Guterres quer o mundo a olhar para a tragédia da República Centro-Africana
Secretário-geral da ONU escolheu uma das piores crises humanitárias do planeta para fazer a primeira visita a uma missão de capacetes azuis.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, escolheu o palco de uma das crises humanitárias mais profundas e menos conhecidas do planeta para assinalar o seu primeiro Dia das Nações Unidas como secretário-geral da ONU, esta terça-feira. Há cinco anos que a República Centro-Africana é um autêntico inferno terrestre, em que não faltam massacres de aldeias inteiras, violações, recrutamento de crianças e doenças mortais.
Guterres pretende chamar a atenção para uma situação “frequentemente fora da agenda mediática” no dia em que se comemora o aniversário da entrada em vigor da Carta das Nações Unidas. Mas este é um documento largamente ignorado na história recente desta antiga colónia francesa, onde a violência é quotidiana.
“Em todo o país, as tensões entre comunidades estão a crescer, a violência está a espalhar-se e a situação humanitária está a deteriorar-se”, disse Guterres na semana passada, quando anunciou a sua primeira visita a uma missão de manutenção de paz.
Os confrontos provocaram um número incontável de mortos e forçaram um quarto da população da República Centro-Africana a fugir de suas casas. Só desde o início do ano, a ONU calcula que 600 mil pessoas estejam deslocadas internamente e 500 mil tenham procurado refúgio em países próximos. Estima-se que cerca de metade dos 4,6 milhões de habitantes precisem de ajuda humanitária urgente.
E há poucos indícios que a situação possa melhorar nos próximos tempos. Desde o final de 2013 que a República Centro-Africana tem estado mergulhada numa feroz guerra civil que associa uma luta pelo poder a um confronto de cariz étnico e até religioso.
Tudo começou com a deposição do Presidente François Bozizé pelos séleka, uma aliança de três grupos rebeldes que pertencem à minoria muçulmana. Aliados do líder deposto formaram, em resposta, outros grupos, conhecidos como anti-balaka, com a missão de defender as comunidades cristãs. O conflito depressa tomou conta do país que está, desde então, em permanente estado de crise humanitária aguda e com contornos de uma malvadez raramente vista.
Violência sexual
Nos últimos tempos, a violência sexual passou a fazer parte do rosário de abusos quotidianos. A Human Rights Watch denunciava centenas de casos em que mulheres – e até crianças – foram violadas por elementos dos vários grupos que combatem. A violência sexual tornou-se numa nova dimensão de guerrilha, com as mulheres a serem escolhidas por suspeitas de apoiarem facções rivais. “Mataram o meu marido, violaram-me, já não tenho casa e estou infectada com VIH”, contou uma mulher de 31 anos.
À medida que o conflito se desenrola parece ser cada vez mais difícil chegar a uma solução política. Durante o Verão foi assinado um acordo de paz entre vários grupos rebeldes, mas o cessar-fogo praticamente não foi cumprido. As linhas que separam a miríade de grupos que nos últimos cinco anos foram aparecendo são cada vez mais ténues e têm consequências até para o trabalho das organizações humanitárias. “É necessário negociar com todas estas pessoas armadas se queremos ter acesso às aldeias. Há novas alianças em todo o lado”, contava ao Guardian a chefe da equipa dos Médicos Sem Fronteiras no país, Caroline Ducarme.
Desde Setembro de 2014 que a ONU tem na República Centro-Africana uma missão de capacetes azuis composta por mais dez mil elementos, entre os quais cerca de 150 militares portugueses. Mas sem fim da crise à vista, no próximo mês, o Conselho de Segurança deverá votar a extensão do mandato da missão e a proposta de Guterres de acrescentar 900 militares ao contingente actual.
Durante a sua visita, Guterres irá também dar de frente com um assunto incómodo para a própria ONU. A guerra na República Centro-Africana tem também ficado marcada pelos casos de violações de civis por parte de capacetes azuis. Mais de vinte militares congoleses e de outros países africanos e franceses são acusados de violação, ou tentativas, durante a presença no país, depois de os casos que envolvem mais de cem vítimas terem sido denunciados por organizações humanitárias.
“Sabemos que o bom trabalho e o sacrifício tremendo dos capacetes azuis em todo o mundo foi manchado pelo comportamento hediondo de alguns elementos da ONU, que magoaram as pessoas que deveriam proteger”, disse Guterres.