanchistas, dá ares contraproducentes de “Schadenfreude” (de alegria com o mal dos outros). Uma multidão confiante, em postura de maioria silenciosa, seria uma resposta assaz construtiva.
Mais importante: ainda que com argumentos jurídicos, seria um erro monumental proibir os partidos separatistas de concorrer às eleições. Umas eleições amputadas dos veículos de uma das correntes que levou à presente crise seriam sempre o pasto ideal para a extensão sine die da mesma crise. Assim como parece um erro grave avançar já com a perseguição judicial e eventual prisão dos responsáveis catalães por esta inaceitável e imponderada deriva separatista. Não está em causa a ilegalidade e irresponsabilidade da sua actuação. Uma trama persecutória, por mais justa e legal que seja e apareça, não contribuirá para uma solução política. Em contraponto, é absolutamente surreal que a Bélgica ou a Flandres pudessem acolher esses responsáveis, sob o manto do asilo político. É certo que a Bélgica fez o percurso pouco usual do Estado unitário até ao Estado federal, mas também é verdade que, ironia das ironias, Carlos V, I de Espanha, nasceu em Gent. Este abrigo, já desmentido, teria o efeito de um terramoto e seria uma autêntica declaração de guerra em plena União Europeia
A transição espanhola, tal como a nossa, funcionaram com grande sucesso, porque se basearam no perdão, no esquecimento e na contemporização com muitas das acções e dos actores dos vários lados da barricada. Sem essa “política do perdão”, elas não teriam sido as transições democráticas que foram e as democracias ibéricas não exibiriam a maturidade e a resiliência que até agora demonstraram. Juan Carlos e Adolfo Suárez sobrevoaram a legalidade estrita em nome do Direito, da democracia e da exorcização dos fantasmas da guerra civil. Se algo não era legal, era, porém, legítimo. Com o exemplo de fundadores deste calibre, os actuais responsáveis espanhóis do poder político e do poder judicial não podem falhar a sua missão histórica. Não digo que a história se deva repetir, lembro apenas que não se deve esquecer.
Sim e Não
Sim. Lúcia Amaral. A recente eleição na nova Provedora de Justiça passou discretamente. Para lá da jurista brilhante e experiente, está a cidadã que verdadeiramente acredita na primazia dos direitos humanos.
Não. Listas de espera no SNS. O Tribunal de Contas pôs a nu a degradação crescente do Serviço Nacional de Saúde e que a informação não é fiável. Dia a dia, o estado salarial devora o estado social.