Crónica de uma morte anunciada: polícia, evidência e racismo
A criminalização do negro – que vai roubar o que é ‘nosso’ (o ouro, as mulheres e os telemóveis) – já teve lugar antes da polícia entrar em cena e é isso que lhe dá a legitimidade social e política de sair impune em tribunal.
Casos de polícia. São histórias reais que revelam a criminalização das populações racializadas, que transformam a vítima em suspeito. Suspeito porque negro, a história repete-se sempre vezes demais.
1. Eltham, Londres, 1993. Stephen Lawrence (17 anos) foi assassinado na noite de 22 de Abril. Stephen e Duwaine, ambos negros, esperavam o autocarro quando o primeiro foi esfaqueado por um grupo de jovens brancos; faleceu antes de chegar a ambulância. Na cena do crime, um polícia presumiu tratar-se de uma ‘rixa entre negros’ e não perseguiu os suspeitos indicados por Duwaine Brooks, nem recolheu provas cruciais, levando ao falhanço da investigação policial. A família Lawrence – não uma família típica, pelos recursos políticos e financeiros que mobilizou – conseguiu a abertura de um inquérito oficial no contexto da eleição do Novo Partido Trabalhista, em 1997. O inquérito incidiu não sobre o assassinato, mas sobre a actuação da Polícia Metropolitana de Londres: do momento em que Stephen foi encontrado à falha em recolher provas, dos trâmites do processo após a sua morte ao tratamento dado à sua família – tudo levou a concluir que a polícia não garantiu a sua protecção e que o sistema criminal não trouxe justiça. Com a publicação do Relatório Macpherson, em 1999, o governo concedeu no parlamento que a Polícia Metropolitana de Londres era institucionalmente racista. Ainda que tenha abalado a sociedade britânica para a realidade do racismo institucional, o caso de Stephen não conseguiu trazer mudanças significativas: 20 anos após a sua morte, houve uma subida de 120% no número de pessoas racializadas revistadas na rua pela polícia, segundo a Universidade de Oxford. Devido à falta de provas da polícia que tratou Stephen com suspeita, apenas em 2012 foram condenados dois dos cinco envolvidos na sua morte.
2. St. Paul, Minnesota, 2016. Philando Castile (32 anos) foi morto pelo agente Jeronimo Yanez numa operação de patrulha, a 6 de Julho. Neste caso, temos as filmagens da câmara da viatura policial: numa interacção de 40 segundos, o agente Yanez pede a carta de condução e o seguro, Philando obedece e passa-lhe o seguro. Ao buscar a carta de condução, é cuidadoso (demais) e diz que tem uma arma (registada com licença de porte). O agente diz-lhe para não tirar a arma, Castile responde que não o está a fazer; segundos depois, Yanez dispara sete tiros sobre Castile. Seguem-se as filmagens do que se passa a seguir, gravadas pela namorada Diamond Reynolds, no carro com a filha (Philando, ainda vivo, diz que não ia pegar na arma), e depois do incidente que terminou com a detenção de Diamond. Já no carro da polícia, vemos noutra filmagem a filha de 4 anos a tentar acalmar a mãe algemada ‘para que não apanhe também um tiro’. Questionado logo depois, o agente Yanez disse: ‘Eu não sei onde estava a arma, ele não me disse onde estava a m*rda da arma, e aquilo estava a ficar horrível, ele deu, ele só olhava para a frente, e então eu estava a ficar nervoso, e então disse-lhe... F*d-se, eu sei que lhe disse para tirar a m*rda da mão dele da arma.’ Não há registo de que o agente tenha visto a arma até ter usado esse argumento na sua defesa em tribunal. Na verdade, a arma de Philando foi encontrada guardada pelos paramédicos que levaram o seu corpo. Yanez, acusado de homicídio em segundo grau e de uso perigoso de arma de fogo, foi o primeiro agente policial a ser levado à justiça no Minnesota, após 200 casos em três décadas. Contra os factos, a interpretação do agente prevaleceu no julgamento: Philando tinha parecenças com o suspeito de um assalto (um ‘nariz largo’) e o seu carro cheirava a marijuana pelo que temeu pela sua vida. Apesar dos procedimentos que adoptou na busca serem questionáveis do ponto de vista profissional, foi absolvido em tribunal: o júri foi unânime que não deveria ser condenado. A evidência nem sempre é suficiente para que seja feita justiça.
3. Alfragide, 2015. Na tarde de 5 de Fevereiro, após uma incursão na Cova da Moura, uma patrulha da PSP deteve o jovem Bruno Lopes. Não oferecendo resistência e imobilizado no chão, foi agredido pela polícia enquanto testemunhas na cena protestaram contra o comportamento dos agentes. A polícia ameaçou moradores e transeuntes, e Jailza Sousa que pendurava roupa foi atingida por três balas de borracha. Na sequência desta situação, vários moradores do bairro (alguns da Associação Cultural ‘Moinho da Juventude’), tentaram informar-se sobre a detenção e apresentar queixa pelo sucedido. Na esquadra de Alfragide, Flávio Almada, Celso Lopes, Rui Moniz, Miguel Reis e Paulo Veiga foram selvaticamente agredidos por vários agentes. Receberam assistência médica no Hospital de Amadora-Sintra, exibindo clara evidência de agressão física, incluindo um ferimento de uma bala de borracha. O Ministério Público solicitou a sua prisão preventiva por resistência e coacção a um oficial e ficaram dois dias sob custódia policial, recebendo novos abusos e humilhações, até serem ouvidos por um juiz. Foram libertados e sujeitos a Termo de identidade e residência. Salvo raras excepções, os media rapidamente disseminaram a versão da polícia e criminalizaram os jovens, falando de uma ‘tentativa de invasão de esquadra da polícia’ e omitindo a violência exercida sobre eles. Os jovens chegaram mesmo a ser vigiados através dos Serviços de Informação de Segurança (SIS), como noticiado a 19 de Fevereiro de 2017. A 11 de Julho, um volte-face: a acusação pelo Ministério Público de crimes de tortura e ódio racista a 18 agentes da polícia de Alfragide – aguardamos o julgamento. Se aqui não houve perda de vida, em Portugal muitas mortes às mãos da polícia estão por explicar: Ângelo Semedo, Carlos Reis, Diogo Borges, Elson Sanches, José Carlos, Manuel Pereira e Nuno Rodrigues. Entre eles, o único caso levado a tribunal, o de Elson (14 anos), resultou na absolvição do agente e a condenação moral da vítima e da sua família.
Estes casos de polícia são mediados pelo racismo: na paragem onde Stephen sangrava no chão, nos segundos antes dos disparos sobre Castile, na Cova da Moura e na esquadra de Alfragide. Não obstante, a criminalização do negro – que vai roubar o que é ‘nosso’ (o ouro, as mulheres e os telemóveis) – já teve lugar antes de a polícia entrar em cena e é isso que lhe dá a legitimidade social e política de sair impune em tribunal. Como tal, e cientes que o Estado não tem protegido a vida das populações racializadas, movimentos sociais do outro lado do Atlântico ensaiam formas de justiça restaurativa para construir um mundo mais justo.
A opinião aqui veiculada é da responsabilidade do investigador, não constituindo qualquer posição oficial do Centro de Estudos Sociais