Violência sexual é usada como arma de guerra na República Centro-Africana

Relatório da organização não governamental Human Rights Watch documenta casos em que a violência sexual é usada pelas partes em conflito como "vingança" pelo suposto alinhamento da população com um dos lados.

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Reuters/SIEGFRIED MODOLA

Vários grupos armados na República Centro-Africana (RCA) tê,, ao longo dos quase cinco anos de conflito, utilizado a violência e a escravidão sexual como táticas de guerra, indica um relatório da Human Rights Watch (HRW).

Segundo o documento, os comandantes desses grupos têm "tolerado" a actuação por parte dos seus soldados, havendo casos em que são os próprios líderes que o ordenam.

Mais grave, lê-se no documento, há relatos de que são os próprios comandantes a cometer tais actos na República Centro-Africana, onde a missão de manutenção de paz das Nações Unidas, MINUSCA, integra militares portugueses.

O relatório de 176 páginas, intitulado They Said We Are Their Slaves ("'Eles Disseram Que Somos Os Seus Escravos' - Violência Sexual por Grupos Armados na República Centro-Africana"), documenta 305 casos de violações e de escravidão sexual perpetrados contra 296 mulheres e adolescentes por membros de grupos armados entre o início de 2013 e meados deste ano.

O grupo muçulmano Seleka e as milícias maioritariamente cristãs e animistas conhecidas por "anti-balaka", dois dos principais beligerantes no conflito, têm usado a violência sexual como "vingança" pelo alegado apoio da população a uns e outros.

"Os grupos armados têm utilizado as violações numa brutal e calculada via para punir e aterrorizar as mulheres e as adolescentes. Todos os dias, as sobreviventes têm de viver com o dia seguinte da violação, sabendo que os violadores continuam a andar livremente pelas ruas, talvez por deterem cargos importantes de poder", escreveu Hillary Margolis, investigadora do HRW.

A organização de defesa e promoção dos Direitos Humanos entrevistou 296 mulheres, 52 delas jovens raparigas, que foram vítimas de abusos sexuais, bem como funcionários governamentais e das Nações Unidas, polícia e pessoal médico, entre outros.

Devido ao estigma, o número total de incidentes ligados à violência sexual e cometidos por elementos de grupos armados é, "sem dúvida, muito maior", escreve-se no relatório.

Segundo o HRW, grande parte dos abusos documentados, além de crime previsto na lei do país, constituem também "crimes de guerra" e, nalguns casos, podem até ser considerados "crimes contra a humanidade", mas, até hoje, não há qualquer registo de um único violador ter sido detido e julgado.

Os casos documentados de violência sexual cometida pelos elementos dos grupos armados contidos no relatório incluem tortura, alguns deles agravados com outras formas de violência física e psicológica.

Algumas das mulheres, segundo o relatório, foram violadas por 10 ou mais homens em apenas um incidente.

Há relatos também de mulheres e raparigas chicoteadas durante os ataques por elementos dos grupos armados, que as amarravam por longos períodos, queimavam-nas com madeira a arder ou com pontas de cigarros acessos e ainda as ameaçavam de morte.

Segundo o relatório, 13 das mulheres entrevistadas, três delas eram adolescentes na altura dos ataques, ficaram grávidas.

Os atacantes cometiam frequentemente as violações das mulheres e raparigas à frente de filhos e de familiares das vítimas.

A histórica impunidade para crimes de violência sexual na República Centro-Africana, ajudada pelo um sistema judicial ineficiente, não permite às sobreviventes ter esperança nos tribunais, sublinha a HRW.

Apenas 11 das 296 sobreviventes entrevistadas indicaram ter tentado dar início a uma investigação criminal, mas acabaram também por ser vítimas de maus tratos e de exclusão social.

O relatório dá ainda conta de seis pessoas em posições de liderança em grupos armados que foram identificados por três ou mais vítimas da violência sexual.

Face a esta situação, a HRW salienta a urgência da entrada em funcionamento do Tribunal Criminal Especial (SCC, na sigla inglesa), que inclui magistrados centro-africanos e internacionais para que possam lutar contra a impunidade no país, embora falte, para tal, meios financeiros, logísticos e políticos.

"É necessária uma mensagem urgente e forte para que a violação sexual não seja utilizada como arma de guerra. É intolerável. Os violadores devem ser punidos e as sobreviventes devem ter o apoio que desesperadamente necessitam. Mesmo numa zona de conflito, o governo e as organizações internacionais podem e devem trabalhar nesse sentido", concluiu Hillary Margolis.