O que vai mudar nas sociedades através da ciência aplicada à nutrição
Hoje sabemos que a alimentação inadequada é o determinante mais importante para uma vida longa e saudável.
O método científico aplicado à nutrição surge praticamente no início do séc. XX. Apesar de Descartes ter lançado os fundamentos do método científico no séc. XVII, possibilitando o desenvolvimento tecnológico e científico sem precedentes da Era Moderna, este modelo só é realmente apropriado pelos químicos que estudam as vitaminas já no séc. XX com Casimir Funk e outros. Desde então, as ciências da nutrição, como ciência de suporte ao gesto humano mais básico e essencial que é comer, fizeram o seu caminho e tornaram-se uma força central nas nossas sociedades. Hoje sabemos, em Portugal, e um pouco por todo o mundo, que a alimentação inadequada é o determinante mais importante para uma vida longa e saudável. Já não apenas o determinante da sobrevivência, mas agora, e também, o determinante central da longevidade feliz e sem doença.
Esta construção rápida e “mitificada” dos alimentos e seus constituintes como elixir para uma vida eterna, saudável e para a procura da beleza que é apanágio das sociedades modernas colocaram uma nova pressão sobre a jovem ciência da nutrição neste início de século. Por um lado, vivemos hoje debaixo do método cartesiano, onde a ciência baseada em evidência pretende fazer o seu caminho, afastada das pressões mundanas. Por outro lado, estamos rodeados da pressão do mundo digital, das redes sociais e mediáticas onde aparecer e ser visto é sinal, aparentemente, capacitador para a ação. Como e bem diz João Caraça, “o que distingue o debate moderno sobre o conhecimento dos debates anteriores é o facto de a ciência moderna ter assumido a sua inserção no mundo mais profundamente do que qualquer outra forma de conhecimento anterior ou contemporânea: propôs-se não apenas compreender o mundo ou explicá-lo, mas também transformá-lo. Contudo, paradoxalmente, para maximizar a sua capacidade de transformar o mundo, pretendeu-se imune às transformações do mundo.” Ora, é nessa brecha dissonante que reside, a meu ver, a oportunidade para revisitar a nossa profissão e onde se pode inserir uma nova associação de pessoas interessadas nas ciências da nutrição e na sua ligação com a transformação do mundo de uma forma ética e integrada.
Recentemente, Bart Penders e colegas publicaram um excelente editorial sobre esta oportunidade e sobre a capacidade de as ciências da nutrição serem vistas como capazes e credíveis. E conciliarem estes atributos nas suas intervenções. Concordando com a visão deste coletivo holandês, de que a maior parte do investimento em novo conhecimento, que atualmente está a decorrer nos institutos de pesquisa internacionais, não corresponde aos principais desafios sociais do século XXI, ou seja, a transição demográfica para o envelhecimento da população, o aumento da carga de doenças não transmissíveis atribuíveis a estilos de vida e os da relação entre a alimentação e a sustentabilidade ambiental, diria que necessitamos de uma nova matriz de investimento que ligue aspirações e necessidades da população com investigação. Outra mudança necessária e que merece reflexão prende-se com a necessidade de as ciências da nutrição, para serem verdadeiramente capazes e credíveis, requererem reciprocidade na articulação da relevância e na comunicação e inclusão convidando outras disciplinas para se tornarem co-criadoras desta nova ciência. Foi assim no início, mas tende a desaparecer à medida que a soberba profissional de uma ciência cresce no imaginário dos seus profissionais e estruturas. Podemos e devemos chegar a não académicos, desde produtores de alimentos até organizações de consumidores, inclusive como colaboradores legítimos na investigação e ação. A pesquisa recíproca e inclusiva traz consequências sobre a forma como concebemos a nossa investigação e sobre como traduzimos os seus resultados para o bem da sociedade.
O não desligar do mundo e das suas necessidades mais básicas é essencial para que a profissão se mantenha relevante e credível. Uma profissão que se liga ao ato de alimentar não pode deixar de ter como centro as questões da fome e das desigualdades sociais. Uma profissão que aspira a melhorar o estado nutricional de todos os cidadãos não pode fechar os olhos ao desrespeito que determinada oferta alimentar tem para com a saúde dos cidadãos ou, de como certas práticas de produção alimentar contaminam o planeta.
Será por aí a mudança e será por aí, a meu ver, que a profissão continuará a merecer credibilidade e ganhar capacidade de transformação na nossa sociedade.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico